No dia 1 de outubro, o Brasil comemorou o 10º aniversário do Estatuto do Idoso, um marco da legislação que consolida os direitos básicos dos cidadãos brasileiros com idade superior a 60 anos. Com a passagem do Estatuto, os direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, e ao respeito, entre muitos outros, tornam-se obrigação compartilhada entre as famílias, comunidades, sociedade e governo. Avanços podem ser vistos no acesso preferencial ao transporte público, na construção de asilos, tanto públicas como privadas, e na luta contra a discriminação no mercado de planos de saúde privados.
No entanto, a implementação tem sido muito lenta e esporádica para muitos dos que lutam pelos direitos dos idosos. Um relatório recente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) explica o alcance limitado do Estatuto, destacando o fato de que nem as prioridades de execução nem as fontes específicas de fundos foram incluídas na legislação.
O Instituto Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) vem acompanhando várias formas de violência contra os idosos, incluindo incidentes relacionados diretamente com as disposições do Estatuto. Só em 2011, foram relatados um total de 61.353 crimes contra os idosos. Estes incluem abuso, negligência, fraude, assassinato, extorsão, abandono em asilos, fracasso na provisão de saúde e assistência social, discriminação, e exposição a situações que põem em perigo sua saúde física ou mental.
O projeto inovador, Casa de Santa Ana, uma iniciativa sem fins lucrativos, enfrenta esses desafios através de um centro de apoio à saúde e ao bem-estar dos idosos na Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Sua fundadora e coordenadora, Maria de Lourdes Braz, começou a colocar em prática sua visão de cuidados aos idosos em 1991, uma década antes do Estatuto do Idoso ser implementado. Contra a crença popular de que um asilo é o melhor lugar para uma pessoa envelhecer, ela aprendeu através do seu trabalho e observações em uma instituição privada que as pessoas poderiam viver vidas mais longas e saudáveis, se eles ficassem, sempre que possível, em casa, em suas comunidades e perto de suas famílias.
Abrindo suas portas diariamente para cerca de 150 idosos, a Casa serve como uma referência dentro e fora da Cidade de Deus. Sua visão ampla de cuidado inclui atividades como a mudança regular de ataduras em úlceras diabéticas, o fornecimento de refeições nutritivas e acesso à fisioterapia, massagem e aulas de ginástica. O bem-estar emocional também desempenha um papel importante no trabalho da Casa, e os idosos podem ter consultas com um psicólogo e participar de aulas de canto, dança e teatro. A Casa também oferece treinamento específico para os profissionais de saúde e para as famílias da Cidade de Deus, e procura educar a próxima geração sobre os problemas enfrentados pelo idoso.
Limitações de acesso a cuidados de saúde dentro da Cidade de Deus fazem o trabalho da Casa ainda mais importante. Dagmar, uma fisioterapeuta que trabalha na Casa e também coordena a fazedura dos curativos, explica: “O posto de saúde tem um serviço de ambulatório, só que eles atendam um número X de pessoas, e no posto, não parece, mas falta muito material também, e lá eles têm uma demanda muito grande, porque no posto de saúde eles acabam atendendo várias pessoas dessa região aqui, e não tem atendimento especificamente para idoso”. Maria de Lourdes descreveu a estratégia de incorporação de pessoas no programa antes que elas precisem ser internadas em um hospital ou em um asilo dizendo que: “Se você vai para um asilo em condições ruins de saúde, o tempo que você dura no asilo é muito curto”.
Lourdes mede o sucesso do programa de várias formas, citando especificamente os baixos níveis de hospitalização e os casos de revitalização que ela tem testemunhado ao longo da existência da Casa. O posto de saúde pública também encaminha os pacientes, em alguns casos, para a Casa, o que significa que o cuidado que ela fornece é de excelente qualidade. No entanto, esse padrão de encaminhamentos para a Casa levanta questões sobre até que ponto o Estado está cumprindo sua responsabilidade de cuidados dos idosos. “Quando chega um idoso no posto para ser atendido, em alguns casos, principalmente para os que necessitam de curativos nas feridas eles falam: ‘vai lá para Casa de Santa Ana por que lá tem um serviço bom’, e a gente diz ‘não faz isso’ por que o nosso papel não é esse, não é de fazer o trabalho de vocês”.
A prática de colocar as necessidades e perspectivas dos idosos em primeiro lugar, surgiu para Lourdes pela primeira vez a partir de sua frustração com um estilo de gestão de cima para baixo, que ignora as necessidades dos indivíduos. “Eu acho que as pessoas, em primeiro lugar, têm que ser ouvidas, tem que perguntar para elas o que elas querem. É muito simples, dá mais trabalho, mas os resultados são mais eficazes”.
A Casa de Santa Ana cresceu e evoluiu em seus 22 anos de vida e agora ocupa dois edifícios na Cidade de Deus: um é uma igreja que Lourdes fez lobby para ser renovada para abrigar seu projeto, e o outro foi construído em um terreno que uma das participantes de longa data do projeto, Geralda, doou pouco antes de morrer. A Casa de Santa Ana está atualmente passando por uma nova rodada de reformas, por isso a maioria das atividades estão ocorrendo na “Casa da Geralda”. Camas e mesas são cuidadosamente posicionadas em seu piso inferior para permitir que o maior número de pacientes possível seja atendido ao mesmo tempo. O andar de cima tem uma cozinha, uma área de refeições e uma sala de estar. Somente as aulas de ballet para crianças da comunidade são realizadas na Casa de Santa Ana no momento.
Lourdes inclui jovens nas atividades da Casa, sempre que possível, como parte de uma estratégia mais ampla de “integração inter-geracional”. Além da energia e alegria que os jovens trazem para o projeto, Lourdes vê a conexão entre jovens e idosos como uma importante estratégia para o avanço dos direitos de todos. “Esse Programa, ele tem como objetivo juntar todas as idades e uma dar suporte à outra, falar sobre as questões da outra”, enfatiza Lourdes.
Lourdes nota que os participantes promovem seus aprendizados e experiências, descrevendo a Casa como a fonte de uma mudança mais ampla na compreensão dos processos de envelhecimento, que enfatiza o respeito aos idosos como forma de enfrentar e aceitar o processo de envelhecimento: “É muito legal você ouvir uma criança dizer que a partir das aulas que ele teve aqui, de como respeitar os idosos, que ela não consegue mais sentar no ônibus e fingir que está dormindo para não dar lugar para o idoso sentar”.
As presentes renovações na Casa de Santa Ana estão permitindo que a equipe da Casa reoriente suas prioridades e defina seus objetivos. Encontrando dificuldades para nomear a atividade mais importante do centro, Lourdes oferece uma reflexão sobre a contribuição mais ampla que é possível através de seu trabalho: “Nossa batalha agora é que, tem que haver respeito”, diz ela. “Não é por que a pessoa está assim velha, morrendo que não tem direito. Pelo contrário, eu acho que agora, quando ela mais precisa, é que ela tem que ser cuidada, tem que ter uma cultura, uma política eficiente, eficaz para isso”.
Ela considera que a promoção do modelo da Casa de Santa Ana para outras comunidades em todo Rio de Janeiro e do Brasil seja um passo importante para alcançar este objetivo; ela frequentemente dá palestras em conferências e traz grupos para o projeto. O que não se perde nesta busca, no entanto, é o esforço significativo do projeto em influenciar percepções culturais do envelhecimento e reconhecer os direitos dos idosos, pessoa por pessoa, dia após dia, na Cidade de Deus.