Analisando as Promessas do Legado Olímpico do Rio

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“O propósito é entregar Jogos excelentes, com celebrações memoráveis que irão promover a imagem global do Brasil, baseados em transformação sustentável por meio do esporte no âmbito social e urbano, contribuindo para o crescimento dos Movimentos Olímpico e Paralímpico.” Declaração de Missão Rio 2016

“Os Jogos Olímpicos Rio 2016 são os Jogos do Legado.” — Cidade do Rio

Seguindo a tendência dos megaeventos atuais, a Prefeitura do Rio e os organizadores dos Jogos Olímpicos vêm ressaltando o legado positivo das Olimpíadas para a cidade. Obviamente, o legado de um evento só pode ser avaliado na sua totalidade algum tempo depois do término do mesmo, mas durante os Jogos a mídia irá emitir opiniões sobre o sucesso do evento, e o resultado final será definido imediatamente após a cerimônia de encerramento. Faltam menos de três meses para a cerimônia de abertura e, com tantos projetos de legado terminados ou em curso, é um momento crucial para avaliar “as transformações urbanas e sociais” prometidas aos cariocas.

Identificar os legados prometidos é, em si só, um enorme desafio. Entre a grande quantidade de documentos produzidos pela Prefeitura e o materiais do Rio 2016, não existe uma lista que inclua todas as promessas feitas por aquelas instituições desde o início da licitação. A ausência de uma listagem completa permite que se possa fazer promessas fáceis e adaptá-las ou até negá-las conforme for conveniente. O programa Morar Carioca, por exemplo, ainda consta no website promocional “Cidade Olímpica”, mas é um programa essencialmente abandonado.

Neste artigo, selecionamos uma lista de promessas de projetos tangíveis incluídos no documento da Prefeitura “Rio 2016: Jogos Olímpicos e Legado” ou incorporados no orçamento do legado definido em 2014. Colocamos em evidência os impactos nas favelas do Rio e outras populações marginalizadas, uma vez que estas Olimpíadas vêm sendo apresentadas como “Jogos da Inclusão.”

Renovação Urbana

O que foi prometido:
A revitalização da Região Portuária do Rio, conhecida como projeto Porto Maravilha, e a renovação urbana do entorno do Estádio Olímpico João Havelange, no Engenho de Dentro, e do Estádio do Maracanã, ambos situados na Zona Norte da cidade.

O que aconteceu até o momento:
O Porto do Rio de Janeiro, porta de entrada histórica da cidade e local de chegada de 2 milhões de africanos escravizados, um número sem paralelo, tem o mérito de ser um porto moderno e desenvolvido, e é reconhecido como uma parte essencial da memória e do patrimônio da cidade. Projetos de revitalização incluíram a construção de dois museus importantes, a reforma de vários espaços públicos, o incentivo à construção civil, a eliminação de um viaduto, e a implementação (atrasada) do VLT, entre outros. A Prefeitura não acompanhou o estabelecimento gradual de novos negócios na região com políticas para proteger os moradores de longa data, na grande maioria famílias afrobrasileiras de baixa renda. Apesar de no ano passado ter sido desenvolvido um plano inédito de habitação social, este projeto ainda nada foi implementado e os moradores permanecem com medo do processo de gentrificação. Novas construções como o ostentoso Museu do Amanhã foram criticados por ofuscarem o passado do Porto, ao mesmo tempo que a tentativa empreendida pela sociedade civil para desenvolver um Circuito de Herança Africana dos locais históricos na região foi cooptada pela Prefeitura, que usa o mesmo nome para um projeto seu, bem diferente do original e sem luz própria.

A chamada “renovação urbana” da área entorno do estádio do Maracanã também tem sido difícil. As famílias da Favela do Metrô foram removidas na sua maioria ainda antes da Copa do Mundo, mas ficaram as casas e os escombros, sem qualquer reconstrução, levando famílias sem teto desesperadas por moradia a ocuparem o local, deixando a comunidade em prolongada e desordenada luta, incluído novas remoções no ano passado. O local da favela seria um estacionamento ou um centro comercial de oficinas mecânicas de automóveis (o projeto para o local nunca foi disponibilizado antes ou depois das demolições), porém hoje permanece vazio. Nas proximidades, a ocupação indígena da Aldeia Maracanã também foi removida e o Estádio Célio de Barros, centro público de atletismo no complexo Maracanã que oferecia várias atividades para crianças de baixa renda, foi fechado sem aviso ou justificativa em 2013.

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Há dois tipos de Jogos Olímpicos: a cidade que serve os Jogos, e os Jogos que servem a cidade”. – Pasqual Maragall, ex-prefeito de Barcelona

Transporte

O que foi prometido:
A criação do VLT na região portuária, as quatro linhas BRT, a duplicação do Elevado do Joá, a ampliação de rodovias na Barra, o crescimento do sistema de metrô, a renovação de seis estações de trem e do aeroporto internacional.

