Essa é a mais recente contribuição para nossa série sobre As Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre as Favelas do Rio, parte do atual debate do RioOnWatch sobre a narrativa e os retratos midiáticos acerca das favelas cariocas.
Daqui a um ano, logo após os Jogos Olímpicos de 2016, veremos os maiores noticiários globais inundados com avaliações do evento e seus impactos. Porém este agosto, no período de um ano para as Olimpíadas, já tivemos um gosto do que vem por aí, com o interesse elevado das mídias globais pelo Rio e nos seus preparativos para os Jogos. Essa atenção intensificada produziu, verdadeiramente, ótimas reportagens sobre as favelas do Rio e o contexto atual da cidade, dando continuidade a tendência de representações cada vez mais produtivas sobre as favelas, como temos observado na grande mídia de língua inglesa desde 2009. Ao mesmo tempo, o evento que atraiu a maior cobertura de favelas do Rio foi a morte de um traficante procurado, o que mostra que ainda há trabalho a ser feito para alcançar uma cobertura mais equilibrada. Além disso, o uso da linguagem estigmatizante que deturpa as favelas do Rio continua a prevalecer.
Aqui, destacamos alguns dos artigos mais notáveis e importantes sobre o Rio nesses últimos meses e chamamos a atenção para exemplos de como reportagens a respeito de favelas ainda precisam melhorar.
Ótimas Reportagens sobre as Favelas
A série “Rio Olympics: View from the Favelas” (O Rio Olímpico Visto a Partir das Favelas) do The Guardian, oferece a dois respeitados jornalistas comunitários, uma plataforma global para as suas reflexões. Em sua primeira matéria, Michel Silva, o fundador do site de notícias Viva Rocinha, criticou a descrição da Rocinha como “um lugar perigoso e sujo com pessoas que não têm uma compreensão de como o mundo funciona” que a grande mídia retrata. O restante do seu artigo refuta esta representação com uma visão geral da história e demografia da Rocinha, sintetizando os aspectos que os moradores estão orgulhosos e os que lhes faltam, e pede mais “discussão de políticas de segurança pública com os moradores”. Na segunda matéria, Thaís Cavalcante, uma jornalista da Maré, destaca as remoções do ano passado na comunidade Salsa e Merengue e os impactos dos megaeventos que não receberam cobertura alguma de mídia em língua inglesa. Estes jornalistas comunitários trazem a profundidade e a relevância que raramente se equiparam com a visão de pessoas de fora, e eles desfazem os estereótipos através de sua escrita eloquente e apaixonada por seus lares.
Reconhecendo a importância dos jornalistas comunitários, em junho, a Fusion produziu um vídeo aprofundado sobre o Coletivo Papo Reto, um coletivo de mídia do Complexo do Alemão. O vídeo combina filmagens feitas pelos coletivos e numerosas entrevistas com participantes do coletivo, considerando a prominência dos moradores e seus trabalhos. Na mídia, a violência em favelas é frequentemente relatada por números de mortes, citações de moradores ou autoridades sobre a gravidade da situação e imagens centradas em homens com armas de fogo e paredes marcadas por balas. A representação da violência em favelas da Fusion, ao lado do artigo da revista The New York Times Magazine sobre o Papo Reto, se destaca por seu foco nas ações construtivas dos moradores trabalhando para mudar as narrativas e acabar com a violência. É claro que há momentos em que números e fatos gritantes da violência precisam ser enfatizados. Em maio, Simon Romero e Taylor Barnes do The New York Times assinaram um relato crítico sobre mortes cometidas por policiais no Brasil nos últimos anos. O artigo colocou as taxas escandalosamente altas de homicídios do Brasil e a sua aceitação pelo público, contextualizando com os mesmos dados que resultaram em protestos nos Estados Unidos.
A marcante reportagem de Stephanie Nolen destacando a desigualdade racial no Brasil para o The Globe and Mail expõe os extremos obstáculos que muitos moradores de favelas, a maioria afro-brasileiros, enfrentam no combate a uma rígida hierarquia, ainda pouco reconhecida, baseada em raça. A autora estabelece uma contradição inerente: a identidade nacional do Brasil baseia-se em uma celebração da diversidade racial enquanto a desigualdade racial é flagrantemente difundida na vida do dia a dia. O artigo, em seguida, mergulha profundamente em vidas de famílias brasileiras para demonstrar, através de histórias complexas, como essa contradição é sustentada. O rico contexto histórico fornecido mostra porque o Brasil tem conceitos únicos de raça, mas as comparações feitas com outros países, como os EUA, reforçam a importância do artigo.
