A Audiência Pública, Casas Invadidas, Vidas Violadas e outros abusos Policiais no Complexo do Alemão, ocorrida na última segunda-feira, dia 24, na Defensoria Pública do Estado do Rio, tomou como ponto de partida a invasão das casas de moradores do Complexo para serem usadas como base policial, e seguiu para cobrir o debate mais amplo acerca da arbitrariedade e violência policial praticadas na favela.
Dado o estado de tensões sobre o tema, a audiência foi altamente intensa, emocionalmente carregada e as vezes combativa, apesar da insistência da mesa, que foi formada por representantes da Defensoria Pública, da Comissão de Direitos Humanos da Alerj e da Câmara dos Vereadores, das Secretarias de Segurança Pública e de Saúde, do Comando das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), e de movimentos sociais do Complexo do Alemão, entre outros. A proposta inicial era um caráter conciliatório para audiência, que deveria abrir um canal de diálogo entre moradores e policiais. Marcelo Freixo, na condição de presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa, afirmou: “A gente precisa parar de querer saber de que lado se conta mais corpos. Não tem vencedor”.
“Tem lado A e lado B sim”, gritava a plateia em resposta a tentativa de fomentar uma identificação mútua entre os presentes como vítimas de uma mesma política de segurança pública falida. A divisão era, inclusive, espacial: os cerca de trinta policiais, fardados, sentavam juntos de um lado da sala, enquanto moradores, portando cartazes, ocupavam o outro lado.
“A polícia diz que a guerra é contra as drogas, mas a guerra é contra morador. Bala perdida só encontra morador. A polícia entra e tira as pessoas de casa para fazer base. Expulsaram um casal de idosos a pontapés, fizeram xixi em cima da televisão de morador, tomaram o iogurte da criança e apontaram o fuzil pra ela dizendo ‘Se não calar a boca, vou calar’. Não protejo bandido, mas traficante nenhum nunca tirou ninguém de casa”, denunciou Cleonice Madalena, moradora e voluntária do projeto FavelArte. O pastor Jorge Felix contou que precisou se mudar da favela: “A casa virou ponto estratégico da PM, que faz trocas de plantão na minha laje. Eles alegam que o momento é de guerra e que têm ordem superior para ficar lá”.
Sentado à mesa, o tenente-coronel Marcos Borges, subcomandante da UPP, tentou justificar a invasão das casas na Praça do Samba como uma atividade temporária na ausência de uma base militar na qual os policiais pudessem se proteger.
“Uma casa no Complexo do Alemão tem que ser tão respeitada como uma casa no Leblon. Não dá mais para a gente restringir o território da guerra”, colocou Freixo.
O estabelecimento de bases no Alemão é historicamente polêmico, já tendo sido usadas para bases de UPP parte do terreno de uma escola e uma quadra esportiva. Essas ações restringiram o acesso das crianças à educação e lazer, ilustrando a hierarquização de políticas públicas que é feita pelo Estado: serviços básicos são subordinados a dinâmicas policiais.
Algumas dessas casas estão ocupadas desde janeiro, mas a história recente de terror no Alemão pode ser traçada às ocupações de 2010, quando blindados das forças armadas adentraram a favela e a Polícia Militar hasteou uma bandeira no alto do teleférico como símbolo da retomada territorial. Raull Santiago, ativista do coletivo Juntos pelo Complexo e um dos membros da mesa, disse: “As operações funcionam segundo a lógica do medo. Em 2010 eles vieram com um novo discurso e repetiram o erro–ou o acerto–e reafirmaram a polícia como a única política pública que chega na favela. A polícia foi mandada para impedir as ocupações de moradores da favelinha da Skol, mas hoje a polícia ocupa 3 casas no alto da Alvorada e ninguém fala da propriedade privada, porque a propriedade privada do pobre não vale nada”.
Desde o estabelecimento das UPPs no Complexo, a história se repete: assim como vem acontecendo nas últimas semanas, em 2014 e 2015, um número elevado de mortes decorrente de operações policiais, protestos pela paz e mobilização nas mídias sociais já eram realidades, assim como encontros como essa Audiência Pública, que recomendavam a saída da UPP da comunidade e que acabavam em tensão e troca de acusações.
Essa história é, no entanto, muito mais antiga, fruto de um pensar a política de segurança pública como uma guerra entre vítimas e vilões, como lembrou um vídeo exibido no início da audiência. O vídeo traçou um panorama histórico das operações na favela, lembrando de políticas que predominaram na década de 90, como a bonificação dada a policiais por número de mortes, até a ocupação de 2010, reforçando uma ideia que foi repetida por diversos moradores ao longo da tarde: “o Estado normaliza a morte”, especialmente a morte de negros, pobres e periféricos.
