Com a ocupação militar recente do Complexo da Maré, a mídia brasileira e internacional voltou sua atenção para este grupo de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. No entanto, a Maré e seus moradores são muitas vezes descaracterizados de uma mesma forma, como: impotentes, desesperados e violentos. “A notória favela da Maré”, lido em um comunicado da AFP amplamente distribuído internacionalmente, “é um paraíso para o crime organizado e um dos lugares mais perigosos da cidade”. A cobertura local não foi menos enviesada, com O Globo descrevendo como “uma das regiões mais violentas da cidade” na qual passivamente, “os moradores esperam por dias de paz”.
Ao contrário de como foi retratada na mídia, a Maré, com uma população de 130 mil pessoas em 16 favelas, é um lugar vibrante, com uma sociedade civil forte, proporcionando uma forte tradição de ativismo e auto-organização, além de suas festivas tradições culturais nordestinas. “A Maré não é só violência, a Maré tem muito mais a dar e a mostrar”, diz Carlos Alberto Ferreira da Silva, vice-presidente da Associação de Moradores do Parque União. “Mas infelizmente a mídia, ela tende a mostrar isso–uma Maré violenta, uma Maré de tiroteio, uma Maré de pessoas doentes de crack e traficantes. Isso é mais fácil e vende mais do que mostrar a dificuldade do povo, a luta para melhorias”.
Esta sociedade civil forte e expressiva rendeu muitos sucessos, com mais de 100 organizações sociais baseadas nas comunidades. Entre as organizações mais conhecidas na Maré são o Observatório de Favelas, Redes de Desenvolvimento da Maré e Conexão G, a primeira organização LGBT em uma favela; 16 associações de moradores; organizações culturais, como o Museu da Maré; bem como grupos religiosos e muitos outros. Os moradores há muito tempo estão organizados para lutar por melhores condições sociais e celebrar sua comunidade, enquanto o Estado tem negligenciado a fazê-lo. “Tudo que tem na Maré foi conquista dos moradores. Se hoje a Maré tem casas melhores, é conquista dos moradores”, afirma Carlos. ““Os serviços que o governo tem que fazer, nós fazemos por conta própria”, citando exemplos como saneamento e limpeza de ruas.
A ocupação da Maré pelo Estado tem sido muito discutida e organizações da sociedade civil vêm preparando os moradores por já algum tempo para estarem cientes de seus direitos dentro do contexto de aumentos de abuso de poder da polícia sob a ocupação. Então, quando foi finalmente anunciado, no mês passado, que o exército iria ocupar a Maré até o final de julho, as organizações da sociedade civil se levantaram para exigir diálogo e participação com o governo. Na quinta-feira, 03 de abril, após ter sido convocado publicamente por ONGs e associações de moradores, o secretário de Segurança do Estado, José Mariano Beltrame participou de uma audiência pública no Centro de Artes da Maré, na frente de aproximadamente 400 pessoas. Durante a reunião, ele concordou em aceitar um conjunto de condições para a ocupação militar apresentado a ele por líderes comunitários, e explicou que ele está criando uma ouvidoria para as UPPs em toda a cidade-–algo que o Observatório de Favelas , Redes e outros já haviam feito campanha. Em seguida, foi planejada uma audiência pública com o Prefeito Eduardo Paes.
A própria presença de representantes do alto escalão do Estado é a própria evidência da influência e visibilidade que a sociedade civil da Maré detém. Fundador e co-diretor da Redes da Maré, Edson Diniz explicou o significado da visita de Beltrame: “A secretaria de segurança estava aqui na Maré e assumiu compromissos, que antes isso era impossível–a polícia entrava aqui e ela fazia o que ela queria, ela ditava as regras”, disse ele. Foi a articulação das diversas organizações dentro da Maré que pressionou o Estado para tais concessões. “Há vinte anos isso era impossível, não tinha nenhuma negociação… Então quando ela vem e assumi compromissos, isso é um ganho”.
A formação e o crescimento da Maré têm uma longa história, começando com as primeiras ocupações na década de 40. Moradores celebram e preservam a rica história do bairro através de projetos como o Museu da Maré, uma iniciativa de museu comunitário para coletar artefatos e informações sobre a história da região, alguns dos quais foram destaque no ano passado, na exposição “Design da Favela” no Studio-X, e o núcleo de Memória e identidade da Redes, que está atualmente produzindo uma série de livros que documentam a história de cada uma das favelas da Maré, contada por moradores e os próprios líderes comunitários.
A evolução da comunidade tem sido influenciada por vários fatores importantes. Nos anos 80 e 90, a Maré foi ameaçada de remoção por causa do Projeto Rio, um programa federal e a maior intervenção do governo na Maré. Pouco tempo depois do seu lançamento na Maré em 1982, grandes áreas foram ameaçadas de remoção. “Isso fortaleceu muito o encontro dos moradores, a se identificarem na Maré, identificar e melhorar as condições de vida… Isso criou um núcleo, um grupo de pessoas que, mais tarde, fortaleceu muito a sociedade civil aqui na Maré”, explica Edson. O sucesso da campanha significou que a Maré é agora um bairro reconhecido oficialmente. A Redes da Maré, como muitas outras organizações que operam dentro da Maré, foi fundada por moradores envolvidos no ativismo político e comunitário, comunidades baseadas na Teologia da Libertação, e associações de moradores.
Entre os muitos exemplos de sucesso e realização através destes núcleos, Conexão G se destaca como a primeira ONG LGBT em uma favela. Gilmar Cunha, diretor e co-fundador, descreveu como ela cresceu a partir da necessidade de responder à violência física e mental, perpetrados contra jovens LGBT na sua comunidade, e sua alienação em relação ao movimento LGBT fora da favela.
“Essa população era invisível, e continua sendo invisível. Então a Conexão G surgiu com essa proposta de dar visibilidade a esse grupo, de mobilizar e articular uma política”, diz Gilmar. “Se a gente tenta visualizar a realidade da população LGBT moradores de favela, é uma realidade diferente da população LGBT do Leblon. Se você fizer uma entrevista com os gays da comunidade, eles vão dizer a prioridade não ao casamento, a prioridade é a minimização da violência”. Agora, graças a este trabalho pioneiro na área da saúde e conscientização, os moradores gays da Maré têm “respeito” dentro da comunidade–algo que antes parecia impossível, e ONGs LGBT estão sendo criadas em outras favelas.
A sociedade civil da Maré, alimentada pelos próprios moradores, trouxe muitas inovações e benefícios para a comunidade. No clima atual de ocupação, esperam-se que muitas das vozes francas da Maré não sejam sufocadas. O sucesso na abertura das negociações públicas com Beltrame aponta para possibilidades de uma interação saudável entre o Estado, a sociedade civil e moradores. Como Edson salienta, “Não podemos cair na ilusão de achar que a sociedade civil é para substituir o estado. O papel não é esse–nosso papel é pressionar o estado para que ele cumpre seu dever”. Essa harmonia é essencial para garantir uma relação frutífera, em que as necessidades das comunidades sejam abordadas pelo Estado.
“A gente precisa de muito mais do que somente ocupação militar–precisamos de ação social… Então a gente está aguardando, porque não pode ser somente mais uma ocupação–que seja A Ocupação, em que o social seja muito mais lembrado do que a segurança pública.”