Em 23 de julho do ano passado, Eduarda La Rocque, presidenta do IPP–Instituto Pereira Passos, foi convidada pela ONG Move Rio para dar uma palestra sobre ‘’A integração social, econômica e urbana da cidade de Rio de Janeiro’’. Eduarda La Rocque apresentou o programa UPP Social, coordenado por ela e o IPP, no elegante salão da joalheria Amsterdam Sauer.
No evento, Eduarda La Rocque insistiu na importância do programa como catalisador para a mudança e a integração, numa cidade que tem graves desigualdades sócio-espaciais. A apresentação mostrou um programa bem sucedido, efetivo e premiado internacionalmente pelo empenho revolucionário no modo de projetar e executar políticas públicas.
O programa da UPP Social, desde então, foi rebatizado como Rio+Social para ‘’acabar com o estigma’’ associado ao programa e pela necessidade de ‘’desassociar as ações de políticas públicas com as que estão relacionadas à seguridade nas favelas ocupadas pelas forças policiais’’.
Antes de permitir que o programa original desapareça da nossa memória coletiva, é importante parar e refletir. A UPP Social foi realmente uma tentativa genuína de modernizar o processo de elaboração de políticas e de acabar com as fronteiras que dividem o Rio de Janeiro? Ou foi mais do mesmo? O objetivo desse artigo é resumir as declarações de Eduarda La Rocque e colocar o programa em perspectiva, tentando oferecer uma análise pos-mortem do programa UPP Social, especialmente na ótica da participação comunitária, com o desejo de assegurar melhores resultados do Rio+Social e os inúmeros programas públicos atuais e os futuros que são anunciados constantemente, infelizmente quase sempre com resultados similares.
Introdução à UPP Social
Originalmente, o programa foi lançado pelo Estado do Rio de Janeiro em 2010, mas foi transferido para a Prefeitura do Rio em 2011. O objetivo da UPP Social era produzir informação de qualidade sobre as necessidades das favelas ocupadas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), articulando melhorias nos serviços públicos ausentes ou de baixa qualidade, o que vai além da segurança nestas áreas, incluindo saneamento (sistema de esgoto e coleta de lixo), educação e saúde, entre outros.
Sob a supervisão do Instituto Pereira Passos (IPP), a UPP Social procurou, desde 2011 até 2014, a cooperação entre o governo e as comunidades pacificadas. Como explicou durante o debate de julho a presidente do IPP, Eduarda La Rocque, o enfoque foi na gestão de conhecimento: ‘’o uso da informação para fomentar a transformação’’.
Refletindo o modelo que prevaleceu nas últimas duas décadas no Brasil, no qual as políticas de segurança pública e as políticas sociais estiveram cada vez mais interconectadas, a política de ‘’pacificação’’ foi vista como uma maneira de conectar a segurança pública com os temas de cidadania, programas sociais e ação comunitária. Uma vez que a comunidade estivesse pacificada e a presença permanente da polícia estivesse instalada, a equipe da UPP Social interviria e registraria as necessidades da comunidade para tentar ‘’adequar a oferta e a procura’’, como explicou Eduarda La Rocque. Criada como complemento do programa da UPP, seu objetivo principal era ‘’fortalecer o controle territorial e a pacificação das áreas com UPPs’’.
A palavra chave da missão da UPP foi ‘’integração’’, como apresentou Eduarda: as favelas devem estar integradas ao asfalto (a cidade formal), o que inclui tudo desde a definição dos nomes das ruas assim colocando, literalmente, as comunidades no mapa; até aumentar os indicadores socioeconômicos ao nível da cidade formal, acabando com a lacuna histórica entre os dois. Para conseguir isso, algumas ações seriam integradas: os variados programas e projetos elaborados pelos diferentes governos (federal, estadual e municipal), as ONGs e o setor privado precisariam se coordenar e articular para conseguir a eficiência e o impacto máximo, e evitar sobreposições e descontinuidade.
