Hugo José Camarate, nascido e criado no Horto Florestal, fundou o bloco de rua Vagalume O Verde em 2005, buscando ressuscitar as suas lembranças infantis no Horto, quando os blocos carnavalescos uniam sua comunidade com magia e fantasia todo ano. Vagalume O Verde não é como qualquer outro bloco de carnaval, pois ele destaca a sustentabilidade. O bloco reaproveita materiais para criar seus estandartes e fantasias, e planta mudas para neutralizar suas emissões de CO2. Vagalume O Verde celebra a comunidade do Horto, seus personagens famosos, seus valores e a sua resistência.
Hugo deixou seu trabalho como produtor cultural de televisão em 2011 para se dedicar exclusivamente ao bloco, à ONG Organização Sociocultural e Ambiental Vagalume O Verde e à liga carnavalesca da qual faz parte, Amigos do Zé Pereira. Ao seu ver, o bloco é um elemento de união importante para a comunidade, já que o Horto tem sofrido ameaças de remoção contínuas durante décadas por causa da especulação imobiliária. As ameaças têm se intensificado nos últimos anos, resultando na remoção de quatro famílias.
RioOnWatch: Há quanto tempo você mora no Horto Florestal?
Hugo: Tenho 40 anos. Nasci e me criei no Horto, passei a maior parte da minha vida aqui. Essa história de vida ela já vem de antes da minha chegada, dizemos assim. A minha mãe nasceu aqui também, a gente foi criado aqui. Desde os avós, que passou para os pais e que hoje tá na nossa geração.
RioOnWatch: Pode contar a história do projeto, como começaram o bloco Vagalume O Verde e a ONG?
Hugo: Aqui no Horto, desde pequeno a gente foi acostumado a esse tipo de cenário de evento cultural. Aqui, ao longo dos anos nós assistimos diversos blocos carnavalescos, os clubes religiosos que acabavam se transformando em grandes eventos, as festas juninas. A gente, aqui no Horto, desde pequeno foi habituado a esse tipo de evento por conta desses nossas antepassados que praticavam muito o movimento cultural comunitário. E isso desde sempre representou muito para a gente. Era carnaval, todo mundo na rua, mas durante um período, no período já na fase adulta das nossas vidas, esse movimento cultural todo sumiu daqui. Praticamente se apagou.
E aí isso começou a fazer parte do nosso cotidiano, das nossas discussões de porta de baile, botequim. “Cara, cadê o que a gente tinha aqui, cadê o nosso patrimônio cultural, o que a gente viveu?” E aí, veio essa ideia da gente fundar um movimento cultural que pudesse estar dialogando com a comunidade, resgatando essa potência do passado, desses eventos–que acabava trazendo todo mundo para discutir assuntos importantes, principalmente a questão desse massacre que já vem há décadas por conta dessa questão da moradia, e a permanência dos moradores do Horto no local.
Era um período também que o Rio de Janeiro começa a trazer de novo esse movimento dos blocos de rua. No Rio isso foi meio que geral, e principalmente aqui na Zona Sul.
Além dessas características anteriores, pensamos em poder passar a ideia dessa experiência dos moradores daqui do Horto, em relação a intimidade com a natureza, devido a proximidade que a natureza aqui abriga, e a gente poderia estar diante disso juntando esse movimento do carnaval com essa ideia do meio ambiente, de preservar, de entendê-lo diante de uma dinâmica totalmente divergente do contexto que é o carnaval.
E a coisa deu certo. A gente começou a se caracterizar, desde a coisa mais simples que a gente poderia fazer, no caso reaproveitar o material, para construir uma alegoria, um adereço ou uma fantasia. A gente mergulhou no implemento da Norma ISO 20121 que é uma norma internacional de gestão de eventos sustentáveis. E isso foi bacana porque a gente começou a ter repercussão, o bloco saiu no primeiro ano, em 2005, com duas mil pessoas, sendo que a gente não fez divulgação nem nada, mas acabou que a gente voltou a sair e o número subiu para 3.000, 4.000, no outro ano 5.000, daqui a pouco tinha 10.000 pessoas na Rua Pacheco Leão. A Prefeitura ficou desesperada de ver o número crescente. O bloco já estava inserido dentro do calendário cultural da cidade do Rio de Janeiro. Foi quando rolou convite para a gente fazer no Jardim Botânico. E hoje a gente taí. Em 2007, a gente desfilou com 50.000 pessoas na rua.
