Moradora removida da Vila Autódromo, Heloisa Helena Costa Berto, compartilhou com o RioOnWatch a carta que escreveu documentando sua experiência de negociação com a Prefeitura do Rio. Publicamos aqui a carta na íntegra.
Esta é uma explanação urgente e importante–de um ponto de vista pessoal e de uma necessidade social–dada a blasfêmia, heresia e o transtorno geral causado por ações contra os dogmas das religiões de tradição afro-brasileiras que se seguiram a retirada do “Yle Axe Ara Orun Yaba Jiyi” do atual endereço na Av. Autódromo 144, Vila Autódromo, Jacarepaguá. Relato também todo o processo de negociação realizado no período de um ano e meio. As muitas humilhações e o preconceito religioso que sofri.
Sou a Yalorixá Luizinha de Nanã, sou espírita candomblecista. Iniciei minha jornada no candomblé em 1973, fui raspada em 19 de julho de 1975, na casa da falecida Elmira de Oxum, filha de Elsa Rocha de Iemanjá e Tete de Inhasã, herdeiras diretas da Casa Branca do Engenho Velho da Bahia. O Engenho Velho é considerado a primeira casa de Candomblé aberta em Salvador, Bahia, considerada patrimônio público desde 31 de maio de 1981 que remota cerca de 300 anos de existência, mas foi fundada e registrada no cartório em 25 de julho de 1943.
Sou filha de Nanã. Nanã é responsável por minha existência, e é ela a dona do pequeno pedaço de terra que eu zelo. Nanã a mãe terra, a grande matriarca! Nanã é um orixá muito antigo, associado às águas paradas, à lama dos pântanos e ao lodo do fundo dos rios. Nanã é a senhora da morte, aquela que recebe seus filhos após a morte, sendo ela uma figura austera, justiceira e absolutamente incapaz de uma brincadeira.
Nanã comanda meu candomblé. Este candomblé foi formado por ela, com ela, para ela. Surgiu através de uma promessa de minha mãe carnal na beira da lagoa de lodo, onde ela se encanta e onde começamos a formar nossa casa há 35 anos.
Foram anos de luta, construindo no barro com o pé na lama, erguendo cômodo por cômodo. Infelizmente, o termino da construção física de um candomblé é difícil, principalmente com várias coisas em jogo, como por exemplo, ter que ao mesmo tempo, ajudar às pessoas necessitadas de trabalhos espirituais e de bens materiais básicos.
O “ Yle Axe Ara Orun Yaba Jiyi” presta auxílio espiritual às pessoas através de jogo de búzios “limpezas” e “firmezas” em vários graus e de variadas maneiras. Tenho clientes de mais de 15 anos espalhados não só pelo estado do Rio de Janeiro como em outros estados do Brasil e fora do Brasil. Trabalhamos com a confecção de roupas e adereços afro-brasileiros. O espaço físico nos permite o cultivo de árvores sagradas e ervas indispensáveis para a realização do culto.
Sinto uma dor física que vem do meu coração e que se transforma em muitas lágrimas ao ver a promessa de minha mãe virar pó. Estou em negociação com a prefeitura há mais de um ano. Sempre fui clara em relação ao meu centro espírita, sempre declaro que a minha casa é um centro espírita. A parte que cabe a mim é o meu quarto, eu não sou a dona da casa, sou uma pessoa desprovida de bens materiais e vivo para minha religião. Sou zeladora dos santos e é em nome deles que eu negocio. Nada me pertence. Porém, a minha responsabilidade é muito grande. Eu não tenho permissão para parar, esmorecer, desistir, cair ou ir contra os desejos de minha mãe Nanã. Só que eu cai!
O ano de 2014 foi um longo ano, com encontros constantes com o negociador da prefeitura, lembro-me da segunda reunião que tive com ele, eu havia tido meses de encontros e avaliações com um advogado da área imobiliária, especialista em avaliações. Levei a documentação, ele olhou e jogou o documento na mesa em minha direção e disse: “Isso não vale nada”.
O negociador me chamava quase toda a semana e me oferecia valores que não seriam suficientes para comprar um novo terreno; certa vez retruquei sobre este fato e tive como resposta do negociador que eu deveria procurar terreno em uma outra comunidade, pois aí o valor seria suficiente, e que era para eu esquecer a possibilidade de comprar um imóvel legalizado.
Ele muitas vezes me chamava apenas para me olhar e insistir em repetir o mesmo valor. Quando isso acontecia, em reuniões sem um propósito novo, que serviam apenas para repetir a oferta anterior, pressionar, acuar e para exposições verbais de situações nas quais as pessoas sairiam sem ter nada. Ele enfatizava que não adiantava deixar o tempo passar, pois isso só iria desvalorizar a residência e que era certo e não havia nenhuma dúvida que todos, absolutamente todos, iriam sair.
Lembro-me, de uma vez em que um procurador mencionou, que eu nunca veria tanto dinheiro na vida e ainda prosseguiu me perguntando: como é que ele poderia explicar para o seu filho que aquelas pessoas da comunidade poderiam ter tanto dinheiro se ele, um procurador, não tinha.
