Esta é a terceira matéria de uma série de três que analisa iniciativas comunitárias em três favelas. Lideradas por um ou mais moradores, estas iniciativas têm em comum o objetivo de levar às comunidades um ciclo virtuoso de desenvolvimento econômico, social e/ou cultural.
O Complexo da Maré é o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, estendendo-se por 16 comunidades da Zona Norte, com cerca de 140.000 moradores. Embora seja frequentemente destacado em notícias da grande mídia sobre a violência urbana, é o lar de uma sociedade civil muito diversificada e dinâmica. Um ator fundamental nesse dinamismo é Maré Vive, um coletivo informal de mídia comunitária que trabalha para proteger e empoderar os moradores da Maré, através do acompanhamento da violência e documentação da memória coletiva.
O nascimento de um coletivo
Maré Vive nasceu devido a ocupação militar que durou 15 meses na Maré, iniciada em abril de 2014, dois meses antes da Copa do Mundo, e continuou até junho de 2015. Três dias antes da ocupação, um grupo de moradores locais envolvidos em atividades culturais–jornalistas, fotógrafos e designers–se reuniram em um bar da comunidade para discutir como prevenir o previsto abuso militar. “Em outras favelas a invasão militar foi brutal, houve várias violações de direitos humanos, então na Maré estávamos preocupados com o que iria acontecer aqui”, diz Josinaldo Medeiros, membro do Maré Vive que prefere a expressão “invasão” militar em vez de “ocupação” militar.
O grupo decidiu cobrir a entrada do exército na favela, com transmissão ao vivo de fotos e vídeos em uma página do Facebook, criada especificamente para esse fim, “porque o Facebook é um lugar onde as pessoas da favela estão”, explica Naldinho Lourenço do Maré Vive. O objetivo do novo coletivo de mídia foi monitorar, em nome da comunidade.
Uma semana depois, a página do Facebook Maré Vive já havia obtido 5.000 curtidas. Naldinho reflete: “No princípio, Maré Vive não foi pensado como algo permanente, foi pensado como uma coisa pontual. Mas quando criamos a página tivemos uma enxurrada de curtidas. A cobertura de mídia era uma demanda da favela, por isso continuamos. Nós não tínhamos metodologia, foi uma coisa muito natural mesmo”.
O coletivo também criou um site no WordPress onde publicou um “Manifesto contra a ocupação militar das favelas da Maré, Rio de Janeiro, Brasil”, mas este site não foi mantido após as primeiras postagens.
A página do Facebook, no entanto, só continuou a crescer. A partir de fevereiro de 2017, a página chegou a quase 87.000 curtidas. Junto com outros moradores da Maré, o coletivo desenvolveu uma metodologia que chamam de “alta proteção comunitária”, que consiste em informar aos moradores sobre qualquer tiro ouvido na comunidade. “Nós viramos uma referência para as pessoas. Antes de sair de casa, as pessoas acessam a página Maré Vive para ver se há uma operação acontecendo”, diz Josinaldo Medeiros.
Embora o exército tenha deixado a favela, operações policiais ocorrem regularmente e o coletivo desempenha um papel importante na luta contra a violência policial. Josinaldo Medeiros diz: “Nós nos tornamos uma barreira para eles (o exército e a polícia), porque antes eles faziam o que queriam”. Ele explica que a plataforma informou os moradores sobre seus direitos e como eles poderiam denunciar casos de violência policial. “Foi um processo de formação também para as pessoas da favela”.
Em fevereiro de 2015, após uma morte e vários moradores da favela feridos em tiroteios policiais, o coletivo organizou um protesto massivo contra a violência policial ao longo da Avenida Brasil. “Foi uma manifestação totalmente independente, sem veículo institucional, sem palanque. Foi organizada com as pessoas, organicamente. Foi um ato a favor da vida”, explica Josinaldo.
Além disso, Maré Vive também enfatiza e sustenta a memória coletiva postando dados e vídeos relacionados com a história da comunidade, e ajudando as pessoas a procurar informações sobre sua genealogia. De acordo com Josinaldo, esse trabalho também é muito apoiado pelos moradores do Complexo: “Nós começamos a perceber que nossos posts também mobilizavam as favelas. Pessoas que não conheciam a história da comunidade queriam saber como era antes”.
