Essa é a mais recente contribuição para nossa série sobre As Melhores e Piores Reportagens Internacionais sobre as Favelas do Rio, parte do atual debate do RioOnWatch sobre a narrativa e os retratos midiáticos acerca das favelas cariocas.
Chegamos ao fim de 2015 e agora faltam menos de oito meses para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2016. Com a crescente atenção da mídia global sobre os Jogos têm vindo também raras e perspicazes reportagens aprofundando assuntos-chave como raça, violência do Estado, as reais motivações por trás das remoções, e desafios ao estigma das favelas, assim como empolgantes plataformas para moradores de favelas falarem diretamente a leitores internacionais. Esse alcance amplificado se constrói sobre uma tendência que documentamos na primeira fase da nossa pesquisa longitudinal sobre a cobertura da grande imprensa internacional sobre as favelas do Rio de 2009 a 2014: em seis dos maiores meios de comunicação da língua inglesa, moradores de favelas foram citados acima de seis vezes a mais em 2013-2014, o ano anterior à Copa do Mundo de 2014, que em 2009-2010, logo após o Rio ter sido eleito para as Olimpíadas.
Entretanto, perigosos estereótipos, linguagem preguiçosa, e a errônea tradução de favelas como “slums” e “shantytowns” ainda estiveram presentes em 2015. Nossa pesquisa descobriu que, embora o uso da palavra “slum” esteja declinando em favor de descrições mais precisas e ponderadas, em 2014 ela permaneceu a tradução mais frequentemente aplicada às favelas. O uso de termos impregnados com estigma e outros estereótipos pela mídia, favorece políticas governamentais que prejudicam moradores de favelas, criando uma imagem de que qualquer política é uma boa política, e de que nestas comunidades não existem qualidades a serem protegidas.
Aqui, analisamos alguns dos mais contraproducentes artigos que vimos em 2015 e celebramos alguns dos melhores.
Os piores
Um artigo da ABC Australia de novembro ataca a produtiva questão de se visitar uma favela como um estrangeiro é um “tour esclarecedor ou pornografia da pobreza”, mas o artigo começa com uma cena contra producente: “No meio de um dos mais pobres subúrbios do Rio um homem negro alto se aproxima de mim e pega minha mão. Ele não está prestes a me roubar. Ou a me vender drogas… Ele apenas quer me mostrar como se dança.” Independente da intenção da autora aqui, brincar com velhos, mas ainda impregnados, estereótipos os perpetua ainda mais, especialmente quando falta ao texto qualquer criticismo a estereótipos. Infelizmente, no Rio estereótipos ligando homens negros a drogas e crimes muito frequentemente são base para justificar o assassinato de inocentes pela polícia. Além disso, a linguagem da autora para descrever favelas carece de refinamento. Ela se refere a elas como “viveiros de traficantes de drogas e extrema pobreza”, uma afirmação enviesada sobre comunidades onde menos de 1% dos residentes estão envolvidos no tráfico. Crescentemente conectados à tecnologia, entorno de 65% dos moradores de favela são parte da classe média brasileira em expansão.
Em janeiro de 2015 um artigo do Daily Mail sugeriu que rumores infundados de que David Beckham havia comprado uma casa no Vidigal em 2014 tinham sido responsáveis pela gentrificação no bairro. Essa falsa narrativa obscurece a tendência crescente de aumento do interesse em propriedades no Vidigal desde que a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi instalada, em janeiro de 2012, bem como a considerável organização da comunidade no início de 2014, para debater seus impactos. Embora o artigo apresente uma série de citações de moradores detalhando os difíceis efeitos do aumento dos aluguéis, põe em dúvida a credibilidade dos moradores, contrastando a “verdade” (que Beckham não comprou a propriedade lá) e “a versão contada por quase todos no Vidigal.” Esta depauperação é particularmente problemática ao lado de citações de um residente francês do Vidigal, que diz: “As pessoas são muito ignorantes aqui… As pessoas são muito preguiçosas e ninguém é profissional. É como viver na África. Eu digo às pessoas, vocês sabem por que vocês são terceiro mundo, porque vocês não sabem como trabalhar.” O artigo não oferece nenhuma crítica ou contra-citações a estes comentários racistas fortemente estigmatizantes.
