
Esta é a primeira de duas reportagens complementares à cobertura oficial do 2º Festival Favela Sustentável. Clique aqui para ler a segunda.
Realizado pela Rede Favela Sustentável (RFS)*, o 2º Festival Favela Sustentável ocupou o coração da cidade do Rio de Janeiro no dia 18 de outubro, oferecendo 140 atividades organizadas por coletivos de favelas e aliados do Grande Rio. Uma das novidades da segunda edição foi um espaço especial dedicado à promoção da segurança e soberania alimentar e à preservação do patrimônio culinário das favelas. Reunindo mobilizadores comunitários e outros membros da sociedade civil as atividades neste espaço também discutiram o papel da alimentação nas estratégias de enfrentamento à crise climática.
Diversas atividades apresentaram experiências que já vêm transformando a realidade de suas comunidades. Entre elas, projetos dedicados ao cultivo agroecológico, à formação em culinária ancestral e à criação de redes de abastecimento solidário demonstraram como a ação conjunta fortalece a autonomia comunitária e cria soluções à insegurança alimentar que, como efeito das mudanças climáticas, tende a se agravar.
Duas destas atividades foram rodas de conversa—uma com o Coletivo de Erveiras e Erveiros do Salgueiro, outra “De Mãos Dadas por Alimentos Melhores” organizada pelo Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Município do Rio de Janeiro (CONSEA). Nas trocas, membros dos Erveiros se queixaram da falta de apoio do município ao programa Hortas Cariocas, que atua junto ao grupo no cultivo de alimentos e plantas medicinais na comunidade do Salgueiro. De acordo com Jorge Silva, representante do CONSEA, que participou da roda, o encontro proporcionou a oportunidade de reconhecer os problemas apontados e articular uma maior aproximação entre o poder público e as iniciativas comunitárias, buscando solucioná-los.

Em 2024, a Frente Parlamentar contra a Fome e a Miséria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em parceria com o Instituto de Nutrição Josué de Castro, da UFRJ, publicou o primeiro estudo do Mapa da Fome da Cidade do Rio de Janeiro. O estudo identificou desigualdades geográficas no acesso à alimentação adequada e de qualidade, mostrando que as famílias da Zona Norte e Zona Oeste são as que mais convivem com a fome, sendo o Complexo do Alemão, Maré e Penha, o bairro de Madureira e a favela do Jacarezinho os mais impactados pela insegurança alimentar.
Outra atividade que discutiu a agroecologia comunitária como caminho para a segurança alimentar, o “Baú do Plantar: Horta Social para a Terceira Idade”, protagonizada por moradores do Parque Arará, da Zona Norte, também marcou presença no festival. A iniciativa reúne ações voltadas à agroecologia, à educação ambiental e à saúde mental, todas desenvolvidas em parceria com a Clínica da Família Medalhista Olímpico Maurício Silva. Uma das ações do projeto, a Horta Social, é concebida a partir do conceito de ecologia profunda. Essa definição, formulada pelo ativista e filósofo ambiental Arne Naess, parte do princípio de que a natureza e todos os seres vivos têm valor intrínseco e não existem a serviço da humanidade, ao contrário do que prega a lógica dominante. O projeto entende sustentabilidade como uma cadeia que depende de uma série de processos para garantir a segurança alimentar, considerando a preparação do solo como a base para o cultivo de um alimento verdadeiramente saudável.
“A pessoa pode até fazer um trabalho sustentável de produzir um alimento pela via agroecológica e tudo, mas se o vizinho está pulverizando agrotóxico, aquela nuvem de veneno vai atingir ele também, vir pela água, pelo solo. Então, quando a gente tá falando de segurança alimentar, a gente tá pensando em uma proposta de mudança de mundo que se baseie na ideia da ecologia profunda, e é isso que o trabalho procura priorizar.” — Sérgio Anversa, biólogo, professor de meio ambiente e aliado técnico da Horta Social do Parque Arará
Integrantes do projeto contaram que, neste mês de outubro, firmaram parceria com o Instituto Araras, do Parque Arará, para trazer a educação ambiental à prática. A organização de base comunitária atua na promoção de iniciativas educativas e de desenvolvimento social junto a crianças e jovens do Arará. Vanessa da Silva, de 24 anos, cria da comunidade e atual diretora de sustentabilidade do Araras, conta que o trabalho do instituto representa o primeiro contato de grande parte dos atendidos pela organização com o tema ambiental. Além disso, Vanessa, doutoranda em Ciências Matemáticas e da Terra pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, está no processo de elaboração de um projeto que, com base em sua pesquisa acadêmica, pretende construir uma estação meteorológica para estudar os efeitos climáticos na qualidade do ar na região. Ela conta que os dados levantados no estudo servirão como complemento à atuação do projeto.