O que aconteceu até o momento:
Hoje, a Prefeitura realça a infraestrutura de mobilidade e transporte como o mais importante legado olímpico. Apesar do crescimento do metrô ser apenas um de vários projetos de transporte atrasados, é ele que tem o potencial de melhorar dramaticamente a mobilidade dos moradores da Rocinha e de algumas favelas da Zona Oeste, entre outros moradores do Rio, e de reduzir bastante o trânsito urbano.

Recentemente foram feitas algumas transformações na rede de ônibus do Rio–particularmente a “racionalização” das linhas de ônibus existentesque causaram grande caos e confusão. Os cortes de linhas de ônibus contradizem o proclamado objetivo de querer reduzir o trânsito de automóveis. A Prefeitura afirma que a nova rede rodoviária tem o objetivo de “[remover] antigas fronteiras geográficas e sociais”, mas o investimento em transporte (e nas Olimpíadas em geral) tem se concentrado nas regiões de renda alta da Zona Sul, que já contam com a melhor infraestrutura de transporte da cidade, além de servir regiões da Zona Oeste como a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, onde o crescimento rápido dos últimos anos criou enclaves para a elite e uma cidade ainda mais segregada.

Só duas das quatro linhas BRT prometidas foram construídas (apesar que depende do documento lido, se o legado é formado por quatro ou menos linhas). A construção destes ‘legados de transporte’ é responsável por uma porção significativa das 22.059 famílias que foram removidas de favelas cariocas devido a megaeventos, de acordo com o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas.

No mês passado, o desabamento trágico de parte da ciclovia Tim Maia, que causou duas mortes, levantou várias questões incluindo a qualidade de infraestrutura construída em prazo curto para atender os Jogos Olímpicos. A companhia construtora da ciclovia foi contratada para outras obras relacionadas com o evento.

Meio ambiente e saneamento

O que foi prometido:
A reabilitação da Lagoa de Jacarepaguá, a limpeza da Baía de Guanabara e das lagoas da Barra da Tijuca, o controle de enchentes na Grande Tijuca, o fechamento do lixão do Gramacho, a abertura do Centro de Tratamento de Resíduos de Seropédica, e o desenvolvimento de saneamento na Zona Oeste.

O que aconteceu até o momento:
As Olimpíadas ofereceram um potencial incentivo para que fosse providenciado o extremamente necessário investimento em saneamento, mas essa oportunidade foi perdida. O UOL reportou em março que nenhum dos projetos ambientais principais ligados às Olimpíadas seriam finalizados antes dos Jogos. O pobre e até perigoso estado da qualidade da água na baía, lagoas e o mar do Rio, provocado pela falta de tratamento de esgoto, tem sido reportado amplamente. Até fevereiro deste ano, apenas seis dos 86 centros de tratamento de esgoto na Barra da Tijuca funcionavam a 100%.

Saneamento é uma das áreas de investimento mais requisitadas nas favelas da cidade, mas a prioridade é dada a projetos mais visíveis como teleféricos. Mario Moscatelli, um biólogo que faz campanha há décadas em prol da limpeza das águas no Rio, afirma, após sobrevoar a cidade, “só vejo as coisas piorarem”.

Entretanto a promessa de plantar 24 milhões de árvores foi abandonada. Em março de 2015 a Secretaria Estadual do Meio Ambiente argumentou que a promessa era irrelevante, pois quando a promessa foi feita as emissões de carbono produzidas pelos Jogos era desconhecida. Na realidade, muitas projeções feitas para a licitação de megaeventos são incertas, mas isso não impede que os organizadores as estabeleçam no processo de licitação, e enquanto for conveniente. Restrições que definiam as Áreas de Proteção Ambiental (APA) foram inconsistentemente impostas ou descartadas. A Prefeitura ignorou várias leis quando construiu o campo de golfe olímpico na Reserva Natural de Marapendi. No entanto, no que diz respeito à Lagoa de Jacarepaguá, as autoridades aplicam com rigor as leis da APA, usando-as como pretexto para remover famílias da Vila Autódromo. Este estado de exceção, onde o Estado flexibiliza suas próprias leis e procedimentos, é um fenômeno comum em megaeventos.

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Um Legado Positivo Não Intencional

Como resultado das percepções locais de que os Jogos Olímpicos deixarão um legado de remoções, militarização, e uma cidade elitista ainda mais dividida, emergiu um legado positivo não planejado. Os moradores das favelas e a cidade em geral estão informados e conectados como nunca, graças ao crescente acesso a novas tecnologias. O crescimento de plataformas de mídias comunitárias e as redes ativistas em resposta a alguns dos aspectos mais negativos da Cidade Olímpica continuarão a empoderar os cidadãos para além dos Jogos. Apesar disto ser de pouca consolação para muitos a quem o sonho olímpico da atual administração prejudicou, estas redes representam algo positivo para a sociedade civil que quer se envolver nas decisões políticas. Talvez, após os Jogos, esta sociedade civil possa imprimir sua vontade sobre quem quer que seja que suceda ao Prefeito Eduardo Paes nas eleições municipais, e contribua para a reforma do legado olímpico de forma a que este beneficie todos os cidadãos do Rio, e não apenas uns poucos.