No dia 23 de outubro, agentes da Prefeitura demoliram sem aviso prévio cinco casas na Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico de 2016. Dona Mariza do Amor Divino, de 60 anos, vivia em uma dessas casas e ficou desabrigada. Esta foi a segunda remoção que sofreu como moradora da comunidade que ela chama de lar por quase 40 anos.
A primeira remoção
Mariza do Amor Divino estava limpando peixe numa manhã para levar ao mercado, quando alguns homens apareceram em sua casa. A alguns centenas de metros dali, trabalhadores da construção civil estavam construindo um muro ao redor da quase concluída pista de Fórmula 1, o Autódromo de Jacarepaguá. Era o ano de 1976, e os homens que Mariza nunca tinha visto antes lhe disseram que ela estava em suas terras.
“Eles chegaram me batendo, tiraram a faca [de limpar peixe] da minha mão, acabaram com minha cabana”, Mariza lembra, “e ainda levaram minha tarrafa de pesca”.
Mariza, que nasceu perto da Lagoa de Jacarepaguá, tinha acabado de se mudar para a pequena comunidade de pescadores que mais tarde recebeu o nome de Vila Autódromo, por causa da pista ao lado. Naquela época, a Barra da Tijuca era um pântano não desenvolvido na Zona Oeste do Rio. A onda de empreedimentos imobiliários que começou na década de 80 transformou a área com o alastramento de avenidas largas, shoppings e condomínios fechados, na Barra da Tijuca de hoje.
“Aí começaram a aparecer pessoas estranhas. Os pescadores começaram a ficar com medo. Começaram a invadir… pegaram o terreno e foram fazendo casas pra eles.”
O terreno em que Dona Mariza tinha construído sua casa trocou de mãos entre diferentes proprietários, até que um homem chamado Carlos comprou o lote no início da década de 1980. Carlos construiu uma casa e convidou Mariza para ser zeladora da propriedade e receber um pequeno salário. Ela aceitou, permanecendo lá por cinco anos, até que ela se mudou para outra casa na comunidade.
“Desde 1976, eu nunca deixei a Vila Autódromo”, disse ela.
A promessa do Prefeito
O desenvolvimento da Barra da Tijuca em um bairro emergente e rico, a Rio 92, os Jogos Pan-Americanos de 2007 e o anúncio dos Jogos Olímpicos Rio 2016, em 2009, fizeram com que os moradores da Vila Autódromo enfrentassem ameaças de remoção ao longo desse período. Desde 2009 as remoções se intensificaram, e em resposta a comunidade também tem intensificado seus esforços de resistência, organização e montagem de uma campanha de resistência contínua e exemplar que incluem reportagens na mídia internacional, protestos, eventos comunitários e a premiação de um plano popular de urbanização da comunidade visando a garantia da sua permanência.
Em 2013, o Prefeito Eduardo Paes assegurou aos moradores que queriam ficar na Vila Autódromo que eles não seriam removidos. No entanto, semanas mais tarde, foram revelados os planos para remover grande parte da comunidade. Moradores protestaram na frente da Câmara Municipal e Mariza foi uma das convidadas para falar com o prefeito.
“Seis pessoas foram convocadas para entrarem no gabinete dele e eu fui uma dessas pessoas“, relembra Mariza. “Quando ele terminou de falar com a gente na mesa, todos saíram e eu fiquei. Eu cumprimentei ele e falei pra ele: preciso da sua ajuda. Eu moro na Vila Autódromo há 34 anos e não tenho moradia e não sei o que vai ser de mim. E ele disse pra mim, ‘você não vai ficar na rua. Você vai ter a sua casa sim'”.
Energia cortada
No início de 2015, Mariza mudou-se para o o interior da comunidade, em uma casa que Carlos tinha construído. Desde então a Vila Autódromo é uma sombra do que costumava ser. Fileiras de casas são agora pilhas de escombros e a poeira de construção do Parque Olímpico paira sobre a comunidade.
Um dia, em setembro deste ano, Mariza lembra que a energia elétrica acabou. Ela estranhou, já que as duas outras casas na sua quadra estavam com as luzes acesas. Ela estava se recuperando de uma operação recente e pediu para Carlos, o proprietário da casa e seu empregador, ligar para a Light, mas ela não teve retorno algum. Uma noite, ela ouviu uma batida na porta.
“Vi que era três horas da madrugada em pontinho. Daí eu pensei o que quê é isso?‘”.