“Mais do que desocupar as casas, a gente quer poupar a vida das pessoas”, disse Alan Brum, morador e ativista da ONG Raízes em Movimento. Nesse sentido, a audiência lembrou alguns dos que perderam suas vidas ou sua liberdade nesse confronto. Aclamações como “Eduardo, presente!” e “Liberdade para Rafael Braga” iniciavam a fala de muitos dos moradores, como forma de lembrar e honrar os seus. Terezinha, mãe do menino Eduardo reiterou em seu discurso sua falta de confiança na instituição policial. Dalva, que também teve o filho assassinado pela polícia no morro do Borel, diz que a favela é criminalizada e que “a guerra não é de combate às drogas, mas às vidas”. Raull lembrou: “O Bruno morreu dentro de casa, o Gustavo indo trabalhar. Hoje faz um ano do enterro do mototaxista Shrek, que o policial abriu fogo primeiro antes de perguntar quem era, padrão na ação da polícia”.
A ausência do governador ou de um representante executivo do governo do estado, responsável pela política de segurança pública e a gestão da Polícia Militar, não passou despercebida. Faltaram também representantes das secretarias de educação e cultura, essenciais para se pensar uma política para as favelas humana e integrada. A ausência do Prefeito Crivella também foi notada, já que ações da prefeitura, como as ações de infraestrutura recentemente propostas pelo prefeito, podem mitigar ou reforçar a sensação de insegurança. “Tô doida para que o Crivella apareça aqui para eu perguntar pra ele se, além de blindar as escolas, ele também vai blindar os barracos, as próprias crianças que são baleadas no acesso à escola. Isso é demagogia barata”, disse Cleonice.
O desentendimento central começou quando um policial pediu a palavra para refutar acusações de que a polícia seria genocida por parte dos moradores. “Em uma guerra, precisamos escolher um lado”, ele afirmou, defendendo que, assim como os moradores estão aprendendo a filmar a ação policial, um direito garantido por lei, eles deveriam filmar também a ação de traficantes. O comentário foi recebido por vaias da plateia, que gritava que o morador não estava lá para fazer o trabalho da polícia. O comentário mostra, ainda, uma insensibilidade tamanha por parte do policial, que pede que os moradores coloquem sua segurança e integridade física em risco ao propor coloca-los frente a frente com traficantes, e iguala as duas ações. Pois filmar a atividade policial não deveria ser um risco se eles operam dentro da lei e seu mandato é a proteção dos cidadãos. As partes trocaram então acusações de “assassinos” e “cúmplices do tráfico”.
Ao abandono dos policiais da sala da audiência se seguiu o abandono da mídia, que estava presente em peso até este ponto. Enquanto moradores ocupavam seu espaço no microfone para relatar suas experiências, todas as câmeras e microfones estavam voltados para o Capitão Zuma, comandante da UPP do Alemão, que mostrava fotos impressas de traficantes armados e insistia que somente uma casa, anteriormente abandonada, havia sido ocupada, enquanto a Defensoria Pública identificou no mínimo cinco. Na tentativa de justificar a ação, ele alegava que dentro do Largo do Samba “havia uma imensa boca de fumo” e várias casas abandonadas, crivadas por bala. Ele alegou colocar sua carreira em risco para proteger a vida dos policiais, que estavam sendo atacados por traficantes, e evitou uma pergunta insistente por parte de um dos presentes: “A lei foi observada nesse processo?”.
Os moradores contam uma história diferente, comprovada pela Dra. Lívia Casseres, representante da Defensoria Pública na mesa. Ela conta que o Núcleo de Defesa foi procurado em janeiro por famílias que alegavam ter tido seus cadeados rompidos e acusavam a presença constante de policiais em suas lajes. Imagens aéreas e a presença de eletrodomésticos sugeriam que as casas não estavam abandonadas e, mesmo que estivessem, o código legal brasileiro garante a posse mesmo em caso de desocupação. Segundo ela, a UPP da Nova Brasília foi procurada, mas não houve conciliação. Ao fim da audiência, a Defensoria recomendou a desocupação imediata e indenização por prejuízos sofridos, inclusive eletrodomésticos danificados.
Moradores clamavam, inclusive, pela prisão no ato do subcomandante das UPPs, que admitiu a invasão, declarada inconstitucional, das casas. Marcos disse ainda que a postura inicial de “promoção da paz e preservação da vida” teve que ser abandonada. “O crescimento da criminalidade nos demandou outras atitudes”, disse ele. Ele seguiu o discurso do capitão Zuma de que a invasão das casas se deu para a proteção do policial. A saída está sendo providenciada, mas, diferentemente da entrada, precisa seguir um planejamento. “A gente ia retirar eles hoje, mas choveu muito no final de semana”, foi a sua justificativa.
