Quando questionado sobre sua experiência com educação, Fernando, um jovem de 21 anos da favela do Fumacê em Realengo, Zona Oeste do Rio, disse: “Nunca gostei de estudar. Minha mãe me obrigava a ir para escola, mas eu nunca gostei de ir. Na escola, eles não te ensinam, só te obrigam a fazer coisas. É um método para as massas”.
Os sentimentos de Fernando são os mesmos de outras milhares de crianças no Rio. Ele é um dos 720 jovens de 14 favelas diferentes que participam do programa Agência de Redes para Juventude desde 2011. A Agência oferece treinamentos para jovens das favelas pacificadas no Rio de Janeiro, encorajando-os a contestar ideologias dominantes, descobrir novas formas de lutar pela justiça social e buscar posições de liderança em suas comunidades, mesmo diante dos recentes programas de segurança pública. Devido às políticas de pacificação, mudanças trazidas com a contenção do crime organizado em seus territórios e a presença do estado, principalmente com a polícia, a Agência trabalha na melhoria da visão que os jovens participantes têm sobre eles mesmos e sobre suas próprias comunidades–ao endereçarem suas posições para a sociedade como um todo e também dando-lhes as habilidades e ferramentas para o engajamento. Fernando explica, “Na Agência, eles te conhecem primeiro, e depois te ensinam alguma coisa. Eles te preparam pra fazer qualquer coisa que você queira”.
O modelo do programa, atualmente exportado para Londres e Manchester, treina jovens selecionados em uma série de habilidades práticas e estratégicas e permite o acesso a redes de conhecimento em toda a cidade, às quais os jovens tradicionalmente não têm acesso, por um período de três meses, no qual o jovem recebe uma bolsa-auxílio. Os participantes então têm a chance de criar, desenvolver, apresentar e defender publicamente suas próprias ideias inovadoras com o objetivo de transformar suas vidas e as comunidades onde vivem. A ideia inicial é de que jovens precisam ser participantes ativos na criação de um novo quadro de mudanças. Para a Agência, estimular os jovens é essencial para a transformação social e aperfeiçoamento da democracia. Essa filosofia é baseada nos ensinamentos de seu criador, Marcus Faustini, que é também diretor, cineasta e escritor, e defende uma cidade compartilhada, onde as diferenças se juntam para formar semelhanças, com o potencial de cada um sendo destacado na reconstrução do mundo em que vivem.
A partir dos treinamentos, criação e desenvolvimento de redes de trabalho e apresentação de suas ideias inovadoras, 134 projetos surgiram dos grupos de participantes selecionados para o processo de “incubação”, com ideias apresentadas a uma banca. Desses, 54 foram selecionados para receber um prêmio em dinheiro no valor de R$10.000,00 cada, investimento inicial para começar sua implementação. Em maio de 2014 a Agência começou sua quarta edição e para o futuro pretende expandir o escopo da organização para trabalhar também com jovens em territórios não pacificados.
Aqui focamos em alguns impactos da metodologia da Agência nos jovens participantes:
Aumento da consciência e uma perspectiva de comunidade orientada para a justiça social
Graças à sua bolsa-auxílio da Agência, além de ter se concentrado em algo pelo qual é apaixonado–artes cênicas–Fernando, enquanto continua seus estudos, tem se inspirado a se tornar mais próximo dos moradores de Fumacê e unir estes dois interesses: “Antes, eu via a favela como uma coisa esquecida. Meu único interesse era sair de lá o mais rápido possível. Agora, eu penso diferente. Penso em debates pra trazer melhorias para minha comunidade o mais rápido possível”.
O interesse crescente de Fernando em sua comunidade e a sensação de que seu trabalho pode ajudar outras pessoas se reflete na ideia inovadora pela qual ele lutou. Ele propôs o Mosaico, um projeto de dança funk e hip hop em Fumacê que procura criar um ambiente de maior paz e unir pessoas que moram em diferentes partes da comunidade. Antes da instalação da UPP, havia uma forte divisão entre duas facções de drogas brigando por controle territorial. Esse conflito criou uma “parede invisível” na comunidade e animosidade entre as pessoas que viviam sob as diferentes facções. Dada a situação, Fernando sentiu a necessidade de criar um projeto que unisse as pessoas, fazendo o que ele mais ama: dançar e se apresentar.
