Na terça-feira, 8 de março o Prefeito Eduardo Paes finalmente lançou seu plano para a comunidade Vila Autódromo, ao lado do Parque Olímpico. A ausência de um plano público da prefeitura até esse ponto tinha mantido os moradores em um estado constante de estresse e ceticismo em relação às promessas do prefeito que aqueles que queriam ficar poderiam permanecer. Infelizmente, o plano da prefeitura não oferece um alívio completo. Projetado e entregue em um processo exclusivo e de cima para baixo, o plano da prefeitura exige a eliminação quase total das estruturas existentes, ignora as necessidades identificadas pelos moradores, e procura esconder a experiência da remoção. É um estudo de caso de planejamento urbano de má qualidade, as suas falhas ficam ainda mais gritantes quando o plano é comparado ao Plano Popular desenvolvido por moradores e apoiadores.
O prefeito apresentou o plano da prefeitura para um seleto grupo de jornalistas numa coletiva de imprensa na Cidade Nova, no Centro do Rio. A hora e o local da coletiva de imprensa foram alterados apenas algumas horas antes, para que os membros da comunidade não pudessem participar do evento e falar com a imprensa lá, embora eles tenham realizado a sua própria coletiva de imprensa no local original, em Botafogo. Um grupo de moradores e apoiadores foram à Prefeitura esta semana, em 15 de março, para exigir que o prefeito apresentasse o plano para eles diretamente, para que eles pudessem começar a discutir as suas propostas e formular uma resposta.
Maria da Penha, cuja casa foi demolida na última terça-feira no Dia Internacional da Mulher, explicou: “Nossa ideia é ressaltar que ele não nos chamou para mostrar o projeto. Já vimos mas oficialmente com eles, não vimos. Até porque nós queremos discutir o plano. A gente quer que ele nos receba para discutirmos algumas coisas.”
Contrastando os planos: As propostas
O plano da prefeitura diz que existem 25 famílias remanescentes na Vila Autódromo e propõe a construção de 30 casas. A última versão do Plano Popular, apresentado publicamente em 27 de fevereiro, projeta 50 casas.
Um dos aspectos mais perturbadores da apresentação do prefeito é a proposta de demolir completamente as estruturas das casas existentes, a fim de construir uma única rua de pequenas casas uniformes e germinadas de duas a duas. Um Powerpoint até agora é tudo que existe disponível publicamente sobre o plano. Não há nenhuma explicação para o processo ou cronograma para estas demolições e a reconstrução. Note-se que a demolição completa reflete o que os planejadores urbanos se referem como a renovação urbana, muito diferente da urbanização prometida do local.
Dadas as táticas anteriores da prefeitura de fraude e intimidação juntamente com a falta de transparência, o morador Delmo Oliveira insiste que os moradores da comunidade não irão sair para a implementação do plano do prefeito: “Nós não acreditamos nele. Só acreditamos vendo. Quando tiver pronto. Se ele mandar a gente desocupar as casas para construir não vamos desocupar. Porque ele derruba e depois vai na justiça em busca do direito [de remoção completa]”.
Durante a apresentação–somente para convidados–Eduardo Paes afirmou que as novas casas seriam construídas antes dos Jogos Olímpicos, e que a maioria dos moradores restantes podem ficar em suas casas atuais, enquanto as novas casas estarão sendo construídas.
Em comparação, a iteração mais recente do Plano Popular mostra a viabilidade da manutenção de estruturas e espaços existentes, incluindo casas, a Igreja Católica, o prédio da Associação de Moradores agora demolido, e o parquinho construído pela comunidade. Também prevê novas casas para os moradores que nunca aceitaram as ofertas da prefeitura, mas cujas casas foram demolidas assim mesmo.
A prefeitura planeja fornecer serviços públicos exigidos de esgoto e iluminação para as ruas refeitas. O plano também prevê uma igreja e uma quadra de basquete, mas é perceptível a falta de planos para a maioria dos espaços propostos pelos moradores para atender às necessidades específicas da comunidade, incluindo uma creche, um espaço multi-uso com atividades que vão desde cursos de educação para adultos a uma agência de emprego, e espaços de exercício para os idosos, além de outros espaços de lazer. O mapa do plano da prefeitura carece de um edifício para a Associação de Moradores, apesar do fato de que a Associação é parte integrante da história e do senso de comunidade da Vila Autódromo, além de ser esperado que exista uma em todas as favelas para representá-las legalmente.
O Plano Popular explica a importância desses espaços públicos: “A comunidade se caracteriza, ao longo de toda a sua história, pela solidariedade e cooperação entre os moradores, o que representa um grande e importante acúmulo de experiências de mobilização, de organização e de ajuda mútua”. Tendo isto em vista, os espaços compartilhados são importantes e a proposta da prefeitura alteraria a natureza e estrutura social da comunidade.
As propostas dos moradores para um melhor acesso ao resto da cidade, incluindo o retorno de uma linha de ônibus recém-cortada, não são tocadas no plano da prefeitura. As duas escolas propostas pela prefeitura respondem a algumas das preocupações dos moradores para um melhor acesso à educação, mas os moradores tinham sugerido que uma escola fosse construída no Parque Olímpico, não no próprio terreno da Vila Autódromo.