Participação sob tutela no Brasil democrático, 1988 até hoje
A participação comunitária, embora não particularmente enfatizada no discurso de Eduarda La Rocque, nunca esteve ausente da sua retórica: ‘’Nada vêm de baixo para cima, imposto… Tem que ser construído junto’’, disse. Reconhecida como a base fundamental da integração social, a participação ocupa uma posição alta no discurso moderno sobre desenvolvimento, promovido por agências multilaterais tais como as Nações Unidas: ‘’Uma sociedade para todos deve estar equipada com os mecanismos adequados para permitir aos seus cidadãos participarem no processo de tomada de decisões que afetam suas vidas, e finalmente modelar seu futuro comum’’. No Brasil, o governo em todos os níveis (federal, estadual, municipal e regional) tem estabelecido regras para comprometer à sociedade civil nos processos de participação e da criação de políticas públicas, especialmente no nível local.
A questão essencial então é: de que tipo de participação estamos falando? E: essa participação tem influência nos resultados? De fato, o significado e o fundamento de participação variam muito de ‘’manipulação’’ a ‘’controle do cidadão’’ e de ‘’não participante’’ a ‘’poder do cidadão’’. Como Sherry Arnstein escreveu em 1969, ‘’existe uma diferença crítica entre atravessar o ritual vazio de participação e estar em posse do poder real necessário para afetar os resultados do processo’’.
Apesar de sua modernidade inquestionável, a sociedade do Rio permanece inflexível, vertical e hierárquica. A imensa lacuna, aparentemente eterna, entre os ricos e pobres e o medo de uma explosão de violência associada a essa situação, tem historicamente incentivado os setores dominantes a estabelecerem mecanismos de integração controlada, sem a integração ocorrer em tudo, evitando, cuidadosamente, qualquer coisa que pudesse afetar a verticalidade das relações sociais. A participação popular plena e efetiva é vista, com frequência, como uma ameaça e não como objetivo. Desde, pelo menos, a década de trinta e a presidência do Getúlio Vargas, o aparato do Estado Brasileiro tem tradição de organizar e supervisionar às classes mais inferiores (ver ‘’não participantes’’), estabelecendo o que o acadêmico Alain Rouquié chama ‘’mecanismos de desmobilização não coerciva’’, que pretendem impedir sua organização espontânea e autônoma e, consequentemente, a mobilidade ascendente.
Na mesma linha, os acadêmicos Frederico Costa e Augusto Cunha descrevem o período posterior a 1988 na mesma perspectiva, afirmando que as instituições participativas brasileiras são ‘’democracia direta sob tutela’’. ‘’O Estado… é responsável pelo estabelecimento de caminhos aceitáveis de participação civil, de quem deve participar, como acontecerá essa participação e os resultados que a participação deverá ocasionar’’.
UPP Social e o discurso sobre participação cidadã
Então, onde ficou a UPP nesse contexto? Em outros lugares do Brasil, as instituições de participação como assembleias, orçamento participativo e planos diretores desenvolvidos coletivamente se multiplicaram desde o processo democrático reiniciado com a Constituição de 1988, especialmente no nível local, refletindo uma crescente associação entre a participação cidadã e as políticas públicas.
No Rio, a mudança do discurso que contempla a participação se refletiu após 1989 no programa de urbanização das favelas, Favela-Bairro, e mais recentemente no programa Morar Carioca, não realizado. Os objetivos, o planejamento e o discurso da UPP Social, como foi apresentado por um dos seus muitos criadores, Ricardo Henriques, foram estabelecidos na mesma direção. Começando com uma observação de Ricardo Henriques–ex diretor do IPP e da UPP Social até a chegada de Eduarda La Rocque, no seu artigo ‘’UPPs Social: ações sociais para a consolidação da pacificação’’–a maioria das favelas apresentam uma ‘’situação paradoxal de abundância de projetos sociais e ausência de políticas públicas efetivas’’. Enquanto coexistem um grande número de projetos isolados, fragmentados e descoordenados, o objetivo principal do programa é integrar e coordenar as ações. Por esta razão, a participação efetiva dos moradores e os atores locais foi apresentado como uma das condições principais tanto de Eduarda La Rocque quanto de Henriques:
- A primeira diretriz do programa lidou com ‘’cidadania e convivência: ’criação de canais de comunicação e interlocução social (fóruns, ouvidoria) e apoio das organizações e ações realizadas nessas comunidades’’.