“Com os dados [levantados pela minha pesquisa], conseguiríamos analisar as fontes emissoras de poluentes, que estão ligadas às vias expressas e zonas industriais próximas a nós, e as fontes receptoras que são, inicialmente, a clínica e a horta. A partir disso, poderíamos entender que tipos de poluentes chegam ali e se eles apresentam algum risco à segurança alimentar da comunidade. Se eles mostrarem uma influência negativa para a plantação, a gente pretende elaborar novos projetos para pensar soluções que melhorem a qualidade do ar.” — Vanessa da Silva
Outra frente de atuação da Horta Social Lilian Cecília envolve à promoção da saúde mental e psíquica dos moradores. A partir do entendimento de que a estabilidade emocional e a autonomia são aspectos importantes na construção de um ambiente sustentável, o manejo da horta integra-se às atividades de artesanato realizadas com as mulheres da clínica local. O Movimento de Mulheres do Parque Horácio oferece cursos de formação com o objetivo de fortalecer redes de apoio entre as participantes e promover uma fonte alternativa de geração de renda. A artesã e criadora do Parque Arará, Ana Luísa Glaser Barbosa, de 53 anos, conheceu o coletivo de mulheres por meio da fundadora, Maria Aparecida Vieira, a Tia Cida, após passar por um período de depressão decorrente de episódios de violência doméstica sofridos durante a pandemia. Ana, cuja visão é comprometida por cataratas, destaca a importância do projeto para a criação de uma comunidade de apoio feminino e para a prática de atividades artísticas.
“Acho que esse tipo de atividade é fundamental nas comunidades, porque nem sempre as pessoas têm condição de ir a uma terapia. Até na própria Clínica da Família é difícil você conseguir uma consulta com o psicólogo, o psiquiatra. [Enquanto isso] no projeto, o momento do bordado é um momento de conversa, de troca, onde você coloca pra fora coisas que o seu coração tá cheio. Têm muitas mulheres que sofrem [com a] violência doméstica na comunidade, em silêncio, porque não têm com quem falar. No projeto, a gente cria essa comunidade. É também sobre entender e mostrar pro outro que isso é importante. O belo é importante na nossa vida.” — Ana Luísa Glaser Barbosa
O projeto planeja, futuramente, lançar um curso de formação em Educação Popular e Saúde, com base nos cultivos produzidos na horta da Clínica da Família.
Na parte da tarde, a cozinheira voluntária da organização Gastromotiva, Claudia Queiroga, da comunidade de Nova Campinas, conduziu a oficina “Conversa de Vó na Cozinha”. Claudia também está à frente do Doces Lembranças, projeto que une culinária e agroecologia, transformando, por exemplo, ingredientes como a jaca em pratos salgados inovadores. Durante a atividade, ela ensinou receitas com poucos ingredientes, utilizando o alimento em sua forma integral e destacando, junto aos participantes, a importância de evitar o desperdício e de valorizar cada etapa do preparo, como aprendeu nas conversas com sua avó.
“Eu busco a ancestralidade dos meus avós para basear minha culinária hoje. Procuro revisitar esses saberes. Minha vó sempre conversou muito comigo e minha família sobre o caminho que o alimento teve pra chegar até a nossa mesa, e fazer a gente valorizar cada etapa para não ter desperdício de comida.” — Claudia Queiroga
No dia, Claudia preparou um azeite aromatizado com talos variados que, quando processados, viram um molho pesto. Na mesma vasilha, ralou alguns vegetais, como cenoura, beterraba e abobrinha, apresentando o que chama de “vinagrete diferentão”. Ao falar dos tempos com a avó, a cozinheira lembra que as cascas de fruta eram sempre aproveitadas para compotas doces e infusões em bolos e sucos. Por parte da mãe, traz a memória afetiva do ovo mexido com bertalha e o clássico mate caseiro.

