Caros Projetos de Transporte dos Megaeventos Não Resolveram a Mobilidade, Nem a Desigualdade

Saem os Resultados de Pesquisas Sobre Mobilidade Pré e Pós-Olimpíadas

Click Here for English

“A decisão da cidade de se candidatar a sede dos Jogos de 2016 foi tomada a partir de uma visão de longo prazo: percorrer o caminho, aberto com uma vitória da candidatura, da transformação do Rio em uma cidade melhor para se viver e trabalhar… Os Jogos poderiam ajudar a reduzir distâncias geográficas e sociais e tornar a cidade e suas diferentes regiões mais integradas.” — Rio 2016 Jogos Olímpicos e Legados Cadernos de Políticas Públicas

“E o maior beneficiado será o trabalhador de menor renda, morador dos bairros mais distantes, que hoje gasta mais tempo de seu dia no trânsito.” — Rio2016 Cidade Candidata – Caderno do Legado Urbano e Ambiental

Há uma longa lista de promessas de legados das Olimpíadas do Rio que foram abandonadas antes dos Jogos começarem (ver: cada um dos legados ambientais) ou que efetivamente entraram em colapso (ver: o programa de pacificação; a infraestrutura esportiva subutilizada).

O transporte se destacou como a área em que a Prefeitura do Rio mais entregou os elementos tangíveis que foram prometidos: três corredores de BRT, um VLT (ainda inacabado) e uma linha de extensão do metrô. Com poucos dados oficiais que mostrem os impactos desses novos projetos de transporte, a lógica por trás da retórica das autoridades da prefeitura e do Comitê Olímpico parece ser: ‘essas rotas não existiam antes e existem agora, portanto a mobilidade urbana melhorou!’

Em um evento sobre mobilidade urbana organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na segunda-feira, 6 de novembro, o pesquisador Juciano Rodrigues do Observatório das Metrópoles explicou que a ênfase em transporte serviu para legitimar mais amplamente o discurso do legado Olímpico, e assim “justificar todos aqueles gastos que estavam sendo feitos”. No entanto, o primeiro painel do evento do Ipea ofereceu provas e argumentos contundentes para desbancar afirmações do governo de que esses extensos investimentos recentes em transporte tiveram um impacto transformativo.

A nova infraestrutura de transporte melhorou a mobilidade?

Rafael Pereira, um pesquisador no Ipea e na Universidade de Oxford, traçou sua rigorosa investigação acerca dos impactos da infraestrutura na mobilidade urbana e demonstrou que o acesso à empregos formais e escolas secundárias públicas na realidade diminuiu de abril de 2014 para março de 2017.

Após coletar dados sobre distribuição da população, distribuição de escolas públicas e empregos formais, e sobre os locais e cronogramas do transporte público no município do Rio, Pereira descobriu que, em média, o percentual de empregos formais acessíveis aos moradores em menos de uma hora de viagem de porta à porta caiu em 4,5%, enquanto o número de escolas públicas acessíveis em menos de uma hora caiu em 6,1%. Ou seja, comparado ao começo de 2014 quando só uma linha BRT estava operando, hoje o morador médio tem acesso a menos empregos e oportunidades educacionais a uma distância de menos de uma hora de suas casas.

Como essa redução é possível, considerando a introdução de uma nova infraestrutura de transporte? O problema, Rafael explicou, tem origem em outras mudanças no transporte público feitas entre 2014 e 2017: o sistema de ônibus passou por um processo de “racionalização” no qual muitas linhas foram alteradas ou extintas, e algumas companhias de ônibus faliram no contexto da crise financeira de modo que os serviços foram mais reduzidos. O pesquisador concluiu que isso “reduziu significativamente os potenciais ganhos de acessibilidade dos investimentos do legado”. Ele e seus colegas refizeram os cálculos para um cenário “contrafactual” imaginário, onde a infraestrutura de legado havia sido introduzida, mas essas outras mudanças não haviam acontecido; nesse caso, eles descobriram que a introdução da nova infraestrutura teria aumentado o acesso da população à empregos e escolas (em 13.4% e 11.7%, respectivamente).

