
Em 2025, a possibilidade de remoção das comunidades dos Maracajás, Rádio Sonda e Estrada do Galeão, No. 92, localizadas próximas ao Aeroporto Tom Jobim (o Galeão), na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio de Janeiro, voltou, mais uma vez, a tormentar os moradores. A ameaça de remoção parte do Comando da Aeronáutica (COMAER), que, há cinco anos, conseguiu a jurisdição administrativa da área, sendo, portanto, o novo proprietário da região.
Situadas entre a Estrada do Galeão, principal via expressa da Ilha, que liga o bairro ao aeroporto e à Praia do São Bento, essas comunidades abrigam cerca de 160 famílias de baixa renda, com mais de 800 pessoas. A ocupação dos terrenos aconteceu na época em que eles pertenciam à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), há mais de 100 anos.
Apesar de conviverem com remoções graduais e viverem tentativas de desapropriação forçada há mais de 20 anos, o medo de perder tudo, do dia para a noite se intensificou nos últimos dois anos. Desde que a COMAER possui concessão oficial de administração do território na Ilha do Governador, paira sobre as famílias o medo do despejo de suas casas.

‘Sai e Acabou’
Os terrenos que, hoje, abrigam as comunidades foram ocupados cerca de 100 anos atrás por famílias migrantes de diferentes lugares do Brasil. Inicialmente, estes espaços estavam sob a gestão da União mas, em 2020, eles foram concedidos à administração do Comando da Aeronáutica. As três comunidades são vizinhas dos prédios da Vila de Suboficiais e Sargentos da Aeronáutica.
As primeiras notificações de despejo surgiram nos anos 1990 e remoções, de fato, ocorreram a partir dos anos 2000. Até o momento, cerca de 15 famílias, ex-moradoras de Maracajás e Rádio Sonda, já foram removidas de suas casas, mesmo com a luta pela permanência da comunidade.
Cristina Santos*, 62 anos, do lar, mora há 35 anos no Maracajás, a mais antiga entre as três comunidades. Com o marido e a filha, ela compartilha o medo de perder tudo, relatando a última remoção violenta que testemunhou, há menos de 10 anos.
“Já tem sete ou oito anos que eles começaram a mandar cartas dizendo que a gente ia ter que sair daqui. Sendo que tem [família] que mora aqui há 100 anos. Só a minha família já tá na quinta geração [aqui]. Quando eles chegaram aqui, do nada, foram nos vizinhos do terreno ao lado, jogaram os móveis deles pela janela, sem piedade, sem chance e prazo. Foi: ‘Sai e acabou’. Eles começaram a dizer que isso aqui era deles. Quando a minha sogra veio pra cá, ainda era criança, em função do pai dela que trabalhava na construção da Ponte [Velha] da Ilha do Governador. Esses terrenos foram dados aos funcionários dessas obras. O local onde é a prefeitura da Aeronáutica, por exemplo, era uma granja da galinha. Não tinha nada! Quando meu pai estava aqui, nem Aeronáutica tinha! Eles não precisam desse terreno. No dia que eles vieram pra expulsar as pessoas, fecharam a rua, entraram com caminhões, com a Polícia Militar, a Guarda Municipal, empurraram os moradores, gente idosa. Bateram… E disseram que iam guardar as coisas num galpão e, até hoje, ninguém sabe onde foi parar. Muitos foram pra a casa de parentes. Teve gente que morreu por causa disso. De desgosto. É triste isso. Eles são covardes. Não tinha necessidade disso. Tem usuário de droga até na casas abandonadas. Bateram nas pessoas e expulsaram pra nada.” — Cristina Santos

