Cidade de Deus!, por Marc Angélil e Rainer Hehl [RESENHA]

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Cidade de Deus! é uma publicação de 2013, de Marc Angélil e Rainer Hehl, em colaboração com Something Fantastic, baseada em pesquisas do programa de Mestrado em Estudos Avançados em Design Urbano da ETH Zurique. Apresentando um estudo de caso da Cidade de Deus (CDD), a partir de pesquisa histórica e uma análise sobre a forma como a CDD desenvolveu-se, desde o seu início como um projeto habitacional planejado até se tornar uma das favelas mais famosas do Brasil, o livro revela os reais processos arquitetônicos e as interfaces do relacionamento entre o formal e o informal no bairro.

A ditadura militar no Brasil começou há 50 anos em 1964. Este contexto de repressão política viu surgir no Rio uma política, lançada em 1963 pelo governador Carlos Lacerda, de erradicação das favelas da cidade, respondendo a intensa pressão de especuladores imobiliários buscando tomar posse das áreas valiosas onde essas comunidades se instalaram. O Estado construiu conjuntos habitacionais de baixa renda, principalmente na periferia ao norte e oeste da cidade, para realocar os moradores despejados das diversas favelas. Inicialmente vazias, essas áreas se expandiram geográfica e demograficamente com o surgimento de novos assentamentos planejados, como a Vila Aliança, Vila Kennedy, Vila Esperança e Cidade de Deus. Estes projetos de habitação pública modernistas abriram um mercado de habitação em massa no Rio de Janeiro e seus arredores, com milhares de moradores de favelas realocados, e, simultaneamente, abriram as comportas para futuras habitações informais.

A Cidade de Deus foi concebida como um projeto de habitação em 1964, sob o comando técnico da Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara (COGAB-GB), financiado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), e com a assistência econômica e técnica do programa estadunidense Aliança para o Progresso (Alliance for Progress), lançado em 1961 pelo presidente John F. Kennedy para promover crescimento econômico e reforma política na América Latina. Unidades habitacionais começaram a ser entregues em 1966, antes de estarem totalmente concluídas. O projeto foi planejado para abrigar cerca de 10.000 pessoas em suas 3.053 unidades habitacionais iniciais, tornando-se o maior complexo residencial construído por uma empresa de habitação do governo brasileiro.

No entanto, apesar de sua intenção original de trazer um impulso de modernidade para as classes trabalhadoras brasileiras, a Cidade de Deus ficou muito aquém de sua meta inicial, e presenciou uma degradação social que viria a ser um sintoma das falhas governamentais do programa, com problemas de crescimento urbano simplesmente sendo deslocados do centro para a periferia.

Além disso, a arquitetura e o design do projeto, que foram vistos por muitos como cópias baratas de habitação de classe média, eram inadequados para os recém chegados moradores da classe trabalhadora. As casas unifamiliares e blocos de apartamentos modernistas idênticos e em sequência quase infinita–os dois tipos de habitações construídas na Cidade de Deus–eram demasiadamente rígidos para os novos moradores e não planejados para o uso coletivo. Em Cidade de Deus!, Angélil e Hehl comparam este caso com o Cingapura, um programa de habitação pública mal executado em São Paulo, inspirado em projetos de habitação pública do país de Cingapura e iniciado em 1992, e com partes do atual programa habitacional Minha Casa Minha Vida, nos lembrando de que erros nos projetos de habitação popular construídos de forma ineficiente e genérica se repetem até os dias atuais.

Consequentemente, poucos anos após a sua conclusão, construções informais começaram a ocorrer para adaptar o espaço às necessidades dos moradores de Cidade de Deus. Hoje, uma vista aérea do bairro apareceria como racionalmente semelhante ao plano inicial, composto por lotes habitacionais geométricos e de tamanhos iguais. No entanto, a configuração espacial original de Cidade de Deus é dificilmente reconhecível partindo-se de uma escala menor de visualização. Através de diagramas e coleções de fotos apresentadas no livro, vemos que as fachadas foram transformadas em multi-facetadas interfaces comerciais e sociais para transeuntes. Casas de um andar passaram a contar com um segundo ou terceiro andar, além de outras adições como pátios cobertos, terraços e varandas, formando zonas tampões entre os espaços públicos e privados. Quiosques, academias e vários tipos de espaços sociais e comerciais foram criados para ativar o espaço morto entre as unidades habitacionais, transformando o bairro mono-funcional em uma área densa e complexa, que combina funções residenciais e comerciais em diferentes escalas. Sua massa híbrida pode parecer homogênea como um todo devido aos recursos materiais limitados da comunidade; contudo, não há dois edifícios na Cidade de Deus que se assemelhem devido a sua personalização para necessidades específicas.