Informalidade e Independência
Maré Vive agora é composta por cinco membros ativos, a maioria deles moradores de longa data da Maré. Com idade entre 25 e 40 anos, todos compartilham uma experiência em produção cultural e mídia-ativismo, em parte influenciada e inspirada por ONGs ou projetos da sociedade civil, tais como Cinemaneiro ou 5x favela, que trabalharam para ampliar as vozes dos moradores através da produção audiovisual. Josinaldo explica: “Na década de 90, principalmente, e início da década de 2000, havia um discurso muito forte de descentralizar a cultura e o poder para a periferia, de democratizar as coisas. E foi nessa onda que nós fomos formados”.
De acordo com Naldinho, os membros do Maré Vive também são representantes de uma geração que se beneficiou da democratização da produção de mídia através da internet: “Na época, a mídia digital estava chegando com força na periferia. Era uma coisa nova para nós, porque, até então, nós só recebíamos informação. Não produzíamos”.
O coletivo é gerenciado voluntariamente por seus membros em seu tempo livre, cada um deles trazendo suas próprias habilidades e conhecimentos para o grupo. Seus membros dão grande importância à independência e à informalidade do Maré Vive, que não tem registro oficial e não recebe financiamento. De acordo com Wagner Novaes, outro membro do coletivo, seu caráter informal lhe dá mais flexibilidade e lhe permite ficar perto das pessoas, trabalhando como um movimento social e não como uma instituição.
Josinaldo Medeiros diz: “Queríamos ser uma coisa da favela para a favela, totalmente independente. Queremos dar voz ao povo, aos que não são ouvidos, sem intermediários. É isso justamente o que nos dá credibilidade”. Naldinho acrescenta: “Muitas pessoas pensam que os moradores das favelas são ignorantes, que não têm opiniões políticas ou que são extremamente conservadoras. Mas isso é mentira. O que falta é informação, é carinho mesmo. Se você educar os moradores para falarem por si mesmos, eles vão querer falar”.
A independência financeira do Maré Vive também garante a liberdade de expressão dos seus membros, e lhes permite manter uma linha política firme, que Josinaldo diz que é parte da razão pela qual o movimento tornou-se tão popular. “A gente ganhou muita potência por causa de nosso posicionamento. As pessoas acreditam na gente porque colocamos tudo em preto e branco, somos claros. Porém, também fizemos alguns inimigos e causamos desconfiança, principalmente de instituições”.
Membros do movimento até receberam ameaças de morte por parte da polícia em seus estágios iniciais. O momento mais crítico na curta história do Maré Vive foi quando a sua página no Facebook foi clonada por pessoas que claramente tinham uma intenção. Josinaldo relata que a página falsa começou a postar fotos de traficantes de drogas para criar confusão em torno da identidade e propósito real do Maré Vive: “Começou a criar-se uma confusão. A gente tentava entrar na nossa página e caia na deles, e realmente era parecida, era um clone. A partir daí parte dos moradores ficaram contra a gente. Isso nos prejudicou muito”.
Felizmente, membros do Maré Vive foram capazes de se comunicar com jornalistas de fora da favela, que ajudaram a restabelecer a página genuína. O coletivo mantém fortes laços com jornalistas e ativistas de fora da comunidade, o que lhe dá visibilidade e os torna mais resilientes às ameaças.
Rumo ao empoderamento da comunidade e à elaboração de políticas participativas
Quando perguntado sobre o futuro do Maré Vive, Josinaldo diz: “Nós não sabemos onde nós queremos chegar, mas nós sabemos por onde estamos indo. Ainda estamos na fase de garantir a vida, porque a nossa luta aqui é a favor da vida mesmo, inclusive da nossa, mas a gente quer sair da denúncia. Queremos trabalhar a memória e participar das políticas públicas”. De fato, alguns dos membros do coletivo estão atualmente finalizando um filme sobre velhos pescadores da comunidade.
O coletivo também gostaria de ter o seu próprio site, a fim de arquivar o seu conteúdo e atender às demandas dos moradores da Maré de forma mais eficiente. Com uma base de seguidores no Facebook que continua crescendo, os membros do Maré Vive se sentem muitas vezes sobrecarregados e lutam pela estabilidade financeira. Eles veem como um desafio para os próximos anos a capacidade de encontrar o equilíbrio certo entre atividades externas geradoras de renda e o trabalho voluntário dentro do coletivo.
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Confira a série de perfis de mídias comunitárias aqui.
Série Completa: Ciclos Virtuosos de Desenvolvimento
Parte 1: Turismo Comunitário no Turano (Turantour)
Parte 2: Educação e Cultura no Morro do Salgueiro
Parte 3: Maré Fala por Si Mesma (Maré Vive)