Ana Maria Goulart*, 47, vendedora, mãe de duas crianças, é moradora da Rádio Sonda, localidade da Vila Juaniza, há 23 anos. Ela diz que a luta é longa e que isso traz dificuldades até para dormir.
“Minha sogra, a primeira moradora, me disse que recebia notificações por mensagem de celular e email da Defensoria Pública sobre a ordem de despejo. Ela foi recorrer e depois começou a entrar todo mundo [outros moradores] junto, mas sempre sem uma decisão final sobre algum tipo de acordo. Depois que ela faleceu eu e meu companheiro ficamos de frente nessa situação. Está sendo angustiante porque não temos outro local pra ir. Temos uma filha com necessidades especiais e é muito difícil ficar nesse impasse. Você não consegue relaxar, dormir direito. A gente tá sempre pensando nesse assunto. É bem complicado. Nunca pensei em passar por essa situação de ficar sem casa de repente. É muito desesperador. Meus filhos cresceram nessa casa. A gente só queria essa permissão pra continuar vivendo aqui.” — Ana Maria Goulart


Ainda que, até agora, não tenha sofrido remoções efetivas, a Estrada do Galeão 92, hoje, também está sob risco. O terreno onde hoje vive a comunidade pertencia a um antigo coronel da Aeronáutica da Ilha do Governador, que, na década de 1990, decidiu doá-lo a um funcionário que prestava serviço de reparos no local. Em função da amplitude do terreno, o funcionário (e novo proprietário) cedeu pequenas partes a outras pessoas em situação de vulnerabilidade. No entanto, segundo Jeferson Almeida*, morador da Estrada do Galeão 92, o sossego durou apenas seis anos. Em 2003, receberam a primeira notificação de despejo.
Anos mais tarde, em 2016, os novos moradores deram entrada no cartório para registrar o terreno. No entanto, apesar de terem obtido uma declaração reconhecida pelo cartório, as notificações de desapropriação nunca cessaram. Ao todo, já foram dez notificações de despejo só nesta comunidade.
“Eles [oficiais de justiça] vieram aqui pra conversar com meu pai e dizer que a gente tinha que sair. Meu pai procurou a Defensoria Pública na época e começaram a vir os processos, um atrás do outro. Sendo que esses processos vinham, ele recorria e acabava o assunto. Em 2017, veio outro processo, já com pedido de devolução do terreno. Eles [Aeronáutica] tiraram o pessoal de outro terreno [a comunidade Maracajás], que é atrás do nosso, e deixaram os terrenos abandonados. Tem casas que, no mínimo, tem uns sete ou dez anos abandonadas, que já tão caindo aos pedaços.” — Jeferson Almeida
Jeferson explica que, em sua opinião, a única resposta possível para essa insistência na remoção é o projeto de construção de um terminal aquaviário, que visa transformar a região, em parte da infraestrutura turística da cidade do Rio de Janeiro. A partir deste terminal, barcas ligarão pela Baía de Guanabara o Aeroporto do Galeão ao Aeroporto Santos Dumont, no Centro da cidade.
“Querem tirar a gente daqui só porque eles querem ter lucro com o terreno. [Querem fazer] estação de barca aqui. A União e a Aeronáutica querem pegar um terreno que era abandonado, que eles não ligavam, para ter posse disso e para ganhar dinheiro. Tem casas que estão lacradas, que eles fecharam os portões com tijolo.” — Jeferson Almeida
Nos últimos dois anos, as investidas foram ainda mais pesadas. Após quatro reuniões com o COMAER, não foram oferecidas contrapartidas justas aos moradores, além de não terem apresentado nenhuma preocupação com a realocação adequada ou indenização proporcional e justa aos moradores.

