O curta-metragem Aqui É Meu Lugar começa com um estribilho muito comum: existem dois Rios de Janeiro. Existe o Rio “das praias, do samba, do carnaval e das mulheres bonitas”, e o Rio “menos deslumbrante” das favelas e dos subúrbios, que muitas vezes são estigmatizados como pobres, criminosos e violentos. No entanto, conforme as mulheres no filme cuidam de suas crianças, preparam seus quitutes para vender e cantam suas alegrias e tristezas, fica claro que a história delas não é a história de uma cidade dividida, mas sim uma de um Rio onde você nunca pode ter certeza que terá água corrente, onde suas crianças vão à escola só quatro horas por dia, onde você tem que chegar cedo na prisão para entrar para a lista de visitas do dia e poder ver seu filho. Para se adaptar a essa cidade, mulheres se unem para trocar idéias e habilidades que ajudam a fazer dinheiro para sustentar suas famílias.
O documentário de 25 minutos da cineasta americana Sarah Garrahan oferece um breve olhar sobre as vidas de cinco mulheres que vivem no Complexo da Mangueirinha, uma favela em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Clientelismo, serviços públicos e infraestrutura de baixa qualidade, violência e um atraso percebido como um aspecto mais rural, caracterizam a Baixada aos olhos daqueles oriundos da cidade do Rio. Estas mulheres vivem na periferia da periferia, ou como Vitória explica: “Nós vivemos em uma zona de guerra porque cada dia que uma mãe sai de casa para levar suas crianças à escola, ela parte com uma dor no coração. Ela não sabe se acontecerão tiroteios, se traficantes invadirão sua casa ou se policiais vão abusar do poder que têm”.
Jaidete narra como ela costumava procurar comida para ela e sua família no Aterro do Jardim Gramacho. Adriana conta sobre as discrepâncias do sistema de justiça que trata políticos corruptos como hóspedes de hotel enquanto os pequenos ladrões são punidos com toda a força da lei. Viviane questiona os confins do seu papel de mulher dentro do sexismo brasileiro. Jane Cler lamenta as dificuldades que as mães enfrentam tentando balancear trabalho e família em comunidades com poucos serviços. Vitória explica o racismo que ameaça a vida de jovens negros no Brasil.
“Eu sou uma mulher simples, uma guerreira. Eu só quero mostrar a verdade. Eu não quero esconder nada ou julgar ninguém. Eu só quero mostrar a verdade”, afirma Vitória no início do filme.
Porque elas sabem que são estigmatizadas e marginalizadas por uma cidade onde “muitos estão acima de você e não te deixam avançar”, as mulheres têm orgulho do espírito coletivo presente na favela. Como Adriana conta, “Eu não penso em ficar rica, em ter muito dinheiro. Porque quando você vive em comunidade e você é pobre, você quer partilhar”. No começo do filme, Jaidete concorda: “Se eu tivesse que escolher entre a favela e o Rio, eu preferiria a favela porque você se sente mais bem-vindo”.
O título do filme “Aqui É Meu Lugar” enfatiza esse sentimento de se sentir bem-vindo e vem da música do Roberto Carlos, “O Portão“, que Jane Cler canta enquanto prepara uma refeição com outras mulheres.
Os coletivos de cozinha e de troca de capacidades do qual as mulheres fazem parte é apoiado pelo Programa Raízes Locais, um projeto de base comunitária gerido pela Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH).
A ABTH, uma ONG de defesa à crianças e famílias, opera na Mangueirinha desde 2007 depois que um estudo revelou que um grande número das crianças de rua no Rio vêm da comunidade. O Programa Raízes Locais oferece aulas de teatro e capoeira, assistência às mulheres grávidas e recentemente começou a apoiar a formação da cooperativa de panificação Mangarfo (uma combinação de Mangueirinha e garfo). A cineasta Sarah Garrahan trabalhou no Programa Raízes Locais em 2015 depois de terminar seu mestrado em Artes Experimentais e Documentais e após ser concedida uma bolsa Felsman que foca em crianças em situações de adversidade através da Duke University.
De acordo com Jane Cler, seu negócio de panificação lhe permitiu ter tempo para ganhar uma vida ao mesmo tempo que toma conta da sua família: “Como sabemos, nós vivemos numa comunidade e não é sempre fácil criar crianças. Então quando eu saía para trabalhar, eu estava longe da minha família e da vida de casa. Por isso preferi começar meu próprio negócio, para poder dividir trabalho, casa e família”.
Viviane realça a importância de trabalhar de forma coletiva: “Não sou dessas de não ensinar os outros porque quero fazer mais dinheiro. Se a pessoa precisa, eu ensino. É sempre uma troca. Você ensina e você aprende”.
O filme conta com comentários de Luciano e Beth do Programa Raízes Locais, no entanto Sarah apresenta as mulheres como as especialistas, enquanto elas partilham as suas experiências com racismo, sexismo e a estigmatização da favela.
Adriana articula de forma clara tanto as vantagens que as mulheres enfrentam quanto as suas próprias capacidades de superar dificuldades: “Já somos discriminadas por sermos pobres, por sermos negras. Mas se permitirmos que isso domine nossas vidas, não andaremos para frente”.
O filme é um convite raro para entrar nas vidas das mulheres nas favelas das periferias mais distantes do Rio. Mas se quiser conhecê-las melhor ainda, Jane Cler faz uma proposta: “[As pessoas] pensam que não temos vida, mas eu gostaria de convidar todo mundo para vir e conhecer-nos melhor, nosso mundo, vai ser muito divertido. Todo mundo que vem aqui adora o lugar. Aí eles olham com uma perspectiva diferente… Nós temos pessoas aqui que trabalham muito duro, guerreiros que levantam cedo, que saem a procura de comida para suas famílias. Mulheres guerreiras que trabalham para sustentar suas famílias, que tomam conta do trabalho, da casa, dos filhos, do marido e dos netos”.