- O desenho do programa estava centrado ao redor da ideia de ações integradas, que põem a ênfase em ‘’mecanismos e canais de diálogo permanentes’’.
- Finalmente, uma das ideias chave da estrutura de gestão do programa foi a da gestão participativa.
O plano era produzir um modelo de gestão com uma ‘’função integradora, sem ascendência hierárquica sobre os atores implicados’’.
De qualquer forma, igual ao que aconteceu com os programas mencionados anteriormente, Favela-Bairro e Morar Carioca, a lacuna entre o discurso e a prática foi significativa.
‘’Nós não temos que satisfazer a demanda da favela’’
Em 2011, o problema da participação abaixo do padrão já tinha sido apontado: planos de ação pré estabelecidos, carência de responsabilidade, carência de transparência, participação mínima dos moradores, etc. Um ano depois, a avaliação não tinha mudado: a participação efetiva ainda não estava acontecendo.
Além do mais, depois de três anos de programa, ainda era difícil encontrar moradores que soubessem o que era a UPP Social e o que fazia.
Uma das respostas típicas que recebemos nas entrevistas, ao entrevistar aos moradores, foi a do Tiago, morador de 24 anos da Babilônia, que morava na comunidade havia 11 anos: ‘’Não vou mentir, não tenho a menor ideia do que seja’’.
Muitos tiveram muito pouco contato, se é que tiveram, com os trabalhadores locais do programa, que supostamente deviam encontrar as demandas da comunidade e apoiar os esforços das organizações e mobilizações locais.
‘’Para dizer a verdade, não sei o que é a UPP Social ou o que é que eles fazem. Não são a polícia, né?’’, perguntou Matteus de Souza, um entregador de 21 anos que trabalha e mora no Cerro-Corá.
Se normalmente é claro quem são os policiais da UPP e qual é sua missão, o mesmo não pode se aplicar para a UPP Social. Alguns moradores achavam que se refere aos esforços dos policiais da UPP para se aproximar da população e estabelecer relações amistosas entre a polícia e os civis. Outros achavam que se referia aos projetos sociais executados pela própria polícia.
‘’Para mim não é claro o que é que eles fazem. Quero dizer, sei que tem algo a ver com os projetos sociais na comunidade, mas só sei isso’’, disse Maria Antônia, 54, que se mudou de Saquarema para o Andaraí (pacificada em julho de 2010 e não muito longe do estádio do Maracanã) há 17 anos.
Seu ceticismo sobre a vontade do governo de escutar realmente e considerar as sugestões dos moradores pode ser explicado pelas decepções no passado: “É assim: você vai num encontro primeiro, muito entusiasmado, se esforça para participar. Não é fácil dizer o que pensamos em público, sabe? E você vê que nada do que falou lá importou realmente. Depois vai para outro encontro, com uma nova equipe que diz que é diferente, que eles estão aqui para escutar de verdade, mas e depois? O resultado é o mesmo. Então eu pergunto: tenho que falar sobre o que? Nem vou mais”.
Matteus expressou o mesmo tipo de desconfiança: “Não acho que eles estejam interessados na opinião dos moradores da favela. Perguntam porque têm que perguntar, assim podem dizer que perguntaram“.
A própria Eduarda La Rocque, provavelmente sem intenção, confirmou essas suspeitas. Falando sobre a oposição dos moradores da Rocinha ao teleférico, para quem o saneamento básico é a prioridade principal (situação que repete a opinião no Complexo do Alemão e na Providência), Eduarda disse quase honestamente:
“Na realidade, as prioridades são as do Rio de Janeiro como um todo. Estamos pagando impostos para investir R$1,8 bilhões, por isso a sociedade como um todo tem que identificar a prioridade. [Nós não] temos que satisfazer a demanda da favela.”–Eduarda La Rocque
Para Ronaldo Barboza, 31, que mora e trabalha na Babilônia, houve tentativas de criar uma conexão com a comunidade. Falando sobre o projeto da UPP como um todo, ele não destacou só o governo, mas acusou à falta geral de discussão significativa, que impede que o projeto trabalhe melhor com a ajuda dos moradores para alcançar soluções viáveis. “Pode criar o projeto que você quiser, mas se não há uma interconexão viável e lógica, o projeto não vai funcionar. O fracasso é de todos, a falta de comunicação e estrutura para tudo isso. Quando há dialogo, é um dialogo que não leva a um objetivo comum”.