O livro enfatiza a importância de representar a Cidade de Deus de hoje para além dos estigmas comuns associados as favelas. Na verdade, tendo crescido de forma isolada e muito marginalizada e, portanto, tendo permanecido fora do olhar do governo por muitos anos, a Cidade de Deus enfrentou questões importantes de segurança durante seus estágios iniciais, desencadeados pela pobreza urbana, a fragmentação social e a crise fiscal do governo durante a década de 1980 (conhecida como “década perdida” do Brasil). O bairro carrega a reputação infame de ser uma área violenta até hoje, enfatizada pelo filme Cidade de Deus de Fernando Meirelles e Kátia Lund de 2003, com base no livro best-seller de Paulo Lins.

No entanto, a Cidade de Deus hoje é um bairro vibrante e crescente, com uma Unidade de UPP desde 2009 e habitada por cerca de 40.000 habitantes. Devido à alta visibilidade midiática da área, a Prefeitura do Rio de Janeiro construiu várias instalações coletivas para prática de esportes, educação e outros eventos na comunidade. Mas mais do que ser apenas um ambiente urbano híbrido, a Cidade de Deus hoje tem uma forte identidade local, tendo a sua própria moeda desde 2011 (criada para estimular o comércio local) e uma capacidade de se auto-governar por meio de redes de associações da comunidade.

Com os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, a Cidade de Deus pode esperar, como podem muitas áreas na Zona Oeste do Rio de Janeiro, se desenvolver ainda mais significativamente nos próximos anos, ao tempo em que a sua localização, uma vez marginalizada, se torna mais central e estratégica perto do Parque Olímpico a ser construído na Barra da Tijuca. O desenvolvimento esperado para estas áreas coincide com o surgimento de uma classe média emergente na sociedade brasileira, e adicionando a isso uma recente consciência sobre as questões de remoções em algumas favelas. As perspectivas futuras dessas comunidades serão observadas de perto.

Do ponto de vista arquitetônico, são as qualidades intrínsecas do local–que, através da flexibilidade, apresenta uma alta densidade residencial e uso misto do solo, assim como uma orientação do tráfego para uso pedestre e de ciclistas, reduzindo a quantidade de carros e, consequentemente, o consumo de energia no bairro–que levou a equipe do ETH Zurich considerar trabalhar, dentro da comunidade, com o informal como a chave para o seu desenvolvimento sustentável. O livro projeta cenários futuros alternativos para o bairro através de mapas e diagramas, descrevendo diferentes estratégias urbanas para trabalhar com esta estrutura habitacional informal. Estas estratégias foram definidas pelos autores como: canalizando o informal (para maximizar a diversidade); transplantando o informal (para usar o popular para criar redes de espaços públicos); sustentando o informal (para usar a infra-estrutura como um catalisador); estratificando o informal (para densificar a cidade em camadas); atraindo o informal (para estimular a identidade através de referências); e abraçando a informal (para negociar um processo em aberto). Esta análise resulta basicamente em projetos de arquitetura de menor escala com o objetivo de atualizar a casa multi-familiar e crescer de forma paulatina os espaços semi-públicos e áreas compartilhadas, todos delimitados por um modelo estrutural que facilite a expansão vertical, e para atualizar as torres modernistas, adicionando uma nova camada de espaço coletivo entre os blocos habitacionais.

Cidade de Deus! é uma publicação essencial cobrindo a evolução do urbanismo e da arquitetura do bairro durante um capítulo específico, mas muito importante, da história do Rio de Janeiro, investigando exaustivamente o uso das habitações populares padronizadas desde os primeiros relocamentos até hoje. Na verdade, ao superar a falta de qualidades sociais de seu plano inicial genérico através da produção de espaços informais, a Cidade de Deus constitui uma poderosa crítica dos princípios modernistas que levaram à habitação popular racional e padronizada. O livro não só rompe os estigmas sobre as características da arquitetura e do urbanismo informal, mas também afirma que o potencial da informalidade vale a pena ser explorado para o futuro das grandes cidades–uma ideia que pode ser aplicável não só no Brasil, mas no mundo todo.