E apostamos nessa característica do bloco, dando voz para que essa comunidade pudesse, através do carnaval, estar falando dos seus desejos, seus anseios, suas vitórias e suas derrotas, mas, também com uma nova característica na qual a gente pudesse estar trazendo uma educação diferenciada, com os elementos de educação ambiental. Isso não era nada além do que as pessoas daqui já sabiam fazer. Como a gente ia falar com as crianças sobre educação ambiental? ‘Vamos tentar como os velhos. Como é que eles falavam com a gente? Como é que o Tio Pedro conversava com a gente sobre o meio ambiente, sobre educação ambiental?’
A gente também queria mostrar isso para as pessoas, que a gente está aqui para abraçar a cidade. A gente está aqui para falar das nossas características. A gente está aqui para falar da nossa ancestralidade, do fato da comunidade ser uma comunidade bicentenária, dos nossos valores, dessa questão da intimidade que a comunidade possui com a natureza, dessas pessoas que aqui tiveram antes da gente, e que movimentaram isso, preservando a natureza, atuando dentro do Jardim Botânico, na manutenção do parque.
Acho que foi só uma questão da gente perceber, quem nós éramos.
RioOnWatch: Como o bloco destaca a questão da sustentabilidade?
Hugo: Desde do início nós sempre estivemos preocupados com essa questão ambiental, de como a gente poderia estar nos caracterizando no carnaval. Então por conta da dificuldade financeira que tínhamos no início–porque naquela época já em 2005, colocar um bloco na rua já não era uma coisa tão fácil–a gente começou a reaproveitar os materiais, e observamos que essa seria uma característica que a gente ia levar adiante. O nosso desejo maior seria justamente deixar isso para que as próximas gerações pudessem melhorar, evidenciar, torná-lo mais bonito, mais atraente, mais bacana.
E aí, voltamos à questão estética, a gente partiu para esse mundo do reaproveitamento, reutilização de material–o lixo ia virar o estandarte junto com bambu que o primo pegava no quintal da casa dele para fazer um tipo de cenografia, e os destaques vieram dentro dessa dinâmica. A gente começou ali de maneira amadora, amadora até no sentido de amor mesmo, de fazer com amor.
Hoje como exemplo, a parte estética do bloco ligada a questão do reaproveitamento, gerou uma parceria que a gente efetivou em 2015 com o Galpão das Artes Urbanas, um projeto da Comlurb e da prefeitura do Rio de Janeiro, que e é um projeto de artistas do Rio, que trabalham com essa estética de reaproveitamento, de reutilização de materiais.
Então nós vimos que poderíamos ampliar a compensação ambiental ainda mais plantado mudas. A gente fez uma parceria com o Jardim Botânico, eles doaram as mudas pra gente, mas a gente tinha como produzir essas mudas. Porque até quem produzia as mudas dentro do Jardim Botânico eram essas pessoas que estavam a frente do projeto do bloco Vagalume O Verde. Então a gente começou a planejar: ‘Vamos trabalhar com as nossas sementes, com a nossa muda’.
Então, isso também foi tomando uma proporção muito bacana, e hoje, a gente acredita que isso pode se tornar um projeto gigantesco, onde nós podemos estar abraçando mais comunidades pela cidade do Rio, podendo estar impactando mais vidas, mais pessoas, diante dessa característica do bloco. Desde o início o bloco se preocupava em compensar o impacto ambiental, mas nós temos os pés no chão, pois essa sustentabilidade que a gente busca com o bloco, a gente sabe que nunca vai alcançar uma sustentabilidade plena. Mas o que move a gente, o que anima a gente, o que estimula a gente, é a gente seguir essa diretriz, em termos de preservação, manutenção do meio ambiente, compensação ambiental.
RioOnWatch: Como o projeto se financia?
Hugo: Desde o início, de 2005 até 2009, o projeto foi feito tirando o dinheiro do nosso bolso. E isso sempre foi uma dificuldade para a gente.
Em 2009, um amigo meu me chamou pra conversar sobre a possibilidade da gente colocar o projeto do bloco Vagalume O Verde vinculado à Secretaria de Cultura do Estado através da Lei de Incentivo, através de um edital que a Secretaria do Estado oferece para projetos especiais. E foi quando em 2009, o Vagalume se tornou o primeiro bloco do Estado do Rio de Janeiro a conseguir financiamento via a Lei de Incentivo.
Em 2011, conversei com esse mesmo amigo sobre a possibilidade de fundar uma liga carnavalesca, uma liga carnavalesca que pudesse trazer mais blocos para o nosso mundo, e para que a gente pudesse dialogar diretamente com o poder público para trazer melhorias para o carnaval de rua. Hoje somos nove blocos ou dez, no total.