UPP Social na prática, um parceiro fraco
Na realidade, a debilidade institucional do próprio programa da UPP Social obstrui por si sua implementação pretendida. O trabalho de coleta de dados e mapeamento foi sólido e reconhecido, mas a informação não pôde trazer mudanças sem determinação política. Se a UPP Social tivesse uma função efetiva de coordenação e articulação, exigiria autoridade sobre os numerosos departamentos municipais que supostamente deveriam se unir. Além disso, se fosse canalizar efetivamente as demandas da comunidade para modelar projetos de acordo a elas, essas demandas deveriam ter certo peso, oferecendo encontros na comunidade ou outros órgãos participativos com poder de negociação real e responsabilidades na tomada de decisões.
Há poucas evidências que essas duas condições foram cumpridas. O projeto da UPP Social foi subordinado fundamentalmente à política da UPP: onde não houve “pacificação” e não houve “social”. O projeto esteva sob a supervisão do IPP, ele mesmo subordinado à Casa Civil, uma Secretaria bastante limitada em comparação com outros mais prestigiosos e poderosos como as Secretarias da Fazenda, Habitação, Educação ou Transporte.
Participação, democracia e apropriação
Em resumo, voltando para a escada de Arnstein, achamos que na maior parte o que a UPP Social chamou de “participação” cai na categoria de ‘’consulta’’, no mínimo, um tipo de tokenismo que, nas palavras dela, ‘’permitem aos cidadãos aconselhar ou planejar ad infinitum, mas guarda aos detentores do poder o direito de julgar a legitimação ou viabilidade do conselho’’. Esse mesmo artigo adverte que ‘’a participação sem redistribuição do poder é um processo vazio e frustrante para os oprimidos’’.
Em 2013, só 49% dos brasileiros achavam que a democracia era melhor do que qualquer outra forma de governo, enquanto 19% disseram que uma forma de governo autoritário é melhor em algumas ocasiões (na Venezuela, as cifras são 87% e 8% respectivamente, 71% e 11% no Uruguai). Há uma opinião generalizada de que a participação cidadã é uma das ferramentas mais importantes para fortalecer a democracia, e o Brasil, sem dúvida, vai nessa direção desde que adotou o regime representativo há quase três décadas. Contudo, esse progresso é mínimo no Rio, e se as poucas oportunidades de participação não contêm influência real, a participação perde substância, e a democracia é atacada.
Por outro lado, reúnem-se mobilizadores comunitários, urbanistas e pesquisadores que cada vez mais reconhecem os méritos do urbanismo plástico, adaptável e inovador que pode se encontrar nas favelas brasileiras, onde ‘’os espaços se desenvolvem de acordo com as necessidades dos seus usuários’’. As muitas qualidades da flexibilidade e natureza orgânica das favelas podem e devem ser fortalecidas por programas de urbanização que permitam aos moradores não só ter voz mas também ter o poder de definir esses programas de acordo com as suas necessidades e desejos. No final das contas, eles têm configurado quase sozinhos até agora o desenvolvimento de suas comunidades, produzindo qualidades e funcionalidade além dos desafios que já conhecemos. Enquanto o planejamento por governantes normalmente define objetivos, métodos e planos de ação rígidos, que podem ou não ser implementados, a consulta cívica constante e deliberativa podem trazer soluções mais adaptáveis para um ambiente em constante mudança, e que envolva os membros da comunidade na sua implementação. O passo fundamental para permitir a apropriação da cidade pelos seus moradores se conseguirá com o fortalecimento das instituições e dos processos de participação.