Como moradora da favela do Parque União no Complexo da Maré, me tornei familiar com o mercado informal desde muito jovem. Muito dos meus vizinhos ganham a vida vendendo refeições e doces caseiros pela cidade, e meus pais provavelmente teriam dinheiro para comprar um apartamento fora da favela se não tivessem fechado sua barraca de lanches em frente à Igreja Universal em Botafogo para criar meu irmão e eu.
No começo de janeiro, com a crise econômica afetando o pequeno estabelecimento de comida dos meus pais na favela, meu irmão e eu decidimos agir e fazer um dinheiro extra para conseguir realizar uma viagem.
Todo ano, a Prefeitura do Rio realiza um sorteio que permite que trabalhadores informais trabalhem legalmente no ensaio técnico das escolas de samba. Mais de mil pessoas se registraram para conseguir o direito de vender em um de dezoito barracas de comida ao redor da avenida que vai para o sambódromo. Assim sendo, tiramos vantagem de toda nossa família, escrevendo nossos pais, sobrinhos, primos e qualquer um que conseguimos lembrar.
Dois dias depois, acordamos com a notícia de que minha mãe tinha sido a terceira pessoa a ser sorteada, nos dando o direito de escolher a terceira barraca mais próxima do sambódromo. Fechamos nosso restaurante para conseguir reunir todos os documentos requeridos junto com as xerox (RG, CPF, comprovante de residência, fotos 3×4, etc) e apresentá-los na Coordenação de Controle Urbano até às 5 da tarde do mesmo dia.
Ao chegarmos no Controle Urbano às duas da tarde, fomos informados pelos funcionários que o processo de inscrição havia terminado. Uma vez que não tínhamos comparecido de 10 às 10:30, quando a distribuição das barracas ocorreu, o nosso local tinha sido dado a outra pessoa. Lembramos a eles que os resultados do sorteio só havia sido publicado às 10 da manhã daquele dia–como é que poderíamos então aparecer ali, com a documentação necessária, em 30 minutos?
Depois de uma hora de discussão com um funcionário que se ausentava para trazer outro, fomos informados de que teríamos permissão para vender comida, mas que como todas as barracas já haviam sido escolhidos, o nosso ponto na avenida estava por enquanto indeterminado.
Dois dias depois, nos reunimos em um quarto escuro no porão da prefeitura para ter uma palestra da Vigilância Sanitária e receber nossos documentos de identificação para começar a trabalhar. Mas no final da reunião, os funcionários nos disseram que éramos os únicos que não receberíamos esses papéis.
Primeiro eles disseram que era porque nosso comprovante de residência não era válido pois tinha sido emitido há mais de um ano. Sem acreditar, eu lhe disse que o “2015” a que ele se referia fazia parte do código de barras, e apontei para a data do mês anterior, para o riso de seus colegas.
Sem mais desculpas, o funcionário falou que não havia simplesmente nada que pudéssemos fazer exceto esperar. Percebendo que algo estava errado, comecei a anotar os crachás de identificação dos funcionários, caso precisasse apresentar uma queixa–e de repente, eles o viraram para que eu não fosse capaz.
Quando saímos do prédio, fui abordada por dois homens oferecendo mais de mil reais para comprar nossa licença para a barraca. “É claro que é ilegal”, um deles me explicou, “mas ninguém tem problema com isso. Acontece todos os anos”.
Decidimos não vender a barraca, resolvendo que estaríamos ambas fazendo a coisa certa e ganhando mais dinheiro trabalhando direito. Mas quando chegou o dia do primeiro ensaio, não tínhamos recebido nenhuma chamada sobre nossas licenças–e todas as tentativas de contatar funcionários foram recebidas com vagas garantias para continuar esperando.
Para ter uma ideia do trabalho em si, fomos ao sambódromo enquanto os vendedores estavam montando suas barracas. Encontramos pessoas trabalhando sob estrita supervisão, mas não pelas leis e regulamentos da prefeitura. Aqueles que vendiam bebidas dentro do sambódromo (por cerca de quatro vezes o preço normal) eram obrigados a abastecer com uma mulher velha e ansiosa, que em troca levava para casa 90% de todo o lucro.
Quando o ensaio começou, vi as barracas funcionando e quebrando quase todos os regulamentos a serem seguidos: mais de seis pessoas trabalhando ao mesmo tempo (o número máximo era de dois), a venda de certos queijos que tinham sido proibidos, carne pendurada e exposta, manipular alimentos enquanto passa troco. Nenhuma barraca de comida tinha a identificação de licença e nenhum dos fiscais estavam presente para monitorar a situação.
Eu percebi que nossos esforços com funcionários durante todo esse processo tinha sido em vão–ninguém lá estava trabalhando legalmente. Apesar da ideia de que essas pessoas em barracas de alimentos são pobres trabalhadores que merecem ser apoiados, não eram pessoas como nós da favela: eram aqueles que tinham ligações, aqueles que podiam pagar subornos.
Tentamos trabalhar legalmente, seguindo as normas estipuladas nas leis da cidade, e tínhamos perdido para uma máfia predominantemente masculina e de alto funcionamento.
Sem opções e esperança, eu voltei para casa e registrei uma queixa com a Ouvidoria da Prefeitura. Eu aleguei que uma máfia tinha operado para excluir minha mãe e eu de vender dentro de nossos direitos e providenciei gravações relevantes que eu tinha feito junto com fotos e números de identificação. Um homem me disse que eu receberia uma resposta dentro de cinco dias úteis.
Já faz mais de um mês que não recebi nenhuma resposta. Eu liguei na semana passada e outro homem me disse uma resposta que eu já conhecia: que tudo o que eu podia fazer era esperar.
Aline Galdino é estudante universitária, aluna de Ciência da Computação na UERJ e moradora do Complexo da Maré.