
Após circular na Maré, em Acari e em Rio das Pedras, favelas onde teve intensa agenda de atividades e receptividade do público, a exposição Memória Climática das Favelas chega à Cidade de Deus, na Zona Oeste. Organizada pela Rede Favela Sustentável*, a exposição está atualmente aberta ao público na Escola Municipal Dorcelina Gomes da Costa desde 17 de setembro, através do Grupo Alfazendo, integrante-fundador da RFS que foi anfitrião local do projeto na CDD. Em seguida, circulará por outras escolas da comunidade até 3 de outubro. A expectativa é que a exposição chegará à maioria dos alunos dos corpos docentes das quatro escolas. Além disso, seu acervo se tornará material pedagógico para o Eco Rede, projeto de educação socioambiental do Grupo Alfazendo.
No dia de lançamento, na Escola Municipal Dorcelina Gomes da Costa, jovens educadores do Eco Rede utilizaram os banners, a linha do tempo e a bacia das memórias para abrir um diálogo com os alunos sobre a história da Cidade de Deus. Gabrielle da Conceição da Silva, coordenadora pedagógica do Eco Rede, explica a proposta.
“[Eco Rede é] um projeto que acontece no território há 14 anos. Todo ano a gente traz uma proposta diferente: jogos da memória, jogos de quebra-cabeça, jogos de tabuleiro gigante… E aí, nesse ano, a nossa proposta é um pouco diferente, é uma exposição.” — Gabrielle da Conceição da Silva

Na atividade de educação socioambiental conduzida pelo Eco Rede, três jovens educadores dividiram os alunos visitantes entre três grupos, explicando o contexto histórico que levou à criação da Cidade de Deus em 1966 e compartilhando memórias climáticas que a comunidade vivenciou desde sua fundação. Evelyn Cristina Neves, uma das jovens educadoras que apresentou a exposição aos alunos, fala sobre a origem da favela.
“A Cidade de Deus, antigamente, era uma fazenda. Em 1966, antes das obras terminarem [inicialmente para alojar trabalhadores], moradores removidos de favelas [vítimas de enchentes] vieram habitar aqui. [É importante] falar sobre isso, sobre as enchentes e os desabrigados que vieram para a Cidade de Deus, que não foi criada para nós moradores. Foi criada para os trabalhadores, para o crescimento da Zona Sul, mas aí [surgiu a questão dos] desabrigados das enchentes e das remoções, [e os impactados] vieram habitar aqui.” — Evelyn Cristina Neves
Na manhã de atividades, no dia 17 de setembro, Luciano Vicente, professor de língua portuguesa da escola, acompanhou sua turma na abertura da exposição. Ele reflete sobre a forma como as pessoas foram assentadas na Cidade de Deus.
“A maneira como foi feita a alocação foi equivocada, porque as pessoas vieram a partir das remoções, e eles [as autoridades responsáveis] fizeram isso de maneira atabalhoada. Além disso, uma outra questão que [uma estudante] colocou, que só tinha barro, mato, ou seja, botaram as pessoas aqui, distantes dos seus trabalhos, a maioria. E [as autoridades responsáveis] não deram… [as] outras assistencialidades que deveriam acontecer, como escolas, postos de saúde e transportes… o que culminou em um processo de crescimento demográfico da Cidade de Deus, sem nenhuma estrutura, sem nenhuma base de organização.” — Luciano Vicente

Participaram da inauguração seis turmas, com aproximadamente 30 alunos cada, do Ensino Fundamental 2 e Médio—jovens com idades entre 12 e 16 anos. Kayky Cristiano Soares Silva, estudante do primeiro ano do Ensino Médio, conta sua experiência de aprendizagem através da exposição.
“Eu gosto muito de aprender coisas novas… eu comecei a conhecer mais sobre toda a linha do tempo, desde a fundação da Cidade de Deus até os dias de agora. Foi muito legal. A gente estudou e a gente fez perguntas que gente da idade deles… conseguisse responder,… sobre as mudanças climáticas na favela.” — Kayky Cristiano Soares Silva
Ao longo da atividade, os estudantes debateram outros assuntos ligados à memória climática local, refletindo coletivamente sobre como era o Rio Grande, rio principal da Cidade de Deus, e como ele está agora; se costumam ver pouca ou muita árvore no caminho para a escola; quais impactos que as mudanças climáticas causam na favela; se a Cidade de Deus de antigamente é igual a de hoje; o que fariam se sua casa fosse alagada; e se conhecem alguém que já teve a casa alagada. O objetivo da conversa foi estimular os estudantes a participar com suas vivências e com histórias que ouviram de seus mais velhos.

Iara Oliveira, fundadora e coordenadora do Alfazendo, aproveitou o momento para falar sobre a enchente de 1996, um evento marcante para a comunidade.
“Teve uma enchente grande na Cidade de Deus, em que morreram 62 pessoas. Houve pessoas que nem foram achadas, porque a água levou… Então, por isso, é importante a gente ter memória. Eu, hoje, tenho 58 anos, eu tenho a idade de Cidade de Deus, [e] eu passei por duas enchentes. A ideia não é que vocês revivam uma enchente, mas que vocês percebam que a Cidade de Deus é cortada por três rios, e a importância de cuidar do rio, e olhar a questão das enchentes. Pode ser que esse lado aqui não encha, mas a Rocinha 2, toda aquela área lá de trás, quando chove, as pessoas têm pânico. A mudança climática traz uma questão muito forte de pânico para as pessoas. Porque quando você não está em casa, você saiu para trabalhar, você pode voltar e a sua casa estar alagada. Por isso é importante a gente reviver e lembrar que o racismo ambiental está ligado justamente a isso.” — Iara Oliveira
Verônica Cintra, diretora da escola, trabalha frequentemente em parceria com o projeto Eco Rede. Ela fala da experiência de receber a exposição na instituição de ensino onde trabalha.
“É muito bacana, muito importante, o retorno dessa exposição aqui dentro da escola, e aqui na Cidade de Deus, e saber que a Cidade de Deus é protagonista dessas ações socioambientais. Principalmente para mostrar que essas questões das mudanças climáticas afetam de maneira desigual os territórios populares, o que a gente chama de racismo ambiental. E aqui, pra nossa escola, que tem um projeto pedagógico antirracista, é uma reflexão fundamental fazer isso pra dentro da [comunidade escolar].” — Verônica Cintra
Veja o Álbum da Abertura da Exposição ‘Memória Climática das Favelas’ na Cidade de Deus:
*A Rede Favela Sustentável e o RioOnWatch são ambas iniciativas gerenciadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras. A exposição de Memória Climática das Favelas reúne 1.145 depoimentos de 382 moradores de dez favelas da capital fluminense, coletados e sistematizados ao longo de três anos de construção coletiva. A exposição foi desenvolvida por onze museus e coletivos de memória de favelas integrantes da RFS: Museu da Maré, Museu Sankofa, Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz, Museu de Favela, Núcleo de Memórias do Vidigal, Alfazendo (Cidade de Deus), Centro de Integração da Serra da Misericórdia, Museu do Horto, Fala Akari, Conexões Periféricas (Rio das Pedras) e Museu das Remoções.
Sobre a autora: Bárbara Dias, cria de Bangu, possui licenciatura em Ciências Biológicas, mestrado em Educação Ambiental e atua como professora da rede pública desde 2006. É fotojornalista e trabalha também com fotografia documental. É comunicadora popular formada pelo Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC) e co-fundadora do Coletivo Fotoguerrilha.