Uma resenha literária do Evening Standard pegou o complexo livro de Misha Glenny sobre o antigo chefe do tráfico da Rocinha, “Nem”, e conseguiu dizimar as nuances da história através da linguagem banalizante. O autor descreve favelas como “depósitos de barracos arruinados pelas drogas.” O fato de ele também se referir a moradores de favela como “sertanejos” sugere uma compreensão limitada da geografia física e socioeconômica do Rio. Nem e outros chefes do tráfico são rotulados “napoleões dos barracos”, que parece uma fraca, inexplicável referência a Napoleão, bem como um retrato impreciso das moradias, em sua maioria de tijolo e cimento, da Rocinha e outras favelas. O artigo sugere que as favelas são estagnadas–”pouco mudou” desde a infância de Nem–e que alguém como Nem, que “pelo menos resolveu (…) fazer algo de sua vida”, destaca-se do resto das massas aparentemente passivas. As insinuações subjacentes são de que o morador de favela mediano viveria para pouco, e que suas circunstâncias são ocasionadas pela “falta de vontade”.
As Melhores
O documentário de Nadia Sussman sobre a violência policial no Complexo do Alemão para The New York Times é um retrato lancinante de uma comunidade detida no fogo cruzado. Por meio de entrevistas com familiares das vítimas de violência policial deste ano, incluindo a mãe de Eduardo de Jesus, de 10 anos de idade, que foi morto em maio, misturadas a filmagens de violência e tiros da própria comunidade, o vídeo destaca as falhas da intervenção policial no Alemão e as desesperadas esperanças e sonhos de paz na comunidade. Filmado e editado com sensibilidade, o vídeo expressa o trauma emocional e psicológico enfrentado pelos moradores apanhados em situações de conflito e legendas ressaltando eventos judiciais e as estatísticas de violência enfatizam a ausência de paz e de justiça.
O projeto de jornalismo solidário de Flora Charner “Eu Sou Favela: Uma Visão de Dentro para Fora” é uma série totalmente financiada por leitores que mostra “incríveis histórias de pessoas que estão combatendo a discriminação e mudando os estereótipos negativos frequentemente associados à cultura da favela”. A série dá voz a moradores de favelas de toda a cidade que fazem inspiradores trabalhos para destigmatizar e melhorar a vida em suas comunidades, incluindo Daiene Mendes, repórter da Voz das Comunidades do Complexo do Alemão, Will Ribeiro, instrutor de artes marciais do Andaraí e o guia de turismo e ativista Thiago Firmino, do Santa Marta. Os perfis fornecem uma visão diferenciada valiosa da vida diária, das qualidades e dos desafios das favelas do Rio através das histórias pessoais e vozes de membros da comunidade.
O recente relatório sobre remoções de James Young para a VICE é um olhar jornalístico profundo sobre a ampla questão das remoções forçadas e as Olimpíadas no Rio, dando voz aos moradores e especialistas e visibilidade para a contra-narrativa de que os Jogos Olímpicos estão sendo usados para promover os interesses imobiliários na cidade. O autor destaca a falácia das razões apontadas para remoções dos casos da Vila Recreio II e Vila Autódromo, o fracasso da política Morar Carioca (o declarado legado social dos Jogos Olímpicos), e os danos físicos, emocionais e sociais causados pela destruição de comunidades inteiras. Ao abordar o tema das remoções através de antecedentes históricos e da contextualização através de perspectivas comunitárias, o artigo fornece um impressionante resumo das questões envolvidas nas remoções na cidade Olímpica do Rio.
Ha duas semanas, outro artigo essencial sobre as remoções foi a memorável reportagem de Sean Gregory sobre a Vila Autódromo para a TIME (aqui em português). Embora seja importante notar que relativamente poucos moradores atuais ou removidos da Vila Autódromo sejam “empobrecidos”, como o título original do artigo sugere, esta matéria traz uma atenção essencial para as conexões interpessoais das famílias que restam com sua comunidade, sua determinação implacável de permanecer, e seus argumentos para a resistência, apesar do estado dilapidado do seu bairro. Isto é especialmente crítico em face à nova estratégia da Prefeitura de alegar aos repórteres que não resta ninguém. O destaque de citações de moradores e de traduções de grafites de resistência presta respeito e validade à luta dos moradores e deixa os leitores na outra ponta com uma sensação da mesma inspiração que visitantes da comunidade vivenciam: movidos pela esmagadora lição da comunidade de que “Nem todo mundo tem um preço”. Finalmente, como repórter de esportes da TIME, revista de língua inglesa com maior circulação mundial e 20 milhões de leitores nos Estados Unidos, Gregory acrescenta um importante contexto, enfatizando que a remoção da Vila Autódromo “não (é) exatamente de acordo com o espírito olímpico de fair play (jogo justo)” e contrária ao “voto de incorporar a favela no planejamento olímpico” da Prefeitura. Gregory, entretanto, notavelmente salienta que a Prefeitura ainda tem uma chance de “finalmente cumprir sua promessa de incorporar a favela no planejamento olímpico e melhorar a infraestrutura e serviços da comunidade de maneira que durará depois que a tocha olímpica se apagar.”