Lembro que na primeira semana em que eu fui chamada até lá e não havia um propósito justo, eu mostrei minha bengala e disse que me fizesse a gentileza de só me chamar quando houvesse uma definição. Eu sofro de muitas dores, com meus 8 parafusos no corpo, mas ele não respeitou minhas dores nem as minhas restrições físicas.
Em dezembro do ano passado, eu já estava muito cansada, me sentia pressionada por ele, tinha obrigações de filhos de santo para fazer, obrigações da casa que deveria fazer e a casa estava parada. Assinei o acordo. Me instruíram que me dariam o cheque em uma semana e que eu deveria deixar a casa no dia seguinte, isto foi uma semana antes do natal do ano passado.
Arrumei minha mudança, aluguei um apartamento, para ficar enquanto a obra do novo centro estivesse sendo feitas. Acertei com mão de obra e esperei. Telefonei por todo o mês de janeiro e metade do de fevereiro. Perdi a mão de obra e os pedreiros brigaram comigo, pois fizeram a reserva do mês e ficarão sem ter o que comer.
Eu tive que me virar para pagar um aluguel que não estava no meu orçamento, eu contava com o valor que me prometerão perante a assinatura do acordo, que seria recebido em uma semana. Dei entrada em um terreno e depois tive que desistir.
Meus filhos de santo com problemas, não puderam esperar este tempo todo. Perdi praticamente todos. Agora eu estou com uma quantidade enorme de medicamentos para depressão, ansiedade e tenho tido crises de pânico.
Não fui mais na prefeitura até o final de abril, e eles também não me chamaram. Na parte detrás da minha casa tinha 4 quitinetes que pertenciam a outras 4 famílias. Em abril do ano passado, ao fazer o cadastramento da minha casa a prefeitura também fez o cadastramento das quitinetes e das pessoas que lá moravam.
Em janeiro deste ano, quando estava para sair o valor da minha indenização, os moradores das quitinetes foram saber como estava a situação deles, pois eles estavam requerendo apartamentos, o negociador atendeu a eles e disse que eles não iriam receber nada, que eu sabia disso e que eu queria enganá-los. Fui ameaçada de morte. Meu filho que sempre me ajudou não podia mais ir na Vila Autódromo, pois receei pela vida dele, fiquei com pavor, com medo de fazerem algo com ele.
Eu tenho problemas de locomoção sou aposentada pelo INSS, passei a ir sozinha na Vila Autódromo com sacrifício para poder alimentar meus animais, molhar minhas plantas e acender meus orixás. Não me era permitido desistir do contrato de aluguel assinado, sendo assim estamos com as despesas e as contas com os pagamentos atrasados, estamos praticamente falidos.
Em abril desde ano, soube da desapropriarão da minha casa, fui para defensoria pública, para tentar reverter isso. Fui também na subprefeitura da Barra da Tijuca para ver se resolvia isso o mais rápido, pois eu estou muito mal de saúde e cada vez estou pior com todo este estresse.
Meu centro espírita está fechado a mais de um ano. Acho que eu não deveria ter feito isso, mas eu só insisti por querer ter tudo resolvido para o meu santo.
Marquei uma hora e disse que queria fazer um acordo, o negociador disse que queria também um acordo, mas que os termos e a minha assinatura desse acordo deveria ser feitos na defensoria, fomos na mesma hora lá. Na defensoria nos informaram que não poderíamos fazer esse documento lá, pois de acordo com as ações jurídicas da defensoria eu estaria promovendo prova contra mim. O certo seria o procurador nos oferecer o acordo.
Retornamos do Centro para a Barra de táxi pois sofro de muitas dores, como já disse, eu já estava o dia inteiro de bengala tentando resolver isso. Chegando lá, passamos esta informação para o negociador e ele disse que era isso mesmo, que ele poderia redigir o acordo, mas que nós deveríamos passar por e-mail o que queríamos no acordo para um outro procurador e a assessora dele. Depois de uma semana e meia a assessora mandou um e-mail dizendo que este documento era para ser feito com o negociador.
Fui até a defensoria de novo e lá me disseram que poderíamos resolver tudo na Subprefeitura. Chegando lá me disseram para voltar em uma semana, na terça seguinte, dia 14 de julho, às 15 horas. Ao sair eu disse: “Se Deus quiser tudo será resolvido na próxima semana”, e o negociador retrucou, “Se Deus não quiser, o inimigo dele vai querer”. Me senti ofendida não cultuo o inimigo de Deus, todos com o mínimo de conhecimento religioso sabem que o inimigo de Deus é Lúcifer. Não tenho o hábito de pronunciar esse nome, e ele não tinha o direito de me associar a tal figura. No final, eu apenas disse que “meu pai era Deus”, não queria pensar em nada além da assinatura. Fui pensando que tudo se resolveria neste dia.
