A favela mais antiga do Rio, o Morro da Providência, fica só a 2km da Cidade Nova, que hoje em dia é conhecida principalmente como a sede da prefeitura do Rio. Os soldados que regressaram em 1897 da Guerra de Canudos nomearam o morro de Morro da Favela. ‘Favela’ era o nome de outro morro perto dos campos de batalha de Canudos, assim como o nome coloquial de uma planta nativa (Cnidoscolus quercifolius) muito prominente na área. Com o rápido povoamento de outros morros próximos por migrantes ou outros cidadãos deslocados durante as reformas urbanas do prefeito Pereira Passos e o subsequente desenvolvimento da cidade, durante as primeiras décadas do século 20, esses outros morros também assumiram o nome de ‘favela’. O morro perto da Cidade Nova começou então a ser chamado de Morro da Providência, porém já havia consolidado o seu impacto no futuro do Rio de Janeiro.
A Cidade Nova, localizada no coração geográfico entre a Zona Norte e a Zona Sul do Rio, é um ponto fundamental de referência para se entender a cidade contemporânea. Também é o assunto de um novo livro fantástico de Bruno Carvalho, carioca e professor na Universidade de Princeton. O livro de Carvalho, Cidade Porosa: Uma História Cultural do Rio de Janeiro, explora o significado do bairro desde que a capital do Império português se mudou para o Rio em 1810, passando pela independência, a belle époque carioca e até o século XX. Ele foca na literatura (incluindo um capítulo maravilhoso sobre Machado de Assis), mas também incorpora estudos de outras fontes, incluindo dados sobre crescimento populacional e o desenvolvimento na área da Cidade Nova.
Favelas, por uma variedade de razões, cresceram em número e em termos do percentual da população que lá morava. Se tornaram uma parte integrante da cidade. Foi na Providência e arredores que surgiu o samba e o carnaval, entre outros elementos que são hoje vitais para a essência cultural do Rio. Com o crescimento do bairro no século XIX, escritores começaram lentamente a se envolver com esta ‘cidade nova’ que se encontrava lado a lado com a parte mais antiga e rica do Rio. O reconhecimento da região como um espaço dinâmico na história cultural do Brasil veio com Machado de Assis e outros autores no fim do século XX. Carvalho explora essa ideia profundamente e introduz a ideia de ‘porosidade’ como um desafio fundamental e direto à noção da ‘cidade dividida’. Ele escreve, “a ideia–ou pelo menos a hipótese–que existem ‘dois Rio de Janeiros’”surgiu no começo do século XX quando a Cidade Nova se tornou uma fronteira “entre o Rio como capital do Brasil e uma completa ‘outra cidade’, um ambiente semi-urbano de negros de pés descalços e de um ritmo mais melancólico e descontraído”. Esta percepção injusta de divisão e separação, levando à estigmatização, persistiu e aumentou, e é fundamental em conceitualizações típicas da cidade, tanto de dentro quanto do exterior.
O livro de Carvalho trata principalmente do período até os meados do século XX, quando Getúlio Vargas construiu uma avenida nomeada em homenagem a si mesmo e que corta a Cidade Nova, realocando muitos moradores e destruindo sua comunidade em geral. A Cidade Nova e a área portuária próxima sempre foram partes importantes e essenciais da cidade–para não mencionar as favelas espalhadas pela cidade que são espaços comunitários vibrantes–mas durante o começo e meados do século XX estas áreas se encontraram a caminho de um ‘progresso’ cego. Exatamente o mesmo fenômeno tem ocorrido hoje em dia: o Rio se encontra novamente em um cruzamento da sua história, um momento de visibilidade internacional, e julgou oportuno tomar vastas (e insensíveis) ações.
Infelizmente, o Rio está perdendo a oportunidade de evitar os erros do passado. Carvalho descreve o que aconteceu nos anos 40 com políticas de pouca visão que só foram vistas como tal depois do ocorrido, quando ficou claro que o que existia antes tinha de fato valor. Podemos ver isso outra vez atualmente, com a implementação ineficiente de políticas com pouca visão (como remoções por exemplo) e é só então que fica claro que, na verdade, as favelas representam uma parte vital na composição vital da cidade e têm que ser escutadas. Artisticamente e esteticamente, o artista francês JR declarou isso quando usou a Providência e sua arquitetura como tópico e como parte integrante do seu projeto Women Are Heroes (Mulheres são Heroínas), que homenageou moradoras desconhecidas em um ambiente machista. Simbolicamente, JR mostrou que não é preciso dominar ou se apropriar da favela, mas que em vez disso, as pessoas podem trabalhar juntas, criar e desenvolver juntas, e produzir uma solução que é inteligente para necessidades distintas e que não se desenvolva somente de cima para baixo.
A percepção de que não há ‘dois Rios’–alguns cidadãos querendo, ou não, reconhecer–e de que a vitalidade das favelas é fundamental para o futuro dinamismo cultural da cidade, provavelmente virá tarde demais. A perspectiva predominante é de que favelas são um problema ou uma questão que precisam de uma solução de cima para baixo em vez de trabalhar junto com as comunidades da cidade e escutar o que elas têm a dizer antes de implementar políticas e intervenções. Numa conferência do TED, Ernesto Sirolli, uma autoridade aclamada e notável em desenvolvimento econômico sustentável, explica como escutar leva muito mais longe. Trabalhar com pessoas e comunidades para estabelecer as melhores mudanças é o melhor caminho a seguir, em vez de políticas sem visão focadas em agradar os interesses de investidores de curto prazo.
É irônico que a prefeitura do Rio, onde políticas de cima para baixo são desenvolvidas a portas fechadas, e seu pretensioso Centro de Operações, estão localizados no meio do que foi antes a vibrante e movimentada Cidade Nova. Hoje a área pode ser vista como a marca da divisão entre a Zona Norte e Sul, com a sede de poder da cidade em frente à mais antiga favela da cidade. Mas como Carvalho esclarece, é ingênuo ver o Rio simplesmente como uma cidade dividida, e quanto mais cedo os legisladores entenderem isso melhor.
Tom Winterbottom está concluindo sua tese de doutorado na Universidade de Stanford, no departamento de Culturas da Península Ibérica e da América Latina. Sua pesquisa se concentra no estudo cultural dos centros urbanos, e ele está escrevendo sua dissertação sobre as representações culturais do Rio de Janeiro contemporâneo e os efeito dos Jogos Olímpicos.