Este mês, a violência policial nas favelas do Rio desencadeou uma nova onda de indignação nas mídias sociais. Em 8 de setembro, às 11h30, uma batida policial realizada pela Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) e a Divisão de Homicídios (DH) da Polícia Civil em Manguinhos, na Zona Norte da cidade, resultou na morte de Cristian Soares Andrade, de 13 anos, que estava jogando futebol em um campo nas proximidades.
A operação foi uma tentativa de prender os quatro homens suspeitos de matar Clayton Fagner Alves Dias, um oficial da UPP de Manguinhos, em 28 de abril.
Um vídeo que mostra o corpo de Cristian deitado ao lado do campo de futebol da comunidade foi imediatamente baixado na internet, onde recebeu quase 50.000 compartilhamentos.
Conforme relatado pela página comunitária do Fórum Social de Manguinhos, moradores correram para o local depois de ouvir o tiroteio e “conhecendo bem o trabalho da polícia carioca, tentaram proteger o corpo e a dignidade de Cristian”. Isto se refere aos vários casos documentados da polícia alterando cenas de crime, como por exemplo colocando armas ao lado de corpos de vítimas. De acordo com a Anistia Internacional, a polícia tentou levar o corpo do menino para seu veículo blindado antes da intervenção dos moradores.
Moradores de Manguinhos expressaram sua raiva quanto ao assassinato de Cristian–o mais recente assassinato de um jovem negro na comunidade pela polícia–nas mídias sociais.
“Independentemente de uma perícia a ser feita que irá revelar de onde e de quem partiu a bala que matou um ser de forma covarde, a inoperância do Estado em servir e proteger fica clara, evidente e documentada por mais uma vez. Não é concebível em circunstância alguma que uma ação do poder público resulte no ceifamento de um membro da sociedade civil. Essa guerra agora é contra os pequenos?” escreveu um morador no Facebook.
A Anistia Internacional Brasil condenou o uso “desnecessário e irresponsável” da força e de armas pela polícia e pediu uma investigação urgente: “Mais uma vez uma criança é morta, resultado dessa lógica de guerra que marca a política de segurança pública no Brasil”. Um relatório publicado pela a organização no mês passado mostra que a força policial do Brasil é a mais letal do mundo, com 15,6% de todos os homicídios no país cometidos por policiais. No Rio de Janeiro, 99,5% das vítimas de violência policial entre 2010 e 2013 eram do sexo masculino, quase 80% negros e 75% entre 15 e 29 anos de idade.
Uma forte condenação do assassinato veio do coletivo Ocupa Alemão, que abordou a desigualdade, a injustiça e o racismo histórico e profundamente enraizado da sociedade brasileira: “O corpo preto no chão. Há mais de 500 anos a mesma coisa desde que o demônio europeu invadiu aqui. E aí vem o de sempre: Será que era envolvido no crime? Como não ser ‘envolvido’ se te tomaram terra, te raptaram, te deixaram com uma mão na frente e a outra atrás?” Escreveu o coletivo em sua página no Facebook. “Os verdadeiros envolvidos nunca pagaram. Pelo contrário, têm as melhores chances, comem a melhor comida, dormem na melhor cama. Cadê o filho do Eike Batista? O assassino do ciclista? O demônio loiro está solto. E os mano? Os mano estão todos presos”.
No mesmo dia da morte de Cristian, o BOPE efetuou operações na Nova Holanda, uma favela do Complexo da Maré. A ONG local Redes da Maré divulgou uma nota relatando um intenso tiroteio entre a polícia e grupos criminosos, o que obrigou muitos moradores a se trancarem em suas casas ou encontrar abrigo em lojas, igrejas e bares. As aulas foram suspensas na escola Educandário Sena Santos no Parque União e foi relatado que uma mulher e um policial ficaram feridos durante os tiroteios.
As organizações locais Redes da Maré e Observatório de Favelas condenaram firmemente a operação policial: “Mais uma vez prevalece a ideia da guerra às drogas a qualquer custo e se admite a favela como território inimigo, onde as ‘baixas’ civis são aceitáveis. Seguramente não é com esse tipo de atitude que o Estado vai garantir a paz e estará longe da construção de uma soberania comum para todos os moradores. Ao contrário, ao admitir que existem ‘territórios de exceção’ onde, contraditoriamente, sobre o pretexto de se fazer valer a lei, a vida dos moradores das favelas é vista como menos valiosa, o Estado acaba por avalizar ações policiais que podem acabar em verdadeiras tragédias”.
Operações policiais violentas são rotineiramente realizadas em favelas do Rio e jovens vidas negras são perdidas com uma freqüência alarmante, mas as tragédias raramente provocam indignação generalizada na mídia ou entre a sociedade em geral.
A foto de Aylan Kurdi, de três anos, deitado sem vida em uma costa turca depois de fugir da guerra civil síria chocou as pessoas ao redor do mundo, incluindo os brasileiros de todas as origens, e chamou a atenção global para a crise dos imigrantes da Europa. No entanto, crianças e jovens assassinados no Brasil não parecem desencadear a mesma empatia entre a população do país.
Rene Silva, fundador do jornal comunitário Voz das Comunidades, compartilhou uma ilustração que representa o corpo de Cristian ao lado de Aylan no seu perfil no Facebook e em um outro post escreveu: “Não consigo entender como podemos nos comover diferente diante das mortes e da violência no mundo. Na semana passada, um menino apareceu morto numa praia da Turquia e essa imagem foi parar no mundo todo. Ontem, um menino de 13 anos morreu na favela de Manguinhos e poucos jornais destacaram e estão falando sobre o caso. Muitas vezes fico olhando pro nada e penso como podemos ser tão hipócritas de falar que o problema maior está do outro lado do mundo se a gente nem se quer olha para o problema que está do nosso lado? No nosso nariz”.
Esta contradição motivou um protesto, no dia 10 de setembro, contra os assassinatos cometidos pela polícia. Postado no Facebook como um evento chamado “Indigne-se contra os homicídios de crianças negras no Brasil“, a manifestação reuniu cerca de 300 pessoas em frente à Estação Central do Brasil. Muitos grupos de favela compareceram, incluindo o Coletivo Papo Reto, que durante o mês passado, organizou uma série de eventos culturais, sob o título “#TáTudoErrado” para protestar contra a violência policial no Complexo do Alemão.
No dia 15 de setembro, uma manifestação foi realizada em Manguinhos a poucos metros de onde Cristian foi morto. Mais de 300 moradores e ativistas celebraram a vida de Cristian e manifestaram-se contra a violência do Estado contra os moradores das favelas. A multidão foi tocada pelas palavras de Irone Santiago, cujo filho de 19 anos de idade foi morto no ano passado na Maré, e de outras vítimas diretas e indiretas deste estado contínuo de violência e medo.