Com o Mosaico, Fernando e sua equipe criaram espaços e organizaram eventos para promover a união e um forte espírito de comunidade entre os moradores de diversas partes da favela. Eventos e aulas de dança são realizados regularmente em uma escola pública (CIEP), localizada na “fronteira” que marca a antiga divisão entre os territórios das facções. Além de oferecer aulas de dança para jovens e adultos da comunidade, Fernando e seus parceiros no projeto incluíram aulas de dança para crianças no currículo oficial da escola. Visivelmente orgulhoso de suas conquistas, Fernando conta: “Em nossa menor aula, temos por volta de 50 crianças entre 7 e 12 anos participando. O diretor da escola entendeu a importância desse projeto para unir as crianças da comunidade, e nós fomos capazes de fazer isso acontecer”.
Carlos Gabriel, jovem de 18 anos da favela do Batan, também na Zona Oeste, compartilhou uma experiência pessoal de transformação e aumentou o engajamento político como resultado de sua participação: “A Agência me acordou para a vida. Estou começando a me tornar politicamente ativo… Quero aprender mais sobre política. Quero saber como a política afeta minha comunidade. Temos que tentar entender nossa realidade e nossa comunidade, além das opiniões vindas de cima. Precisamos entender que essas opiniões são injustas”.
Abertura do diálogo sobre o relacionamento dos jovens com a polícia
Quando abordava a frequentemente problemática e até mesmo caótica relação entre jovens e polícia em favelas pacificadas do Rio, Carlos Gabriel pontuou: “Os jovens em favelas sempre foram oprimidos… somos vistos como vândalos, como se só quiséssemos farra. A polícia não nos vê como pessoas, como cidadãos. Pra eles, somos todos bandidos. Essa é a política por trás da polícia que trabalha nas favelas”. Seu comentário sincero destaca as tantas camadas de rejeição e desconfiança características desse relacionamento.
Fernando aprofunda a análise: “O relacionamento entre a comunidade e a UPP não é bom. Principalmente porque acho que não tem como alguém de fora [da comunidade] dizer o que é melhor pra nós… Eles pensam em educação pra crianças, jovens de 13 a 15 anos, mas os que têm 18, 19 anos eles acham que já são causa perdida. Não existem projetos direcionados pra esses jovens”.
Fernando acredita que o estado e a polícia escolhem trabalhar exclusivamente com crianças, adultos e idosos, porque acham que estas pessoas podem ser ‘moldadas’ e pode ser mais fácil levá-los para o ‘lado deles’.
Carlos Gabriel ressalta que construir um relacionamento com os jovens requer uma dinâmica completamente diferente. Para ele, os jovens da favela têm seu próprio jeito de ver o mundo e não vão deixar ninguém chegar e dizer pra eles como devem viver suas vidas. Refletindo a respeito do discurso de pacificação sobre educação e outros desenvolvimentos sociais, que têm sido “implementados” por organizações e o estado após a entrada da polícia nesses territórios, Carlos Gabriel afirma:
“Nós jovens temos que mostrar nosso potencial. Temos que mostrar que não é só porque a polícia está aqui que agora, do nada, queremos ser alguém. Eles precisam falar com a gente. Agora existem mais opções de cursos profissionalizantes que vieram com a pacificação, mas eles não perguntaram se queríamos fazer. Eles não sabem se queremos aprender inglês ou espanhol. Eles me oferecem isso, se eu não aceito, eles acham que eu simplesmente não estou interessado em educação.”
Expor a necessidade de uma educação informativa
A visão de que o estado e as organizações educacionais vindas de fora, e somente eles, entendem o que é melhor para os jovens é equivocada. Em claro contraste, a aproximação da Agência mostra o que pode ser alcançado quando os programas se concentram na capacidade dos jovens em agir e são relevantes por serem centradas nas experiências de vida, interesses e atitudes próprios dos jovens e suas famílias.
Viviane Salles é uma garota empolgada de 23 anos da Cidade de Deus e ex-participante do programa. Com profundo entendimento dos interesses sociais, políticos e econômicos que governam sua cidade, pede nova educação inspirada pelas ideias de Paulo Freire que permitem que os jovens exercitem sua capacidade de tomar decisões, enquanto aprendem como pensar sobre seu mundo de forma crítica e criativa. Ela explica:
“Precisamos pensar em novas possibilidades para as pessoas obterem conhecimento. O mais importante é ajudar os jovens a pensarem sozinhos. E pra fazer isso, é preciso desconstruir pra reconstruir… As iniciativas apresentadas estão ligadas a um modelo medíocre de educação… não são discutidos com os jovens antes. Queremos escolher agora. Não é mais o que você quer me dar ou o que você acha que eu preciso. Você precisa me perguntar… você precisa conversar sobre essas coisas comigo. Você tem que respeitar os jovens. As coisas estão mudando… não temos mais que aceitar tudo agora.”