Ótimas Reportagens sobre as Olimpíadas
Dos muitos artigos sobre o Rio publicados em 5 de agosto, data exata de um ano para o início dos Jogos Olímpicos de 2016, poucos focaram explicitamente nas questões que estão afetando as favelas. A vídeo reportagem por Ana Terra Athayde sobre o programa abandonado de urbanização de favelas, o Morar Carioca, foi uma rara exceção. A filmagem mostra os investimentos públicos em projetos sustentáveis com bom custo-benefício na favela Babilônia: mirantes públicos feitos de materiais reciclados, painéis solares, sistemas de recolhimento de águas pluviais, entre outros. No entanto, o vídeo também apresenta entrevistas com moradores que dizem que o projeto entregue ficou muito aquém do projeto prometido e os especialistas lamentam a implementação em pequena escala do programa. A menos de um ano até o começo dos Jogos Olímpicos, o fato de um projeto de legado olímpico fundamental tenha “deixado de ser uma prioridade para a prefeitura, sem nenhuma explicação oficial”, foi a mensagem essencial em destaque.
A investigação da AP em qualidade da água em locais de jogos Olímpicos e Paraolímpicos, publicada no final de julho, teve imensa influência. Referenciada na maioria dos artigos publicados em 5 de agosto, o relatório forneceu os resultados do “primeiro teste independente e abrangente para vírus e bactérias nos locais olímpicos”. Antes deste relatório, o fracasso da prefeitura em limpar a Baía de Guanabara como prometido já havia recebido uma atenção considerável, mas os dados recolhidos pela AP provocaram respostas oficiais do COI e do Comitê Organizador do Rio, que reafirmou o compromisso de pressionar o governo para limpar a baía.
Por fim, a compilação, por Jonathan Watts, das perspectivas de dez pessoas que vivem e trabalham no Rio para o The Guardian merece reconhecimento. O artigo destaca a contínua luta dos moradores da Vila Autódromo contra a remoção através da história da ativista de longa data, Jane Nascimento. Outro ativista de destaque é Marcello Mello, cuja luta contra a construção do campo de golfe Olímpico em terras ambientalmente protegidas recebeu, surpreendentemente, pouca cobertura em idioma inglês. Watts também produziu um excelente perfil do magnata imobiliário brasileiro Carlos Carvalho, cuja percepção para a cidade “da elite, de bom gosto” era um visão chocantemente franca dos empreendimentos imobiliários Olímpicos na Barra da Tijuca.
Como as Reportagens sobre Favelas Precisam Melhorar
Apesar das melhorias dramáticas referenciadas anteriormente, a tendência dos jornalistas internacionais descreverem as favelas com linguagem imprecisa permanece. Um artigo do The Independent, do dia 4 de agosto, aponta uma questão fundamental: a realidade de moradores de favelas “será perdida em meio à conversa sobre o tempo de qualificação, prazos de estádios, qualidade da água e preços dos hotéis”. A maior parte do artigo contém fortes críticas a evidente corrupção e as promessas de legado que falharam. No entanto, o autor escreve: “Espalhadas por toda parte estão mais de 600 favelas que abrigam 1,3 milhões de pessoas em barracos em meio a esgoto e tristeza”. Esta frase faz com que as diversas favelas do Rio–pacificadas e não pacificadas, antigas e novas, aquelas com títulos de terras, com casas de tijolo e aquelas que contêm apenas barracos–soam todas exatamente iguais: empobrecidas, miseráveis e temporárias. Inexplicavelmente, o autor afirma que “você não ousaria perguntar àqueles da favela do Vasco sobre o que os Jogos significarão para eles”. Por que não perguntar? Por que não buscar opiniões sobre os Jogos daqueles mais afetados por eles? No entanto, a única citação na reportagem de um morador de favela discute como traficantes de drogas enterram corpos sob o campo de futebol.