‘Pra Onde Que a Gente Vai?’
Silvia Santos* desabafa sobre a falta de respeito e de humanidade com os moradores.
“Aqui tem criança, tem idoso, tem pessoas doentes, entendeu? A gente quer é que eles tenham uma consciência, né? Que a gente é ser humano. Cadê os nossos direitos humanos, que a gente não tem? Para eles a gente não tem. A gente está aqui lutando, todo mundo preocupado, com a mão na cabeça, [se perguntando: no] final de ano, para onde que a gente vai? — Silvia Santos
Roberto Nascimento*, 43 anos, expedidor e morador da Estrada do Galeão 92, explica que nunca houve tentativas de acordo pacífico entre as partes e que as condições impostas colocariam os moradores em situação de mais vulnerabilidade.
“Todo mundo aqui é assalariado, trabalha e é empregado, e o único bem que tem é a casa [em que mora]. Ou deixa a gente ficar, ou indeniza a gente, ou desloca para um lugar que seja próprio para cada um. Nada desse negócio de aluguel social, que isso aí não presta. Eles começam a dar um mês, como já ouvi falar, e depois eles param. E é um valor que não dá para você pagar nada, porque você vai entrar para pagar um aluguel e o restante, luz, água, essas coisas? Quem se lasca é o trabalhador, que sai de manhã, não sabe se vai voltar, tua casa vai estar fechada ou vai estar arrombada. Se for olhar o projeto… [a motivação para a remoção] é comercial… Já que eles podem investir bilhões [nesse projeto], o que custa para eles poder indenizar cada morador daqui? Nada.” — Roberto Nascimento
‘O Governo Não Tá Nem Aí para O Povo’
Luzia Alves*, cabeleireira de 45 anos e residente da Estrada do Gaeão 92, compartilha sua preocupação.
“Por que deixaram essas 17 famílias construírem [aqui]? Para agora fazer essa injustiça com a gente? Espero que realmente resolvam nossa situação pra gente não ficar como os outros moradores aqui [detrás] na Maracajás, há 7 anos, que foram despejados. Até hoje, quando eu lembro, eu choro. Me traumatizou ver uma senhora de mais de 90 anos na cadeira de roda [expulsa de casa] debaixo de um sol pelando. Foi horrorizante, tinha várias forças [armadas] lá para tirar na marra. Não deram outra moradia para os moradores de lá, e ficou por isso mesmo. Eles têm a moradia deles, tá garantida a casa deles para eles dormirem, né, para chegar e ver a família. E nós? O que a gente tem garantido? Não tem nada. Ninguém pensa, na verdade, no pobre. Não querem saber do pobre.” — Luzia Alves

Conceição Batista*, 72 anos, aposentada, fala sobre a falta de diálogo e a despreocupação com os moradores, o que dificulta a resolução do problema.
“Não é chegar igual eles fizeram da outra vez: com o caminhão querendo botar todo mundo dentro igual porco e jogar os móveis fora. Ninguém tem dinheiro para comprar outro. Então, eles têm que ter solução. O que é que eles querem? Arrumar mais problema pra gente? Por isso que tem tanta favela no Rio de Janeiro, tanta bandidagem, é por isso. Porque eles, o governo, não está nem aí para o povo. Ninguém roubou nada aqui, não. Todo mundo lutou, e é o suor de cada um que tá aqui.” — Conceição Batista

Maria Augusta*, 53, do lar, moradora da Rádio Sonda há 31 anos, reforça a importância de conseguir apoios neste momento tão delicado para os moradores.
“Estamos buscando soluções em Brasília porque na Aeronáutica do Rio não conseguimos. Já teve outros parlamentares buscando esse acordo com eles e não conseguimos e, agora, com a Comissão de Conflitos, também não conseguimos resolver. As famílias aqui não chegaram ontem, moram aqui há muitos anos. Não dão nenhuma justificativa do porquê querem essa área. Um monte de quartéis abandonados, sem limpeza. Se nem da área deles estão cuidando, porque estão exigindo nossas casas e largando tudo? Se é pra ser assim, que indenizem, que realoquem. Temos famílias pobres aqui. São famílias que trabalham, que têm filhos. Queremos o nosso direito à moradia. É isso que a gente quer.” — Maria Augusta
No momento, as comunidades estão em luta, aguardando a possibilidade de consenso com o COMAER, em seção na Comissão de Assuntos Fundiários do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, agendada para 15 de outubro de 2025. Mas vivem em constante estado de ansiedade, com medo de verem seus lares sendo demolidos, locais onde construíram suas memórias, famílias e vidas, apagados pela negligência do Estado em garantir o direito à moradia destas três comunidades insulanas.
*Visando a segurança dos moradores que concederam entrevista ao RioOnWatch, todos os nomes nesta matéria foram alterados.