Cheguei lá às 15 horas, tive uma primeira reunião com o Subprefeito Alex Costa, o negociador e a Assessora Marli Peçanha. Resolvemos os primeiros pontos do acordo e saímos da sala do subprefeito para irmos para a sala do negociador para então concluirmos o acordo. Não chegamos a entrar, ele disse para esperarmos um pouco lá fora.
Ele passou todas as pessoas do dia na nossa frente, eu disse que estava com dor e que já tinha passado a minha vez. Ele não ligou, até que eu deitei no chão perto da porta da sala dele, não aguentava mais de dor na coluna.
Entrando na sala ele falou que não podia assinar o acordo naquele dia, falou mais meia dúzia de coisas até sairmos. Sai de lá às dez e trinta da noite!
Eu voltei na quinta-feira. Estava sem a presença de meu filho. Diminui as vantagens que eu teria, pois eu só queria acabar com aquilo. Falei com a Marli, o subprefeito não estava com tempo disponível. Marli disse que tudo estava resolvido, era só assinar com o negociador. Pedi a Marli se por favor, poderia falar com ele para não me deixar esperando muito tempo pois eu tenho problemas de saúde e já estava com muitas dores, principalmente por ter passado tantas horas esperando na última terça-feira. A resposta foi que me atenderia quando tivesse tempo. Sendo assim Marli me colocou dentro do escritório dele assim que pôde.
Não houve conversa, o que teve foi uma demonstração de poder. Eram gestos e palavras veladas com o intuito de demostrar que quem mandava era ele e que ele não faria nada! Entre muitas coisas ele disse que eu tinha um problema de querer tudo de imediato e que as coisas não eram assim. Porém, como uma pessoa doente que passou semanas e mais semanas, que se transformam em meses que se transformam em mais de um ano, como esta pessoa pode ainda ser chamada de imediatista?
Eu retruquei e falei que ele mesmo havia dito que podia resolver de forma rápida, que havia modelos de acordos e seria só imprimir e assinar. Ele perguntou se eu era advogada, se eu tinha OAB, se meu filho era advogado se tinha OAB. Eu falei que não e ele disse que pensava que sim pois meu filho era muito “inteligente”. Ele foi sarcástico o tempo todo inclusive quando disse que ele era advogado, que ele tinha OAB, portanto quem sabia, quem podia, o que podia e o que não podia era ele. Eu dei boa noite e saí da sala.
Quando cheguei a antessala eu vi a Marli e disse que não houve acordo, pois ele não se dispôs a assinar. Foi quando eu tive um surto, eu sei que gritei, mas não me lembro direito, sei que senti muita dor e desespero, eu estava cansada, muito cansada, senti raiva de ser humilhada. Senti um vazio por ver o prazer que ele sentia quando falava comigo me colocando para baixo. Me senti enlouquecer de tanta dor na alma. Me senti perdendo tudo, morrendo, e não tinha ninguém por mim. Tremia, chorava sem controle algum, caída no chão da antessala.
Passei quatro dias na cama sem conseguir levantar. Eu acordava e chorava, meu coração batia forte e eu tremia. Depois eu levantei, mas não saia de casa. Tentava ser forte e seguir em frente. Eu tento seguir, mas está muito difícil, os antidepressivos parecem que não fazem efeito, estou muito ansiosa e está difícil dormir.
Noutro dia eu fiquei preocupada, estava falando com uma conhecida e ela disse que o negociador voltaria antes do tempo das férias dele. Eu falei alguma coisa e desliguei, dei um tempinho e eu comecei a tremer e as lágrimas caiam sem eu sentir, meu coração batia muito rápido. Tive que tomar um remédio inteiro fora de hora e dormir.
As vezes penso que ele poderia ter algo contra minha religião, digo isso por causa dos comentários e piadas sem sentido, e também pelo fato da proposta dada pela prefeitura a minha casa ser muito inferior aos dos meus vizinhos próximos, incluindo os que tem uma área construída menor que a minha. Soube que ele havia me chamado de macumbeira, mas isso é algo que não posso provar.
Eu não sei o que faço. Quero minha casa de volta, quero minha lagoa de volta, quero a tranquilidade que sentia quando ficava no meu quintal olhando a lagoa com meus cães e gatos em volta de mim.
Por que não me permitem ser reassentada? Uma prática comum em outras comunidades. Eu tenho esse direito assegurado por lei pela ação civil de 1993, mas o negociador diz que isso não será possível, que ninguém da comunidade ficará lá.
Tenho também um desejo enorme de trabalhar com mais afinco, conhecimento e propriedade em defesa da lagoa. Minha afinidade com a causa é imensa, ela na realidade faz parte da minha vida. Estou estudando muito sobre o assunto. Eu, meus filhos e vários membros da comunidade já havíamos conversado sobre eu abrir uma ONG de proteção, preservação e limpeza da Lagoa de Jacarepaguá.
Sou uma religiosa. Minha felicidade está em servir e orientar as pessoas com seus diversos problemas.
Como poderei viver sem poder zelar pela casa de Nanã no local que ela escolheu?