Do lado de fora um homem alegou que era da Light. Ele perguntou se ele poderia entrar para falar com Mariza, mas de acordo com Mariza a queda de energia foi causada por um cabo danificado na rua, não de dentro da sua casa, então ela, educadamente, recusou. A resposta do homem foi aos berros, dizendo: “Se a senhora não descer vai ficar sem energia”.
Mariza duvidava que o estranho era da Light e suspeitava que ele tinha vindo para demolir a casa. Um mês depois, sua suspeita foi confirmada.
Remoção relâmpago
No dia 23 de outubro deste ano, às 4:40 da manhã, Mariza saiu para uma consulta médica e, tal como em 1976, viu os homens na rua, em pé ao redor de sua casa. “Eu quis até voltar”, disse ela, “mas aí eu pensei: sou uma mulher sozinha, está deserto e matam gente… os caras podiam me abordar”.
Quando Mariza voltou do médico, um trator tinha colocado sua casa no chão. Suas roupas, seus móveis, mesmo o dinheiro que ela tinha guardado e colocado debaixo da sua cama, tudo havia desaparecido. A taxa de açúcar no sangue de Mariza estava alta, mas como o resto de seus pertences, sua medicação havia desaparecido.
“Não me procuraram pra falar [para onde levaram meus pertences]”, explicou Mariza. “Tudo que eu tinha ali foi ganho com sacrifício”.
Na página do Facebook da Vila Autódromo foram documentadas as remoções relâmpago naquele dia. A Guarda Municipal chegou em torno das 5 da manhã e depois mais agentes da prefeitura apareceram. Cinco casas foram demolidas. As outras quatro casas, Mariza explicou, eram propriedades de pessoas como Carlos que possuíam propriedades na Vila Autódromo, mas viviam fora da comunidade.
“Eles tinham propriedades aqui, mas não moravam. Eu fui a única prejudicada nessa história das cinco casas que foram demolidas. Eu fui a única que fiquei na rua… Eles têm a vida deles lá fora [da comunidade]. A minha vida é aqui dentro.”
Disseram para Mariza que seus pertences estavam guardados no depósito do escritório do sub-prefeito Alex Costa, na Barra da Tijuca. Ela chegou lá e encontrou tudo em desordem. Muitos de seus pertences, incluindo o dinheiro que ela havia guardado tinha desaparecido.
“Nada estava igual, muita coisa foi mexida, inclusive o dinheiro que Seu Carlos me pagava…tudo que consegui na minha vida eram meus pertences… o pé da mesa tava todo quebrado, não via a sacola grande com as minhas roupas… a minha televisãozinha de 14 polegada tava de cabeça pra baixo misturado com as coisas dos outros”, Mariza lembra. Então, eles me disseram: “‘Nós precisamos usar esse espaço, então você tem de tirar tudo daqui’. Eu perguntei a eles: Como vou levar tudo isso? Na minha cabeça? Eu não tenho uma casa. Estou na rua!”. Tudo o que Mariza foi capaz de recuperar após a demolição foi o seu medicamento para diabetes.
“Como é que vou começar minha vida sem nenhuma casa para morar?” Ela perguntou com exasperação. “Não tenho fogão, não tenho nada. Eu estou com quatro peças de roupa que ganhei dos outros… essa é minha vida: uma mulher de 60 anos de idade na rua.”
Incerteza na Vila Autódromo
As 40-50 famílias restantes na Vila Autódromo estão determinadas a manter o que restou de sua comunidade. Depois que Mariza foi deixada sem-teto, uma postagem com a foto dela apareceu na página do Facebook da Vila Autódromo pedindo para alguém oferecer um lugar para ela ficar. Maria da Penha, uma outra moradora que luta contra a remoção na Vila Autódromo, levou Mariza para sua casa.
“A Penha ficou com pena de mim”, disse Mariza. “Ela foi na rua e me apanhou e me trouxe para cá para casa dela, porque senão eu estava na rua”.
A incerteza agora obscurece a comunidade mais do que nunca. Quando perguntada onde ela iria se Maria da Penha fosse forçada a sair, Mariza não teve nenhuma dúvida: “Eu vou ficar na rua”, ela respondeu.
Seus pertences, juntamente com a maioria dos seus vizinhos se foram, mas Mariza se recusa a deixar o lugar que ela chamou de casa por quase 40 anos. Ela diz que está registrada para receber moradia através do programa habitacional Minha Casa Minha Vida, mas ela ainda não recebeu nenhuma notícia da prefeitura. Ela não esqueceu a promessa do Prefeito Paes.
“Se ele me desse um canto pra morar, me desse um fogão pra eu cozinhar e um colchão pelo menos para eu botar no chão, está bom pra mim, para eu começar minha vida outra vez. Eu só queria isso.”