Delmo Oliveira questionou a motivação real para as duas escolas para apenas 30 famílias: “Eles tinham dois estádios para serem desmontados depois das Olimpíadas. [Paes] já tinha dito que esses virariam escola. Porque ele quer colocar uma de cada lado da Vila Autódromo? Para camuflar para ninguém ver que aí tem uma comunidade? Para quê essas duas escolas?”.
A apresentação do prefeito também carece de espaços designados para o comércio local. A Vila Autódromo tinha um número de negócios prosperando que incluíam uma mercearia, padaria, e pequenos restaurantes geridas por empresários locais. Delmo também comentou sobre esta lacuna na apresentação do prefeito: “Por exemplo, o centro comercial. Onde nós da comunidade iremos comprar pão?”.
Talvez a omissão mais simbólica (e surpreendente) do plano da prefeitura é a proposta dos moradores para manter as ruínas de uma casa demolida como um “espaço de memória e Verdade, testemunho do processo de demolições e violações de direitos humanos“. Ao propor a construção de um novo bairro a partir do zero, a prefeitura não está apenas rejeitando a ideia de um memorial, mas está claramente tentando apagar todas as provas materiais da luta da comunidade.
Contrastando os planos: As histórias que eles contam
A história da luta da comunidade já está ausente na apresentação Powerpoint do plano de renovação urbana do prefeito. Uma série de gráficos conta uma história em que um terço da comunidade teve que sair, enquanto 97% daqueles que não precisavam sair, “pediram” e “escolheram” sair.
Enquanto isso, o marketing amigável do Parque Carioca, conjunto habitacional para onde moradores foram removidos, mostra crianças sorridentes se divertindo em uma piscina. Este é um retrato de um lado desta habitação pública, que tem sofrido problemas estruturais e onde alguns moradores lutam para dar conta dos custos. A piscina do Parque Carioca está atualmente infestada com crescimento de fungos e os moradores foram proibidos de entrada por meses. Foi dito à eles que eles terão que pagar para a manutenção. Delmo expressou ceticismo em relação as implicações do prefeito: “[Paes] diz que 500 famílias, 500 e poucas famílias estão felizes no Parque Carioca. Aí eu queria desafiar qualquer repórter, a ir lá e achar essas 500 famílias”.
O Plano Popular, em contraste, documenta extensos esforços da prefeitura para convencer as pessoas a sairem:
“As ameaças incluíam dizer que os últimos ficariam com os apartamentos menores e piores e que, até setembro de 2014, não restaria nada da comunidade.”
“As informações oficiais nunca chegavam, mantendo o clima de medo sobre o que aconteceria com os que não negociassem [para deixar a comunidade].”
O plano da comunidade descreve o declínio gradual da qualidade de vida no bairro dado que casas foram demolidas, o abastecimento de água foi interrompido pela construção do Parque Olímpico, serviços como coleta de lixo e eletricidade foram reduzidos, e as árvores foram removidas.
Foi documentado, em maio de 2014, que 187 famílias queriam ficar. Subtraindo as 25-50 famílias que permanecem, isso significa que alguns 137-162 famílias negociaram para sair só depois de maio de 2014, devido à intensificação da pressão, a deteriorização do bairro, os maiores incentivos, a declaração de desapropriação em março de 2015, ou outras circunstâncias. O plano do prefeito se esforça para mostrar que nem todo mundo queria ficar, o que é verdade, mas obscurece deliberadamente o fato bem documentado que a maioria das pessoas que negociaram inicialmente, ou mesmo em última análise, não queriam sair.
A apresentação do prefeito também conta uma história simples de porque as pessoas tiveram que ser removidos: ou suas casas estavam no meio de uma estrada de acesso ao Parque Olímpico, ou eles viviam no trecho de terra ao longo da lagoa, que supostamente precisava ser recuperada para conservação ambiental. Desde 2009, no entanto, as razões oficiais para a remoção da Vila Autódromo mudaram várias vezes. Um mapa no Plano Popular destaca quatro outras motivações que estariam causando ou justificando a remoção de moradores: para abrir caminho para tubulações de água, para alargar uma estrada ao lado da comunidade, para a “liberação” da frente de um hotel de 5 estrelas e construir uma ponte pedonal, e finalmente, em vez da justificação ambiental, “para liberação da vista dos edifícios residenciais pós Olimpíadas”.
Contrastando os planos: Processo e transparência
As discrepâncias quanto ao conteúdo, profundidade e formato entre os dois planos é um reflexo dos diferentes processos que tiveram lugar para desenvolvê-los. Não foi publicamente informado como a prefeitura chegou ao plano que o prefeito propôs na semana passada. O RioReal Blog relata que Eduardo Paes afirma que ele não poderia liberar o plano antes porque “ele precisava saber quantos moradores iriam ficar no local e que era necessário fazer sigilo, para evitar a chegada de novos candidatos a morador na área a ser, agora, urbanizada”. Certamente, a prefeitura poderia ter encontrado uma maneira de distinguir moradores de longa duração dos recém-chegados. Mas é verdade que lançar o plano antes poderia ter impactado o número de moradores: talvez menos teriam desistido de lutar por conta do estresse e pressão.