Até mesmo em uma matéria do New Zealand Herald que ridiculariza a afinidade da grande mídia com a “pornografia da pobreza”–“onde a situação dos pobres é embalada para o entretenimento dos não-pobres”–é responsável por distorcer as favelas do Rio de Janeiro entre suas críticas importantes. O autor descreve a Rocinha como “um caldeirão dos pobres e necessitados…um mundo de gangues juvenis, crimes violentos e tráfico de drogas…uma zona proibida para pessoas de fora”. Na verdade, a Rocinha tem uma florescente indústria do turismo local e é, em uma boa parte, lar da “classe média emergente”, que o autor menciona posteriormente. As gangues, o crime e as drogas são uma parte do mundo da Rocinha, mas assim como são a cultura, o empreendedorismo e o compromisso com a sustentabilidade. Ao criticar a mídia pelo foco na pobreza do Brasil ao invés de seus sucessos menos “sexy”, o autor cai na mesma armadilha para as favelas do Rio.
Outro artigo, do Herald Sun da Austrália, oferece uma visão justa e importante de diversas perspectivas entre os moradores da Vila Autódromo. O autor fornece o que parece ser uma descrição equilibrada da comunidade: “Vila Autódromo tem ruas de terra, às vezes vacilante, construção de casa amadora e esgoto a céu aberto típico de favelas, mas não tem a violência fomentada pelas drogas como de costume, ganhando a reputação de um lugar descontraído para pessoas da classe trabalhadora criarem suas famílias”. O problema com esta descrição é o que está faltando–a prefeitura pavimentou as ruas da comunidade vizinha Asa Branca, mas muitos moradores da Vila Autódromo acreditam que a prefeitura, intencionalmente, não pavimentou suas ruas a fim de manter o bairro com aparência temporária, apesar dos membros da comunidade deterem títulos há duas décadas. O que pode ter parecido com o “esgoto a céu aberto” foram provavelmente apenas poças d’àgua, dado que a própria comunidade construiu um sistema de esgoto simples. E antes das remoções brutais começarem, a grande maioria das casas da Vila Autódromo foi construída de forma sólida, com apenas uma pequena fração “instável ou amadora”, e muitas tinham 80m2, maior do que a grande maioria de casas em favelas.
Durante este período faltando um ano para as Olimpíadas, a história de favela que chamou maior atenção internacional foi o assassinato do traficante “Playboy”, em 8 de agosto. A atenção substancial a um evento violento que não deve mudar muito o sistema de tráfico de drogas enraizado no Rio é, em si, lamentável. A cobertura do The Telegraph menciona que Playboy pediu por “um cessar-fogo entre as gangues para parar com as vítimas inocentes de bala perdida”, apesar de não querer acabar com a “guerra de sangue”. A cobertura pelo The Daily Telelgraph da Austrália colocou a morte do traficante no contexto de assassinatos por policiais no Rio, e mencionou que “parentes do Playboy afirmam que ele estava tentando se render e foi morto a sangue frio”. O relato de ambos The Telegraph e AFP excluiram este contexto e perspectiva.
As Reportagens sobre Olimpíadas Precisam Melhorar
Entre as reportagens do tipo “falta um ano”, há um foco esmagador na questão de saber se o Rio estará pronto para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 em um ano. Uma manchete do The Daily Telegraph enunciava: “A corrida começou para ter o Rio pronto para os Jogos Olímpicos”, enquanto uma manchete no Miami Herald declarou: “Com as Olimpíadas de Verão a um ano para acontecer, o Brasil se pergunta se está pronto“. Um artigo no Globe and Mail pergunta mais sutilmente dentro do texto: “Será que estará pronto?”. Individualmente, são artigos atenciosos que estão céticos em relação aos projetos de legados olímpicos e fazem perguntas importantes sobre os custos dos Jogos. No entanto, um foco coletivo sobre a questão de saber se os Jogos Olímpicos estarão logisticamente prontos no próximo agosto corre o risco de criar baixa expectativa de sucesso. Como o pesquisador de grandes eventos Christopher Gaffney observou, a narrativa da mídia dominante de que os preparativos para a Copa do Mundo não estariam prontos a tempo, permitiu que a FIFA e os organizadores brasileiros reivindicassem que o evento foi um sucesso quando (quase toda) a infraestrutura estava pronta a tempo, independentemente dos impactos a longo prazo do campeonato. O jeito de manter as Olimpíadas de 2016 responsável pelos seus atos é ter uma cobertura da mídia que enfatiza as questões mais difíceis de custo e impactos sobre os cidadãos ao invés da questão mais fácil de saber se a infraestrutura estará pronta.