Sendo assim, defensores das Olimpíadas podem tentar argumentar que os investimentos em transporte teriam de fato deixado um legado positivo se não fosse pela crise financeira, que estava (majoritariamente) fora do controle das autoridades da prefeitura. No entanto, muitos cortes à linhas de ônibus já estavam programados para seguir a implantação das rotas do BRT; não é claro quanto da redução dos serviços de ônibus aconteceram como resultado da crise. Como Juciano apontou, algumas das linhas de ônibus que foram cortadas devido ao processo de ‘racionalização’ iam da Zona Norte, que concentra a classe trabalhadora, para a Zona Sul, o que causou protestos públicos pois isto foi visto como um esforço intencional para excluir cidadãos mais pobres de áreas turísticas. Para somar mais uma crítica à “racionalização”, a participante do painel e diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), Clarisse Cunha Linke, observou que a restruturação marcou não só a perda de certas linhas de ônibus, mas também interrompeu a “leitura afetiva da cidade” da população, já que os moradores perderam a sensação de segurança, familiaridade, e até da identidade como cidadãos decorrente de conhecer quais ônibus iam para onde.

Quem se beneficiou?

Independentemente dos impactos da crise econômica, a pesquisa de Rafael também mostra que o legado em infraestrutura de transporte beneficiou mais moradores de áreas mais abastadas do que moradores de áreas de renda baixa. O maior beneficiário portanto não foi–como defendido no Cadernos de Políticas Públicas Rio 2016 Jogos Olímpicos e Legados–“o trabalhador de menor renda, morador dos bairros mais distantes, que hoje gasta mais tempo de seu dia no trânsito”. Até na situação contrafactual na qual o Rio de Janeiro evitava a crise financeira, os bairros mais ricos iriam ganhar mais com os investimentos de legado.

Esses gráficos mostram que a maioria das áreas que viram maior acesso a empregos formais (representados por bolhas acima da linha diagonal) eram bairros de renda mais alta (representados em azul). As áreas de menor renda (representadas em vermelho), em contraste, são mais freqüentemente abaixo da linha, o que significa que seu acesso a postos de trabalho diminuiu. Gráficos de Pereira et al., In Press.

Clarisse Linke, do ITDP, defende que é essencial estudar esses tipos de dados em termos de distribuição espacial em mapas, porque “só um número não conta uma história suficiente para a gente discutir politica pública no Rio”. Ela notou que entre 2010 e 2015, a porcentagem da população do Rio morando a uma distância menor de um quilômetro (uma caminhada de 15 minutos aproximadamente) de um transporte público teve uma melhora significativa, mas desmembrar esses dados por localização e nível de renda evidencia uma desigualdade substancial, com porcentagens menores para bairros de baixa renda e moradores da região metropolitana mais ampla.

Distribuição de renda no Rio (vermelho = baixa renda, azul = alta renda). Imagem de Pereira et al., In Press.

Um membro da plateia, no evento de segunda-feira, questionou se todos os investimentos em transporte podem, inevitavelmente, melhorar o acesso principalmente para áreas mais abastadas, já que áreas mais ricas têm uma chance maior de já estarem conectadas ao sistema. Essa observação bate de frente com a linguagem de “transformação” e “inclusão” usadas na promoção dos projetos de legados Olímpicos, e sublinha que simplesmente construir alguma coisa não garante impactos positivos para quem mais precisa.

Fatores que contribuem para desigualdades em mobilidade

Todos os painelistas enfatizaram que um punhado de problemas simultâneos tiveram um papel na manutenção ou crescimento das desigualdades no Rio pré-Olimpíadas. Primeiramente, quando perguntamos quem se beneficiou dos investimentos no transporte, como aponta Rafael, a resposta claramente não é as famílias que foram removidas, explicitamente, para abrir espaço para a infraestrutura entre 2009 e 2015. Muitas dessas famílias foram reassentadas em unidades habitacionais do Minha Casa Minha Vida (MCMV), 90% das quais estão na parte da extrema Zona Oeste nomeada de Área de Planejamento 5, onde Clarisse notou que apenas 30% dos complexos do MCMV estão localizados dentro de um quilômetro de uma estação ou parada de ônibus.