A escassa apresentação de Powerpoint com 24 slides do prefeito é um produto que alguém poderia ter realizado em cerca de trinta minutos, uma vez que o mapa proposto não é adaptado à área existente ou às demandas dos moradores. A imagem da linha projetada de casas pode ser um projeto para qualquer lugar.
O processo de criação do plano da prefeitura (nem levando em conta a remoção dos últimos anos) falha em, pelo menos, três dos oito Princípios de “Responsabilidade ao Público” delineados pela American Institute of Certified Planners (Instituto Americano de Planejadores Urbanos Certificados): prestação de informação conveniente e a tempo; participação; e conservação do patrimônio do ambiente construído. Ele falha em relação a todas as sete diretrizes para a construção de boas comunidades do Project for Public Spaces (Projeto Para Espaços Públicos), que se esforça pelo envolvimento da comunidade e encoraja as comunidades a articularem suas visões.
Em contraste, o Plano Popular da Vila Autódromo evoluiu de forma pública e transparente, desde 2011, como descrito no plano. Os desafios dos moradores, soluções propostas e a visão para a comunidade foram amplamente debatidos e articulados ao longo dos últimos cinco anos em reuniões comunitárias, lideradas por moradores e apoiadas por planejadores urbanos de duas universidades (UFRJ e UFF), todos expressamente reconhecidos no final do documento. Diferentes iterações do plano foram feitas levando em conta as ações da prefeitura no entorno da comunidade, mostrando adaptabilidade e disposição da Vila Autódromo para trabalhar com os Jogos Olímpicos e a prefeitura. Não é apenas um plano para urbanizações físicas, mas um plano de “desenvolvimento urbano, econômico, social e cultural”.
Ao produzir um plano comunitário colaborativo, os moradores da Vila Autódromo demonstraram o tipo de processo de planejamento em que acreditam. “Nós mostramos a cidade que queremos, a que temos direito, e como construí-la”, explica o plano. Nesta visão de cidade “é a comunidade da Vila Autódromo que decide e estabelece as prioridades… a população que vive a realidade e as dificuldades do dia-a-dia, que irá dizer o que é necessário e como deve ser feito”. Os autores do Plano Popular vêem o plano como um modelo para o resto da cidade ter “uma nova forma de construir uma cidade democrática e uma nova forma de planejar a cidade”. Tudo isso, eles argumentam, é direito do povo: o “direito para decidir o nosso destino”.
Contestando a luta na mídia
Embora tivesse atraído alguma atenção na mídia nacional e internacional nos meses anteriores, a luta da Vila Autódromo tem sido amplamente coberta nas últimas semanas devido às recentes demolições do prédio da Associação de Moradores, a casa e local religioso de Heloisa Helena Costa Berto, e a casa de Maria da Penha no Dia Internacional da Mulher.
Eduardo Paes tem mantido em entrevistas à imprensa que a prefeitura tem estado em constante diálogo com a comunidade ao longo dos anos, especialmente no caso da demolição da casa de Penha. No entanto, ele recentemente tentou retratar os moradores restantes como oportunistas que só estão em busca de dinheiro, afirmando que “a maior parte dos casos de moradores que querem ainda ficar lá é porque não chegamos a um valor. Eles queriam receber um valor muito alto pelas casas“.
O prefeito também está tentando ganhar favor na mídia, oferecendo transparência nos casos daqueles que já partiram, e pintando antigos moradores como proprietários imobiliários gananciosos: “Aqueles que tinham mais de dez imóveis, que transformaram a Vila Autódromo num espaço de latifúndio, usando pessoas mais pobres, toda a população vai conhecer. Vão saber quantos apartamentos eles receberam como indenização e o quanto receberam de recursos. Não vamos permitir que pessoas que saíram dali com uma negociação bastante vantajosa se utilizem dessa oportunidade para se fazerem de vítimas”.
Sem distrações, os moradores da Vila Autódromo mantiveram a pressão sobre Paes, mobilizando a campanha de vídeo #UrbanizaJá demandando a urbanização prometida do local. Ativistas, acadêmicos, políticos, celebridades e membros de organizações internacionais e movimentos de solidariedade aderiram à campanha. Vários participantes assinalaram que o Plano Popular original teria apenas o custo de R$13,5 milhões, em comparação com os mais de R$208 milhões que a prefeitura acabou usando só em indenizações (sem contar com a construção do Parque Carioca) para a remoção da comunidade. Embora o prefeito tenha, agora, apresentado seu plano, esta semana a moradora Sandra Maia pediu aos apoiadores para continuarem a campanha: “Precisamos que essa campanha de #UrbanizaJá continue. Porque a grande pergunta do #UrbanizaJá era quando. Quando o senhor perfeito vai começar a urbanização da Vila Autódromo? E essa pergunta ela não foi respondida”.
O prefeito também deve explicar por que seu plano insiste em apagar o bairro atual e suas memórias, e por que ele, simplesmente, não aceita o premiado internacionalmente Plano Popular.