Claudia atribui sua formação e atuação ao contato com a rede da Gastromotiva. Desde 2006, a organização utiliza a gastronomia como ferramenta de resgate da dignidade humana e de combate à insegurança alimentar e ao desperdício, oferecendo uma experiência que valoriza tanto o alimento quanto quem o recebe. Seu modelo funciona por meio de um restaurante na Lapa que cobra pelo almoço do público geral para oferecer um jantar gratuito a pessoas em situação de vulnerabilidade social. Claudia ressalta a importância de garantir o acesso a alimentos de qualidade e o direito de escolha como princípio fundamental da cidadania.
“A gente tá falando o tempo todo sobre a importância do alimento, dessa cozinha que transforma. É sobre a oportunidade real de alimentar com dignidade porque isso é importante. E nós não estamos falando de qualquer alimentação, a gente não serve embutido, a gente não serve macarrão com salsicha. A gente serve comida de verdade: arroz, diferentes tipos de feijão, carnes de qualidade, legumes… A gente oferece também pratos veganos e vegetarianos… A justiça climática tem a ver com uma preocupação que vai além do meio ambiente. Temos que pensar também nas pessoas.” — Claudia Queiroga
Yamayck Libarino, nascido em Itabuna, no Sul da Bahia, de origem marroquina e criado na cultura islâmica, de 31 anos, vive no Rio e atualmente está em situação de rua. Ele é um dos beneficiados pelo projeto e foi convidado por Claudia para fazer parte da oficina. Yamayck conheceu a Gastromotiva por meio do Yoga de Rua, que facilita práticas e rodas de conversa e, em parceria com a Gastromotiva, oferece alimentação vegetariana à população em situação de vulnerabilidade social.
“Como meus pais eram rígidos na questão da doutrina [muçulmana, que só permite o consumo de animais abatidos pelo rito islâmico de nome Halal], eu cresci sem comer carne. Às vezes acontece de eu não ter opção. Quando passam as carreatas oferecendo comida pros moradores de rua, costuma ser macarrão com salsicha, aí eu como um pouquinho, ou dou pra alguém. Mas eu sou adepto mais da comida vegana e vegetariana mesmo.” — Yamayck Libarino
Neste ano, o 2º Festival Favela Sustentável mostrou, mais uma vez, que as soluções para a insegurança alimentar, bem como para outras situações que se agravarão com a crise climática global, emergem das periferias do poder, onde a criatividade coletiva e a organização comunitária se transformam em ações concretas em prol da mudança e do bem-viver. O festival potencializa iniciativas comunitárias, unindo-se em um grande pacto pela justiça climática e ambiental para as favelas do Rio de Janeiro.
Guarde a data! A Rede Favela Sustentável já confirmou que o 3º Festival Favela Sustentável será no dia 17 de outubro de 2026. Será ainda mais imperdível! Já marque na agenda!
Esta é a primeira de duas reportagens complementares à cobertura oficial do 2º Festival Favela Sustentável. Clique aqui para ler a segunda.
Veja o Álbum do Espaço Alimentação do 2º Festival Favela Sustentável no Flickr:
*O ‘2º Festival Favela Sustentável: Favela no Centro das Soluções Climáticas’ foi realizado pela Rede Favela Sustentável com o apoio do re:arc institute e a parceria da Fundição Progresso e CEDAE. O evento de 2025 também fez parte de três outras agendas essenciais pré-COP na cidade do Rio de Janeiro: a Virada Sustentável RJ, a 15a Semana de Agricultura Carioca e o Outubro Urbano da ONU Habitat. A Rede Favela Sustentável (RFS) e o RioOnWatch são iniciativas gerenciadas pela organização sem fins lucrativos, Comunidades Catalisadoras (ComCat).
Sobre a autora: Joana Stewart é aluna do quarto período de jornalismo da PUC-Rio, com interesse nas áreas de meio ambiente, cultura e política. Durante a graduação, tem participado de projetos de extensão, trabalhos externos e experimentado diferentes áreas da comunicação dentro e fora do ambiente acadêmico.

