Desde maio, o curso Estratégias para Territorialização de Políticas Públicas em Favelas, organizado pela Cooperação Social da Presidência da Fiocruz, tem atendido moradores da região, especialmente das favelas de Manguinhos, Jacarezinho, Arará, Alemão e Maré. No primeiro módulo, focado na governança territorial democrática dos espaços de favela, buscou-se o fortalecimento dos conhecimentos dos moradores acerca de políticas públicas, como de saúde, e de mecanismos de participação, incluindo a construção, o acompanhamento e o controle social de tais políticas. Essa formação inicial irá fomentar a elaboração de projetos, abordada no segundo módulo, que terá início em setembro.
Na aula inaugural, Ana Keila Stauffer, diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, onde o curso ocorre, ressaltou a importância da iniciativa no contexto atual de violência que a região vive, que ela atribuiu a uma sociabilidade de exploração econômica. Para ela, o engajamento no curso é sinal de um papel ativo dos moradores no que diz respeito à sua emancipação das opressões.
Observa-se recorrentemente a negação desse agenciamento nos discursos politicos paternalistas e assistencialistas comuns, que costumam infantilizar ou despir de potenciais o morador da favela. Nesse sentido é que o curso se soma a esforços diversos da sociedade civil de promover um aprofundamento democrático que permita a incidência sobre a formulação e execução de políticas públicas, essencial em um contexto em que direitos políticos são recorrentemente negados e direitos humanos rechaçados.
A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, destacou o histórico de lutas e resistências das favelas, que foi o recorte territorial priorizado no curso. Para ela, esse recorte permitiu simultaneamente o entendimento da favela em sua pluralidade e a percepção de que a particularidade da dinâmica de atuação do Estado nesses territórios também constitui a cidade. Isso é particularmente significativo para entendermos que os desafios das favelas não devem ser encarados como desafios isolados, já que a favela é parte integral da cidade.
“A proposta dessa formação é que vá ao encontro do que os movimentos sociais, as lideranças populares e ativistas vêm produzindo em seus territórios. Ela não vem de uma luz que vem da escola, da academia. Mas (vem) de uma ação, da pesquisa militante da própria Cooperação Social e de seus parceiros em territórios socioambientalmente vulnerabilizados”, colocou Leonídio Madureira, coordenador de Cooperação Social da Presidência.
Para Edilano Cavalcanti, morador de Manguinhos e da equipe do jornal comunitário Fala Manguinhos, esse objetivo foi atingido. Ele relatou ter ficado um pouco desconfiado no início pela ambição do conteúdo do curso e de sua proposta, apesar de confiar no trabalho das pessoas que estavam organizando. “Pra minha surpresa eu descobri que o aprendizado a que o curso se propunha não ia vir somente pelos instrutores convidados, mas também viria pela equipe de alunos–acho que a palavra não seria nem alunos, mas ouvintes, instrutores também–de diferentes favelas, diferentes movimentos sociais, cada um com uma experiência riquíssima. Cada vez que eu vou para a oficina, para a roda de debate, eu aprendo muito dos meus colegas. Tá sendo uma troca muito rica de conhecimentos de rua, do plural, da experiência na prática. E a pessoa que vem da academia, com uma experiência mais técnica de pesquisador, vem fortalecer isso a partir de outra perspectiva”, disse ele.
“Mas o caldeirão que me move a ir pras aulas é ver essa galera da minha rua, da Maré, do Jacaré, do Alemão e aprender com essa galera atuante, efervescente, desse território de favela ao mesmo tempo super-resistente e superdeflagrado”, ele completa. A reunião de tantos moradores engajados em um mesmo espaço duas vezes na semana teve inclusive forte impacto na criação de redes e no fortalecimento da atuação de moradores como multiplicadores do conhecimento em suas comunidades.
A aluna e moradora do Jacarezinho Sirleia Aleixo, por sua vez, emocionou a todos já na primeira aula ao contar sua trajetória. Tendo cursado só até a sétima série, ela diz que se descobriu “militante via arte”. “Eu era uma negra que aceitava tudo o que falassem de ruim sobre negros”, disse ela. Até que a filha ingressou no teatro e a mãe foi se descobrindo junto com ela atriz e escritora, além de ativista. Hoje, além da atuação, ela toca um projeto chamado #FavelaCultural, que promove atividades culturais na comunidade, e está envolvida em um projeto de intercâmbio de grafite junto com o Manguinhos em Cena, grupo de teatro do qual faz parte. Ela mesmo que escreveu as propostas para os editais: “eu que tenho a ideia, eu que faço o orçamento, eu que escrevo o projeto. E minhas filhas me ajudam. Eu só tenho até a 7ª série, mas já ganhei projeto de [milhares de reais]. Mas são projetos soltos, sem lugar fixo, sem suporte financeiro por mais tempo”.
Quando começou o curso, ela disse que não sabia muito o que esperar dele. “Mas eu deixei de fazer um curso de teatro no mesmo horário para fazer esse curso. E tá sendo uma preciosidade. Eu comecei a pensar projeto, a pensar de forma política. Eu fugia de política, para mim era coisa de vereador. Aqui eu aprendi que sozinho não se chega muito longe”, disse ela.
Sirleia ficou conhecida no grupo por sempre territorializar todas as questões que eram apresentadas, destacando a realidade da sua comunidade. Durante um levantamento feito junto aos alunos acerca da presença institucional nas favelas lá representadas, o Jacarezinho foi identificado como o único que não possuía instituições de pesquisa ou projetos de universidades. Além disso, a presença do Estado só foi lembrada na FAETEC, na UPP e na sede da região administrativa, e um número muito menor de ONGs foi levantado, quando comparado ao volume de organizações da sociedade civil na Maré e no Alemão, por exemplo. Mas ela reconheceu que na presença do comércio é que a comunidade se deslanchava das outras.
Agora, com o primeiro módulo se aproximando do fim, os alunos reuniram-se em grupos de acordo com suas áreas de interesse para identificar situações e problemas que enfrentam no seu cotidiano, e pensar junto à coordenação do curso caminhos para a sua solução. O diagnóstico deverá ser elaborado pelos alunos, buscando desenhar estratégias de enfrentamento que envolvam pessoas de territórios diferentes. Só então começarão a pensar em termos de organograma e orçamento, por exemplo.
No segundo módulo, que começa em setembro, serão apresentadas metodologias e ferramentas para a elaboração desses projetos de base comunitária, desde a redação até a captação de recursos. Além dos alunos do módulo Governança Territorial Democrática, novas vagas serão preenchidas por indicações de organizações comunitárias e lideranças dos movimentos sociais das cinco comunidades.