Envolvimento e consulta como prática de liberdade para os jovens da favela
Jovens da favela vivem a realidade de seus territórios, tendo direito absoluto às suas opiniões, e são os mais indicados para o envolvimento na criação e implementação de políticas e programas que terão impacto direto em suas comunidades. Entender suas histórias, experiências de vida como moradores da favela, relacionamentos com a educação, polícia e o estado, bem como suas esperanças e sonhos para o futuro, é fundamental para qualquer análise verdadeira a ser realizada no processo de pacificação das favelas do Rio e seus efeitos no desenvolvimento dos jovens através da educação. As histórias desconhecidas dos jovens devem estar à frente do processo de pacificação e de qualquer outra política social ou de segurança em andamento.
Se o estado e a polícia continuarem a ignorar os jovens da favela, tachando-os, silenciando suas opiniões, e tentando forçá-los a se adaptar a uma cultura imposta que não é acolhida livremente, o processo de pacificação irá falhar. Hanier Ferrer, estudante de direito de 23 anos, ativista e tutor na Agência, comenta sobre a necessidade da polícia iniciar um diálogo com os jovens afetados:
“A polícia mantém um relacionamento de confronto com os jovens. O que precisa ser provado é que esses jovens não precisam, ou não devem ser confrontados. Esses jovens precisam ser potencializados através de sua cultura regional. A ideia é quebrar o pensamento moralista que diz o que é certo e errado em relação ao comportamento dos jovens da favela ou em relação ao comportamento dos jovens negros. Jovens não querem uma padronização de comportamento… eles querem ter seu próprio comportamento e mostrar que também podem andar em outros espaços.”
Como o especialista em educação latino-americana, Professor Carlos Torres relata, para que a educação aconteça, ela precisa andar de mãos dadas com a tolerância e o respeito pelos outros e suas visões de mundo: “A construção do conhecimento precisa ser feita em um ambiente de tolerância. E as pessoas precisam respeitar diferentes epistemologias”. Esta tolerância é o que falta no relacionamento entre a polícia e os jovens nas favelas pacificadas do Rio. Por este motivo, novas formas de educação através de teorias e práticas de liberação, emancipação e resistência transformacional–inseridas em um ambiente que promova respeito e tolerância aos outros–é o principal ponto pelo qual os programas informais de educação nos territórios pacificados devem batalhar. Isto é importante não só para os programas que atendem aos jovens da favela, mas também para um treinamento direcionado à força policial.
Neste momento, mais do que nunca, os jovens precisam alcançar posições de liderança em suas comunidades, contestando espaços e trabalhando para que suas vozes sejam ouvidas. Programas como a Agência permitem que este tipo de empoderamento aconteça. Em suma, como refletiu o Fernando:
“Antes da Agência eu não tinha nada. Tinha minha mãe, que me ajudava… com comida e essas coisas, mas não tinha uma estrutura de trabalho, um caminho… O que me motiva na Agência é que ela abre um caminho para que eu continue seguindo. Posso fazer coisas e continuar descobrindo… sempre aprendendo.”
Declarações como essa, de jovens da favela, trazem esperança de que um futuro melhor e mais brilhante, para os jovens que vivem nas favelas do Rio, não é impossível, mas iminente. Portanto, é fundamental que as iniciativas de educação informais que apresentam jovens como potenciais atores na transformação continuem a ser desenvolvidas e implementadas. Como Viviane Salles explica: “Temos que disputar espaços e ideias. Estamos criando… estamos experimentando a invenção de um novo mundo”.
Veriene Melo é doutoranda e Lemann Fellow na Escola de Graduação de Educação e Estudos da Informação na Universidade da Califórnia, Los Angeles. Ela é também pesquisadora assistente no Programa de Pobreza e Governança no Centro de Democracia, Desenvolvimento e Estado de Direito da Universidade de Stanford, onde trabalha em projetos sobre pacificação, UPPs e violência policial nas favelas do Rio de Janeiro.