Ele disse, ainda, que a polícia tem uma comissão para reavaliar a permanência das UPPs e para apurar abusos policiais. “É lá que vocês decidem se a gente vive ou morre, Coronel? Me conta então onde essa comissão se reúne”, exigiu Mariluce Mariá, coordenadora do FavelaArte.
Esperar que moradores denunciem a polícia para a própria polícia é um tanto irreal, seja em termos da falta de confiança na instituição policial para investiga-la, seja pelo medo de retaliação. Um dos moradores inscritos na lista de oradores, que teve a sua casa invadida, desistiu de dar o seu relato devido à presença policial no local. Leonardo Souza, morador e ativista do Ocupa Alemão, questionou essa presença: “Para mim, policial estar presente no espaço onde ele está sendo acusado só serve um propósito: coação”. Para ele, a audiência não deveria ter função de reconciliação, mas de denúncia: “As armas e drogas entram no Alemão com o aval e pela corrupção da polícia”.
Fransérgio Goulart, ativista do Fórum de Juventudes, relatou que nada aconteceu depois de sucessivas audiências públicas em 2015 e 2016. “A única coisa que mudou é que o número de mortos é maior”, colocou Raull. “Esse espaço não tá resolvendo, mas o que tem de positivo aqui é o espaço terapêutico. A comunidade vem aqui e berra, grita, e os policiais têm que escutar calados. Aqui vocês não vão me matar”, completou Fransérgio.
Enquanto a audiência acontecia, a página do Coletivo Papo Reto denunciava a presença de policiais militares e do BOPE no Alemão, que teriam fechado a rua principal da Alvorada para construírem a tal base policial. O saldo da operação foram dois policiais baleados, um morador morto e pelo menos uma casa invadida. O morador, o jovem Paulo Henrique, de 13 anos, se somou ao Gustavo, de 17, ao Bruno, de 22, mortos na sexta-feira (21) e à Dona Bernadete, 68 anos, que caiu da laje assustada com os barulhos de tiro e também veio a óbito.
No dia seguinte à audiência, moradores se organizaram em uma caminhada com o tema “Vidas nas Favelas Importam”. Também nesse dia, mais de 4 mil crianças ficaram sem aula devido à operação policial, que vitimou o jovem Felipe Farias. Na quinta-feira, dia 27, tiroteios nas ruas exigiram que professores corressem para colocar as crianças para dentro da escola no momento da chegada ao colégio–o que corrobora uma crítica feita na audiência que muitas operações policiais são feitas na hora de entrada e saída da escola.
Logo após a audiência, Mariluce lançou a seus amigos no Facebook a pergunta “Se você pudesse, iria embora do morro?”, ao que a grande maioria ressaltou seus laços afetivos com a comunidade, mas disse que já saíra ou sairia se tivesse oportunidade, devido às dificuldades vividas, à sensação de insegurança e à falta de confiança nas instituições. Alguns discordaram: “Jamais me renderei pra esse estado falido e de uma polícia assassina e corrupta”, disse o usuário Elilton Moreira.
Ao fim da audiência, moradores demonstraram medo de deixar o local devido à presença policial na porta do edifício e de chegar em casa, pois a articulação via rede social com outros moradores informou que estava acontecendo tiroteios naquele momento.
Recomendações feitas pelos moradores incluíram o fim das operações em horários de alta circulação de pessoas, o fim do uso do caveirão e das revistas arbitrárias de moradores, a entrada nas casas somente mediante mandados de busca, o afastamento imediato de policiais sendo investigados em processos de autos de resistência, a construção de um memorial para vítimas de violência policial e o fim da cumplicidade do judiciário com a violência policial.
Apesar da dúvida de que a audiência serviu para seu propósito conciliatório, ela foi efetiva em trazer a atenção da grande mídia para os abusos policiais ocorrendo no Alemão, e arrancou do subcomandante da UPP um compromisso público e, portanto, cobrável, de retirar os policiais das casas ocupadas até a terça-feira (que não foi cumprido, como alegaram moradores na quinta-feira).
E ontem, sexta-feira (28), foi aprovada, em decisão histórica da juíza Roseli Nalin, uma liminar baseada na ação proposta pela Defensoria determinando a desocupação imediata. Além disso, a audiência demonstrou a força política de um grupo de moradores que não irá se calar frente à violência policial e que se organiza para filmar, denunciar, constranger e cobrar os seus direitos.