Há muitas maneiras de se contar uma história e existem muitas histórias para serem contadas. Cosme Felippsen, 27 anos, utiliza a história oficial e a não oficial da cidade, faz performance e recita suas poesias enquanto guia os visitantes pela favela. Seu roteiro compreende tanto os caminhos criados pela Prefeitura do Rio, em 2005, para o chamado Museu à Céu Aberto da Providência, quanto os caminhos eleitos por ele mesmo.
Cintia Sant’Anna, 30 anos, atriz, decidiu contar histórias do morro através do teatro. Depois de meses entrevistando moradores, ela e atores convidados pelo Bando Teatro Favela criaram e encenaram as histórias ouvidas na peça Entre Becos e Vielas.
Alexandre Lourenço, 37 anos, morador da Cidade Nova, parte do audiovisual como ferramenta para produzir novas narrativas sobre o morro e a Zona Portuária com a iniciativa Cine Providência.
Eron Cesar dos Santos, 49 anos, nascido e criado na Providência, biólogo de formação, é um historiador autodidata e criador do blog Museu Comunitário da Providência onde, junto com o morador Roberto Marinho, vem divulgando as histórias da comunidade.
Assim, cada um deles cria e recria seu próprio reservatório de lembranças sobre a primeira favela do Brasil–o Morro da Providência.
Histórias de ontem e hoje no roteiro de Cosme
“Antes de ser chamado de Morro da Providência era chamado de Morro da Favela. Antes de Morro da Favela era Morro do Livramento. Antes de Morro do Livramento eram as terras do Senador Bento Barroso, por isso a gente tem a Ladeira do Barroso”, conta Cosme Felippsen, morador e guia turístico da Providência.
Cosme conta que tinha 8 anos de idade quando fez seu primeiro guiamento no morro. Era 1997 e se comemorava oficialmente os 100 anos da primeira favela do Brasil a partir da ocupação do morro feita pelos ex-soldados e vivandeiras da Guerra de Canudos. Um casal estrangeiro pediu para Cosme mostrar os becos e vielas da favela. Como pagamento ganhou um picolé e em casa quase apanhou da mãe por ter andado com estranhos. Em 2015, Cosme se formou como guia de turismo e mantém uma página na rede social, Providência Turismo, para agendamento de visitas.
Entre o material de trabalho, Cosme carrega sempre o livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, onde ele aparece nas páginas 96 e 97, um outro do artista Vhils que esculpiu os rostos de moradores nas paredes de suas casas numa ação contra as remoções no morro, uma apostila sobre Remoções e Literatura de uma oficina realizada no Museu das Remoções da Vila Autódromo e mais um livro do fotógrafo francês JR com várias imagens da Providência, trabalho este que deu início a ONG Casa Amarela. Quando não tem visitas agendadas, Cosme vende empadas e doces na Central do Brasil e no entorno. Ele tem dois filhos e mora numa ocupação na Ladeira do Faria.
“A prefeitura removeu 50 famílias, mas uma família resistiu e a partir dela mais famílias foram reocupar o espaço vazio. Na maioria são cearenses que trabalham na Central do Brasil. Os entulhos das remoções da prefeitura estão aí até hoje, são os moradores que vão retirando aos poucos”, conta Cosme. “A Secretaria de Habitação tinha que trocar de nome pra Secretaria de Remoção. Ela mais removeu do que deu casa. Queriam remover 832 famílias. E quantas casas ela fez aqui? 34. Não tinha que mudar de nome?”.
Teatralizando a memória e enfrentando o cotidiano
Iniciativa da moradora Cintia Sant’Anna, 30 anos, a peça de teatro Entre Becos e Vielas do Bando Teatro Favela foi montada a partir de um trabalho de entrevista feito com moradores da Providência e apresentada ao longo do último mês de julho no Largo da Igreja.
“É um texto muito honesto. As três histórias falam da importância da honestidade, da solidariedade que a gente tem um com o outro e que a gente só conhece dentro da comunidade”, disse Cintia.
Monica Saturnino, 41 anos, conta que foram dois meses gravando áudio com os moradores, mais de oito horas de gravação: “É um morro histórico, famoso, mas a gente queria contar a história das pessoas. Não é uma pesquisa histórica, é uma pesquisa emocional, digamos assim”, afirma Mônica.“A partir dessas histórias montamos o espetáculo. A gente fez ficção com as histórias. Os entrevistados assistiram, se emocionaram, gostaram”.
A dupla convidou outros atores de fora do morro para participarem da pesquisa e espetáculo. Thiago Viana, de 28 anos, morador do Morro da Conceição foi um deles e afirma que foi muito prazeroso ouvir as histórias dos moradores: “Gosto muito de pesquisa de conteúdo histórico. Esse projeto me deu outra linha de ação que era pouco explorada. As pessoas sempre pegam as histórias do Morro da Providência mais conhecidas, mais midiáticas, e o projeto era o contrário disso. Era buscar os moradores anônimos que não estivessem nesse círculo que todo mundo conhece, e partir dessas histórias para construir a dramaturgia. As vezes a gente queria obras de Machado de Assis pra cena, mas o projeto não era isso”.
