Enquanto muitos se lembram de 2014 como o ano da Copa do Mundo, alguns ativistas do Rio de Janeiro vão se lembrar deste ano como o ano da resistência, de acordo com o último relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj). A Comissão apresentou seu relatório anual na noite de 8 de dezembro, que foi coincidentemente, o dia da Justiça Nacional, para um salão lotado com mais de 100 pessoas na Alerj. O relatório analisa o atual “mau estado da democracia” no Brasil e destaca três questões que o ilustram: os efeitos sócio-políticos do golpe militar dos anos 60, a batalha pelo direito à cidade e a militarização da vida cotidiana. Três convidados, João Dornelles, professor da PUC-Rio, Guilherme Boulos, colunista da Folha de São Paulo e Mônica Francisco, ativista de direitos humanos, apresentaram uma análise em cada tópico, respectivamente.
50 Anos desde o Golpe Militar de 1964
“São 514 anos em que essas violências e violações de direitos humanos constroem uma sociedade que é um sucesso em esquecimento. Existe uma política de esquecimento, uma política de ‘vamos virar a página’, do ponto final.” – João Dornelles (2014)
Para entender como a ditadura militar configura o país de hoje, Dornelles diz ser preciso entender como a ditadura é uma continuação do estabelecimento de 514 anos do país e da sociedade. Ao longo da história, a mesma população–a maioria–têm tido nenhum acesso, ou em tempos recentes acesso restrito, à cidadania.
Além disso, diz Dornelles, o país sempre teve uma sociedade elitista que se reproduz através de acordos políticos e parcerias oligárquicas. O golpe militar de 1964 não criou essas questões, apenas as reforçou. “Aqui está a base da violência, a base das violações massivas, sistemáticas, permanentes, contínuas de direitos humanos na nossa história”, disse ele. “Nesse processo de 21 anos se aprofundou não somente esse passado histórico da sociedade brasileira, mas se aprofundaram e se aprimoraram novas técnicas, novas práticas e estratégias de controle do poder”.
As “novas práticas” se manifestam na militarização da vida cotidiana. Dornelles deu um exemplo dos Bombeiros; não existe país democrático onde os Bombeiros estão sob responsabilidade militar. É um departamento civil, exceto no Brasil. A militarização das agências civis representa um controle político, ideológico e cultural da sociedade, diz ele. “Nós temos mais desaparecidos neste regime democrático e mais mortos neste regime democrático do que no período militar”, afirma, acrescentando que a militarização civil contribui para isso. Ele conclui afirmando a importância da memória. Só podemos mudar o presente, ele diz, lembrando e entendendo o passado.
Direito à Cidade
“O que nós temos enfrentado nestes últimos anos com muita dureza no cotidiano é uma negação sistemática do direito à cidade para milhões de pessoas do nosso pais.” – Guilherme Boulos (2014)
Essa tem sido uma década de lucros no mercado imobiliário brasileiro, especialmente no Rio de Janeiro, diz Boulos. Essa tem sido a década, explica ele, daqueles que não consideram um lugar na cidade como um direito cidadão, mas como um lugar de negócios usado para dar lucro com a produção e a reprodução da miséria urbana.
Nos últimos anos, o setor de construção do Brasil tem sido um dos mais lucrativos e consequentemente um dos maiores produtores de empregos no país, segundo Boulos. Ainda assim, o resultado disso é um aumento sem precedentes no valor da terra nos últimos cinco anos: 215% em São Paulo e 261% no Rio de Janeiro–maior aumento no país, diz ele. “Mas [o aumento] não vem acompanhado de nenhuma política de regulamentação que busca impor limites aos lucros desse setor e dar algumas garantias de direitos aos mais pobres”.
Quando o valor da terra aumenta, o aluguel aumenta, o que leva à expulsão e à segregação. Para uma família cujo aluguel teve um reajuste absurdo, mas cujo salário permaneceu estático, a única solução é se mudar para ainda mais longe, afirma ele. Essa é a negação do direito à cidade. “É expulsão, é a criação de muros na cidade”, diz Boulos. “Hoje os mais pobres são jogados para mais longe e mais longe, o que significa menos serviços públicos e menos infraestrutura, e mais tempo para ir e voltar do trabalho”.
A segregação da sociedade através do mercado imobiliário chega acompanhada de um forte processo de criminalização, exterminação e violenta repressão, afirmou ele. O papel da polícia em bairros ricos é proteger a minoria, a elite das nossas cidades, diz Boulos. Na periferia, no entanto, seu papel é de extermínio. “Essa é a realidade perversa da especulação imobiliária: expulsão, racismo, violência, extermínio”, concluiu. “Essa é provavelmente a maior característica das nossas cidades, e isso tem se aprofundado nos últimos anos”.
Militarização da Favela
“É angustiante ter que falar, é angustiante ter que estar aqui discutindo militarização da nossa vida cotidiana, discutir militarização da cultura. discutir militarização de vida particular.” – Mônica Francisco (2014)
Em um discurso emotivo, a ativista dos direitos humanos e moradora do Borel, Mônica Francisco, falou sobre as dificuldades que os moradores da favela enfrentam devido à militarização. A privacidade das pessoas e sua individualidade é violada todos os dias, disse ela, e sua cultura é reprimida. O que é mais chocante é o dado que mostra um enorme número de mortes, especialmente entre a população negra.
“É muito doloroso quando a gente começa a ficar cara a cara com esses dados”, ela disse. “Se é doloroso para homens brancos e mulheres brancas, é muito mais doloroso para a gente que, além de ter que ser confrontado pelos dados frios e duros dos números, a gente é confrontado de verdade. A gente vive isso”.
Em relação ao histórico do país, a democracia é um empreendimento relativamente novo para o Brasil, explica ela, mas para a população negra é quase um território intocado. “Para nós negros, a gente nunca conseguiu viver essa plenitude da democracia”, ela disse. “A gente nunca conseguiu viver isso. A gente vive um processo de extermínio”.
Francisco lembrou os massivos protestos de junho de 2013, e notou como essas demonstrações trouxeram um nível de violência policial para a classe média brasileira que deu o gosto da violência enfrentada pelos moradores da favela. “Imagina as pessoas gostando de ver os filhos da classe média sofrendo aquela violência, porque pelo menos eles agora vão acreditar e vão ouvir e vão entender que na favela a bala não é de borracha, a bala é de verdade. Não tem tiro de borracha, tem tiro de fuzil”.
Prestando Homenagem
Com o discurso de Francisco, a discussão sobre o relatório foi concluída. O evento foi transferido para fora do prédio. Como parte do programa, diversos líderes da comunidade e organizações foram homenageados por sua luta incansável pelos direitos humanos. Performances teatrais e musicais ocorreram nas escadas da Assembleia Legislativa após a apresentação. Dentre as organizações reconhecidas estavam a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa do Mundo (ANCOP), a Comissão pela Mobilização dos Catadores de Lixo, após seus protestos históricos durante o Carnaval de 2014, e o grupo de mídia e direitos humanos Coletivo Papo Reto.
O relatório completo pode ser acessado aqui.