Um Ano Após as Olimpíadas: A Ditadura em Tempos de Estado Democrático [OPINIÃO]

Um Ano Após os Jogos

Militares e veículos montam guarda numa das entradas do Complexo da Maré. Fonte: Antonio Scorza/Agência O Globo

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A militarização se faz presente desde sempre na vida favelada, pois nos mais de 100 anos de favelas nós somos tratados pelo Estado como criminosos, violentos e marginais.

O Estado nos criminaliza todos os dias. Põe em cima de nós a culpa por existirmos. Lembro que na minha infância no conjunto de favelas da Maré, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, a brincadeira era sempre interrompida por caveirões que invadiam as nossas ruas. Tiros atrapalhavam o nosso sono. Gritos e pedidos de socorro ainda estão até hoje nos meus ouvidos, eu ainda ouço.

A democracia nunca funcionou para o espaço favelado. As torturas, os esquartejamentos, o toque de recolher ainda fazem parte da minha vida. Durante estes mais de 10 anos de magaeventos no Rio de Janeiro, a Maré passou a ficar cada dia mais militarizada. Lembro que durante os Jogos Pan-Americanos, em 2007, para além das ameaças de remoções naquela época, nossa favela mais uma vez sofreu com a militarização por causa dos grandes eventos esportivos, o que não foi e não é por acaso, já que a Maré está próxima às vias expressas da Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Estamos bem próximos também ao Aeroporto Internacional do Galeão, localizado na Ilha do Governador.

Muro erguido entre a Maré e a Linha Vermelha é chamado de "barreira acústica". Foto: Daniel Marenco/Agência O Globo

Assim como no Pan em 2007, no ano de 2013, durante a Copa das Confederações, tivemos a favela cercada mais uma vez pela Força Nacional e, enquanto havia um mundo se divertindo e gritando gol, nós mareenses sofremos com uma chacina. Foram 13 pessoas assassinadas pelo BOPE, mas teve o apoio da Força Nacional. Eles invadiram a favela quando moradores tentaram protestar na Avenida Brasil contra o aumento das passagens, contra a criminalização da favela e outros temas que estavam na ‘moda’ naquele momento de grandes protestos pelo país, mas é bom sempre lembrar que a “bala na favela não é de borracha, é fuzil”.

Em 2014 não foi diferente, a realidade só passou a piorar com a chegada da Copa do Mundo. No final de 2013, recebemos a notícia através dos telejornais que teríamos em toda a Maré a invasão das forças de pacificação, através do Exército.

O Exército ficou na Maré durante um ano e cinco meses e foram gastos 1,7 milhão por dia para a permanência dos soldados. Mais de 500 milhões em um ano e cinco meses. Mas, em 7 anos, o governo investiu apenas 350 milhões em outras políticas públicas, levantando o debate acerca de qual é a maior prioridade de investimento dentro de uma favela. Lembrando que tivemos também um soldado para cada 55 moradores da Maré, mas nunca tivemos um médico ou um professor para cada 55 moradores da Maré.

Tanques e mais tanques de guerra circulavam livremente a qualquer hora do dia e da noite pelas nossas ruas. Praticamente cada esquina da Maré tinha um tanque de guerra. Éramos nós os alvos, os inimigos, os perigosos, os que poderiam ameaçar aquele grande evento. Tudo isso só por sermos favelados, apenas por isso.

Nas Olimpíadas sofremos o mesmo. A cada semana eram mais de cinco moradores entre feridos e assassinados. Foi o período em que o governo mais gastou com a militarização–foram bilhões com compras de armas, coletes, spray, bombas. E o investimento em educação e saúde? Mais uma vez, nos perguntamos: qual a prioridade de atendimento e de direitos que temos e merecemos nesta cidade chamada maravilhosa?

A gente se pergunta: quantos mais morrerão? Quantas novas mães e familiares de vítimas vão surgir? Quantas casas iremos perder? Quantos sangues iremos lavar? Quantas lágrimas ainda iremos derramar? Quantas vezes ainda correremos do caveirão? Quantas censuras iremos sofrer? Quantos tanques de guerra eu ainda vou ver na porta da minha casa? Não podemos mais sobreviver assim. Queremos o direito à vida, o direito de existir, respirar, ser parte da cidade e não a margem! O Estado democrático de direito só funciona para uma minoria branca, rica e que mora no asfalto. Para a favela esse Estado não funciona, ele nunca nos deu o direito de existir.

Gizele Martins, de 32 anos, é jornalista e comunicadora comunitária do conjunto de favelas da Maré.