As histórias mais conhecidas lembram que a Providência foi a primeira favela do Brasil, a infância do escritor Machado de Assis no morro, os personagens sambistas, Dona Dodô (porta-bandeira da Portela), os blocos carnavalescos, as remoções, a construção do teleférico, a figura do estivador, as ações do exército e da polícia no morro–sendo um caso emblemático as mortes de jovens que foram presos e enviados para a facção rival, em 2008.
A UPP foi instalada na Providência em 2010, mas o exército chegou a ocupar a favela em 2006, depois que alguns fuzis dos militares foram roubados. Nessa ocasião, 11 favelas do Rio foram ocupadas, incluindo a Providência, mas as armas foram localizadas na Rocinha.
Cintia lembra que embora faça teatro há 6 anos, é a primeira vez que o morro tem um grupo de teatro. As outras iniciativas não duraram muito tempo e ela relembra as dificuldades encontradas na realização do espetáculo: “Várias vezes teve tiroteio durante os ensaios. Duas vezes a gente não apresentou o espetáculo porque teve operação no morro ou porque morreu alguém. Tudo isso mexe com o cotidiano e a gente vive nesse cotidiano. Não é como ficar em cartaz em um teatro”, disse Cintia. “Manter um grupo é muito difícil e o território é muito singular por todos os motivos que a gente sabe. Agora todo mundo quer ser favelado, tá na moda. Mas o cara não mora na favela r não sabe o que é, as vezes, deixar de chegar em casa por causa de tiro, tomar dura da polícia”.
A história numa tela de exibição: cinema no morro
Foi através de um curso na área cultural que Alexandre Lourenço, 37 anos, se aproximou do morro e criou o Cine Providência, projeto chancelado pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio.
Recentemente, ele produziu o curta Olhares da Providência para o Festival 72h. Na última apresentação do Cine Providência, em julho último, os moradores ficaram emocionados ao reconhecerem vizinhos e lugares na tela de exibição. Segundo Alexandre, o acervo do cineclube tem cerca de 120 curta-metragens produzidos na Zona Portuária e ele está finalizando um longa metragem sobre a escola de samba Vizinha Faladeira.
Alexandre afirma que tem feito também um trabalho de memória realizando pesquisas sobre a escola de samba na Biblioteca Nacional e no Arquivo Nacional, além de entrevistar ex-integrantes da escola: “Tem que fuxicar muito pra encontrar as raízes da escola, já que ela ficou 50 anos com a bandeira enrolada. Tem que buscar moradores que nem moram aqui mais. Encontrei parentes de fundadores da escola, por exemplo, em Campo Grande. É muito trabalhoso, mas é gratificante”.
O documentarista afirma que a Vizinha Faladeira é uma das escolas mais antigas do Brasil e trouxe uma série de novidades que até hoje são utilizadas nas escolas como a ala das crianças e a comissão de frente, por exemplo. A escola integrou o Grupo C dos desfiles carnavalescos deste ano. Vizinha Faladeira foi criada por malandros do Santo Cristo em homenagem a vizinhas que vigiavam suas vidas: “Eram duas vizinhas do beco, na rua da América, que viviam fazendo fofoca. Antigamente, o símbolo da escola era uma velha com a língua enorme. Agora é uma sereia”, afirma Alexandre.
Lendas e contos da Providência
Eron Cesar dos Santos, 49 anos, é zelador da Igreja Nossa Senhora da Penha. Seus pais cuidam do espaço desde 1973 e ele cuida desde que faleceram. É contra-mestre de capoeira do Grupo Ventre Livre e há mais de 20 anos participa do núcleo de capoeira do morro. Além de receber e guiar visitas no morro, Eron coleciona histórias de assombração no morro.
Segundo histórias passadas ao longo de gerações de moradores, há o Pé de Ferro, um ex-escravo que percorre o morro de madrugada arrastando correntes e há também a trouxa de roupa que sai rolando do oratório, onde muitas lavadeiras trabalhavam, e se enrola no primeiro morador que encontrar pelo caminho, roubando-lhe a alma. A Igreja Nossa Senhora da Penha também é cheia dessas histórias.
“Antigamente, a igreja não tinha luz elétrica. Aí, um morador vira e diz: ‘Poxa, a igreja do Cruzeiro está toda iluminada, tá bonita’. Aí, o outro morador estranha: ‘Ué, mas não tem luz elétrica lá’”, conta Eron rindo. “Na Nossa Senhora da Penha, as pessoas também viam sair um casamento por volta da meia-noite… De repente, tudo se apagava e terminava a festa”.
O zelador conta as histórias de assombração com um sorriso e lembra que ele próprio já presenciou um causo. Quando dava aula de reforço escolar, ele e a aluna escutaram alguém subir a escadinha da igreja, desde do primeiro degrau até o último: “Achei que estava ficando maluco e nós dois ouvimos”, garante Eron.
A Igreja sobrevive de doações, mas apoio para manutenção tem sido mínimo e Eron não recebe pagamento para cuidar do lugar. Além de zelador, professor de capoeira e de reforço escolar, Eron é historiador do morro e a cerca de 2 anos criou virtualmente o Museu Comunitário do Morro da Providência. O trabalho de preservação da memória local está no início mas conta com o também morador, Roberto Marinho.
“A Providência para mim significa vida. É a minha história, meu espaço. Foi onde nasci é o lugar onde eu cresci. É onde meu filho nasceu. Eu quero deixar algum legado pra ele e espero que um dia ele deixe para os filhos dele também”, conclui Eron.