O bloco é nossa ferramenta de comunicação mais potente. É o que a gente sabe fazer, é o que a gente aprendeu a fazer.
Foi muito difícil a gente conseguir estar com o bloco aí. Acaba que hoje pra colocar um bloco na rua você precisa realmente ter recursos financeiros. E eu acho que diante de uma festa onde você vê que o poder público se beneficia, as empresas privadas se beneficiam, a rede hoteleira se beneficia, as cervejarias se beneficiam, os blocos hoje em dia eles estão sufocados. Porque o recurso não está entrando para essa parte da festa ser feita. Porque se a gente for parar pra ver o cenário do Sambódromo, a grande festa que é o carnaval dentro da Sapucaí, você tem dentro do Sambódromo 80.000 pessoas numa noite de desfile. A gente bota até 50.000 aqui. Durante quatro horas, num dia. Tem um bloco que bota 500.000 pessoas na rua. Então você vê que quem realmente faz a festa é o carnaval de rua. É o poder que está na rua.
E a gente como gestor de bloco, a gente precisa cada vez mais discutir isso, trazer à discussão essa questão, porque senão a gente corre o risco de a médio ou longo prazo, digamos, acontecer um sumiço desses movimentos em determinados lugares da cidade do Rio de Janeiro.
RioOnWatch: Como é que o bloco aborda a luta da comunidade do Horto pela moradia?
Hugo: Como é que a gente ia passar quem nós éramos, a nossa história, os nossos antepassados, a questão do conflito, de território? A ideia de fazer um bloco de carnaval, ela já carregava todo esse movimento de comunicação. Porque a gente já entendia por conta até da nossa vivência aqui dos blocos anteriores, que o carnaval consegue transmitir algo. E aí, com a história do carnaval, a gente começou a pensar, “Peraí, carnaval, a gente tem que cantar, né?” Então se a gente vai cantar, vamos cantar os clássicos das sambas, vamos trazer as marchinhas antigas, rememorar Haroldo Lobo, que foi um grande compositor do gênero, mas vamos também falar da história da comunidade, vamos falar também do problema que essas pessoas enfrentam há mais de 30 anos, 40 anos, aqui nessa incerteza, esse terrorismo que é feito. Então vamos começar a trazer essa história, transformado em samba, em carnaval, por que não?
E aí, a gente começou a abrir, dentro da comunidade, essa perspectiva, de reunir os amigos, reunir o grupo de pessoas, entender a cada ano qual era o contexto daquele ano. Mas pensando essa questão toda dessa briga, da questão da moradia, e como a gente poderia traduzir aquilo em samba. A ideia foi sempre, através dos sambas também estarmos falando da história da comunidade. Tanto é que em 2012, a gente fez um samba em homenagem ao Tio Pedro e ao Folha Seca, que faleceu agora recentemente com noventa e tantos anos. São dois personagens autênticos da história do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico, que eram moradores daqui do Horto. Então, a gente viu: ‘Olha só que maneiro, a gente vai falar de dois personagens importantíssimos pra história da comunidade do Horto, que são os protagonistas desse conflito, só que a gente vai contar essa história de uma maneira diferente, através do nosso olhar, através dos nossos sentimentos, através da nossa verdade’.
E aí nós fizemos o samba, letra e melodia e ficou uma coisa maravilhosa. Sou suspeito pra falar, mas eu tenho relatos e registros, inclusive eu assisti com os próprios olhos pessoas emocionadas chorando no Jardim Botânico no dia do desfile quando a gente começou a cantar.
RioOnWatch: Gostaria de comentar mais alguma coisa?
Hugo: Foi muito importante para a gente também o acolhimento que a gente teve. Um fator preponderante até para a gente ter conseguido colocar o bloco na rua, digamos assim, ao pé da letra, foi esse acolhimento. E isso gerou para a gente inclusive uma facilidade para conseguir transmitir o que a gente estava propondo, por conta desse acolhimento que se deu através do espaço cedido dentro da própria comunidade, que foi o antigo clube. O grêmio recreativo dos antigos funcionários do Jardim Botânico, o Caxinguelê, que era um clube histórico, não só para a comunidade do Horto, mas para a cidade do Rio de Janeiro inteiro.
E a gente viu que no primeiro movimento de retomada de posse de território aqui, o Caxinguelê passou a ser do Jardim Botânico. A gente hoje está numa situação de angústia pois parece que fomos separados do nosso cordão umbilical.
E hoje o Vagalume tem muito isso como premissa, a gente conseguir retomar a própria comunidade do Horto de fato, viver no local, tornar os projetos novamente acessíveis a toda a comunidade, e às pessoas da sociedade como um todo.