A impactante reportagem de Stephanie Nolen sobre desigualdade racial no Brasil para The Globe and Mail, a primeira traduzida pelo jornal canadense para o português (disponível aqui) expõe os extremos obstáculos que muitos moradores de favelas, a maioria dos quais são afro-brasileiros, enfrentam no combate a uma rígida, porém pouco reconhecida, hierarquia fundamentada na raça. A autora se dedicou meses em seu levantamento meticuloso sobre o assunto, e expõe uma contradição inerente: a identidade nacional do Brasil baseia-se em uma celebração da diversidade racial enquanto a desigualdade racial flagrantemente permeia a vida cotidiana. Em seguida, o artigo mergulha profundamente nas vidas de famílias brasileiras para demonstrar através de complexas histórias como essa contradição é sustentada. O rico contexto histórico fornecido mostra por que o Brasil tem conceitos únicos de raça, mas as comparações feitas com outros países, como os EUA, reforçam o quão significativo é o artigo para uma compreensão global do assunto.
A série de The Guardian,”Olimpíadas do Rio: A Visão das Favelas,” dá a respeitados repórteres comunitários uma plataforma global para suas reflexões. Na última rodada de artigos, cada jornalista escreveu uma série de notas em estilo de diário sobre os acontecimentos em sua comunidade. Michel Silva, o fundador do canal de notícias Viva Rocinha, reflete sobre como a morte de um adolescente mal chegou ao noticiário, contesta o papel social da UPP, e questiona as reais motivações por trás de hospedar uma demonstração de golfe na Rocinha. Thaís Cavalcante, jornalista da Maré, enfatiza a presença regular da polícia na vida diária na Maré, mas também documenta as atividades culturais e comunitárias que acontecem apesar dela. A série também publicou um diário da violência cotidiana no Complexo do Alemão, de Daiane Mendes. Estes repórteres comunitários trazem a profundidade e relevância que raramente é igualada por pessoas de fora, e eles rompem estereótipos através da sua escrita eloquente e apaixonada por suas comunidades. O The Guardian está de parabéns por romper a barreira entre jornalismo comunitário e o jornalismo global.
Outros artigos fantásticos deste ano incluem a cobertura de ambos The New York Times e Fusion da importância crescente de repórteres comunitários e moradores que usam vídeo para documentar a violência policial no Rio. Nós também altamente recomendamos a matéria de Jonathan Watts sobre os planos do empreendedor bilionário Carlos Carvalho para a Barra, a análise de Catherine Osborn da pacificação no Alemão em 2015, o texto de Simon Romero e Taylor Barnes no The New York Times sobre a “sombria aceitação” de assassinatos cometidos pela polícia, e a consistente cobertura de Will Carless sobre questões-chave de raça e violência. Um vídeo da BBC trouxe novas perspectivas para a discussão, convidando duas crianças da Maré para tomarem as rédeas para contar a própria história. Editora do RioOnWatch, Theresa Williamson publicou na Architectural Review um artigo sobre o complicado papel da posse da terra nas favelas que enfrentam a especulação imobiliária. Finalmente, as investigações em curso da Associated Press sobre níveis de vírus e bactérias nas águas do Rio vêm sustentando uma conversa crítica sobre o fracasso do governo em entregar uma das suas principais promessas de legado olímpico e expandir os sistemas de saneamento básico no Rio.
Em suma, estamos emocionados ao ver um grande salto de qualidade sobre este mesmo relatório de apenas dois anos atrás, quando não sentimos que havia artigos bons o suficiente para destacar, e esperamos reportagens ainda mais surpreendentes em prol de um entendimento maior e mais produtivo sobre favelas em 2016.