O fracasso em integrar melhor políticas de moradia e transporte no desenvolvimento do megaevento foi uma oportunidade perdida, ela refletiu: “Ao mesmo tempo a gente tem uma política habitacional que coloca um empreendimento como o Minha Casa Minha Vida Jesuítas, por exemplo, a seis quilômetros de Santa Cruz, a centralidade mais próxima. Na época que a gente fez a pesquisa, [o MCMV Jesuítas] estava a um quilômetro e meio de um ponto de ônibus. E sem nenhuma forma de pegar um trem–só um ponto de ônibus!” Ela completou que esse isolamento traz o risco de tornar o complexo habitacional um “gueto”, exacerbando desigualdades sociais.

Porcentagem de pessoas que passam mais de uma hora se deslocando para o trabalho. Em Japeri, 47% trabalham no Rio e 54% deslocam-se mais de uma hora. Mapa da Casa Fluminense.

Além das remoções, Clarisse destacou que os recentes projetos de transporte não conseguiram abordar outras tendências de moradia e emprego: “A gente continua empurrando a cidade para a Zona Oeste–a moradia para a Zona Oeste, não necessariamente as novas oportunidades, não necessariamente fortalecendo emprego”. Ela enfatiza que a Área de Planejamento 5, a parte do município mais distante do Centro do Rio, é responsável por 27% das moradias, mas apenas 4% dos empregos. Em contraste, a Área de Planejamento 1, que engloba o Centro do Rio e a Zona Portuária, é responsável por 4% das moradias, mas 38% dos empregos. Ela descreve esse cenário como “um problema que nasce na moradia, mas na verdade é um problema que vai cair na mobilidade”. Ao invés de desenvolver rotas caras de transporte que exigem que os trabalhadores gastem horas se locomovendo, Clarisse defende que se desenvolvam oportunidades em áreas concentradas da Zona Oeste ou outros municípios na região metropolitana.

Além disso, há a questão da acessibilidade dos preços. Rafael apresentou dados mostrando que as viagens diárias para o trabalho que demandam apenas um ônibus ou BRT representam 43% da renda dos 10% mais pobres. Essa porcentagem aumenta se a viagem diária envolve o trem ou metrô, pois o preço dessas passagens é mais alto e não há integração. Como os custos do transporte aumentaram ao longo dos últimos anos–além da taxa de inflação, como nota Juciano–o número de passageiros em ônibus e linhas de BRT diminuiu, aumentando o rombo financeiro das empresas de ônibus. O aumento da inacessibilidade e diminuição do número de passageiros sugerem que o acesso da população de baixa renda a trabalho e escola podem ter reduzido ainda mais no período de 2014-2017 do que a quantidade registrada no estudo de Rafael.

Pensamentos finais

Juciano deixou claro que as outras cidades-sede da Copa do Mundo ao redor do Brasil tiveram planos ambiciosos similares com alguns resultados desastrosos. Ele evidencia como apenas uma fração dos R$8 bilhões direcionados à desenvolvimentos em transporte através de 11 cidades-sede foi de fato gasta, mesmo enquanto diversos dos projetos implementados custaram mais que o orçamento devido à corrupção e atrasos. O pesquisador concluiu que em contraste com as afirmações grandiosas feitas no discurso do legado do megaevento, a nova infraestrutura de transporte “reproduziu um modelo de desenvolvimento urbano segregado, fragmentado, e excludente”.

Em resposta a um membro da plateia que sugeriu que os resultados da pesquisa sobre a continuidade das desigualdades não eram nenhuma novidade, Rafael observou que “é um paradoxo” pois “ nós falamos as mesmas coisas há 30 ou 40 anos”, mas o governo “continua refazendo investimentos que reforçam as desigualdades”. Ao invés disso, membros do governo–seja municipal, estatal ou federal– deveriam incorporar o tipo de metodologia modelado pela pesquisa de Rafael, patrocinando pesquisas independentes para projeções de impacto e avaliações, e em seguida compartilhar esses resultados publicamente para aumentar a transparência de projetos que afirmam transformar a sociedade.