Durante o fim de semana de 12 de agosto, a cidade de Charlottesville, na Virgínia, EUA, foi palco de violentos confrontos entre os supremacistas brancos que participaram de uma manifestação “Unite the Right” (Unir a Direita) e manifestantes anti-racistas. Provocada pelo plano das autoridades da prefeitura de remover uma estátua de Robert E. Lee do Parque da Emancipação, uma coalizão de grupos de extrema direita realizou uma manifestação utilizando tochas na noite de sexta-feira. Lá, eles cantavam slogans como “vidas brancas importam” e “sangue e solo”, um slogan chave nazista que promove a pureza racial branca e o anti-semitismo. Lee foi o principal general da Confederação na luta dos Estados do Sul contra a abolição da escravidão durante a Guerra Civil dos EUA. Os nacionalistas brancos se manifestaram em torno de sua estátua, a despeito de sua história como senhor de escravos.
No dia seguinte, no sábado, multidões de contra-manifestantes antifascistas reuniram-se ao lado de grupos Alt-Right (abreviação de ‘direita alternativa’, uma nova denominação de extrema direita associada à movimentos nacionalistas brancos nos EUA) armados com escudos, cassetetes e rifles. A violência entrou em erupção entre os dois lados. Manifestantes batiam com cassetetes, perfuraram, e pulverizaram produtos químicos uns nos outros. Quando a polícia interveio a multidão se dispersou, e o supremacista branco James Alex Fields Jr. dirigiu seu carro em direção a uma multidão e matou a contra-protestante Heather D. Heyer. Em outro lugar, os nacionalistas brancos derrubaram o manifestante negro DeAndre Harris com barras de ferro, que o feriram gravemente. Apesar desses atos de terrorismo, o presidente Trump falou sobre a violência dos “dois lados“. Ele se recusou em múltiplas declarações a condenar o supremacia branca e os manifestantes neonazistas.
Os eventos em Charlottesville provocaram uma conversa nacional nos EUA sobre monumentos de figuras confederadas em espaços públicos e o re-surgimento de grupos usando discurso explicitamente racista e baseado em ódio. Embora nenhum desses tópicos esteja sendo noticiado no Brasil, eles falam de uma história paralela e de uma realidade existente de racismo e intolerância. Como os EUA, o Brasil era uma sociedade escravista durante a maior parte de sua história. A instituição da escravidão durou 246 anos nos EUA e 358 anos no Brasil. Os portugueses trouxeram cerca de 2 milhões de africanos escravizados para o Rio de Janeiro (4 milhões em todo o país), em contraste com os estimados 400.000 levados para os Estados Unidos. Esses legados influenciam as realidades raciais presentes em cada país, mesmo que a forma de racismo possa diferir entre os contextos. Algo como as manifestações de Charlottesville poderiam acontecer no Brasil hoje? Abaixo estão três fatores importantes a serem considerados:
1. Estátuas, Espaço Público e História Contestada
Apenas dois dias após os protestos de Charlottesville, uma ativista estudantil chamada Takiyah Thompson foi presa por seu papel em derrubar o Monumento dos Soldados Confederados em Durham, Carolina do Norte. Takiyah escalou a estátua e amarrou uma corda ao redor de seu pescoço, e uma multidão a usou para puxar a estátua para o chão. O historiador Eric Foner explica que tais estátuas representam uma “imagem da América como uma sociedade branca“. Os ativistas argumentam que elas honram as instituições da escravidão, as segregacionistas leis Jim Crow e a contínua discriminação institucional contra os afro-americanos.
Do mesmo modo, no Brasil, ativistas indígenas contestaram o Monumento às Bandeiras em São Paulo por causa da glorificação de símbolos racistas e coloniais. Um século e meio depois da sua fundação em 1554, a cidade foi o ponto de partida para as bandeiras, expedições portuguesas para o interior do continente. Estes bandeirantes capturaram e escravizaram povos indígenas e lutaram contra assentamentos de ex-escravos conhecidos como quilombos. À medida que São Paulo se modernizava, as representações populares dos bandeirantes como exploradores brancos heroicos, sem armas, mas corajosos, proliferaram. Em 2016, o Monumento às Bandeiras foi coberto de tinta vermelha ao lado de protestos por direitos indígenas. Uma estátua do bandeirante Borba Gato também foi condenada em um simulacro de “julgamento popular” e coberto de grafites.
Alguns críticos americanos argumentam que as estátuas confederadas deveriam ser contextualizadas, em vez de serem removidas. Na Zona Portuária do Rio de Janeiro, uma forma que os ativistas descobriram de contextualizar e até aprofundar a compreensão histórica na ausência de reconhecimento político é criar um aplicativo que qualquer pessoa que visite o Porto possa usar para explorar a verdadeira natureza da história da área.
Ativistas afro-brasileiros atualmente estão lutando para manter sua história no Porto. O projeto de revitalização Porto Maravilha, lançado antes das Olimpíadas de 2016, investiu fortunas em novos museus e sistemas de trânsito, tornando a região uma atração turística enquanto obscurecia sua história negra. O Porto é o lar do Cais do Valongo, onde os navios negreiros chegavam ao Rio, e do Quilombo da Pedra do Sal. Em uma recente audiência na Câmara Municipal sobre o “Museu da Escravidão e da Liberdade” no Porto, o membro do Movimento Negro Unificado, Marcelo Dias, disse: “O debate que estamos tendo aqui é o debate de retratações históricas para os negros. E as retratações históricas para os negros também significam a ocupação de nossos espaços”.
No Brasil, como no Sul dos Estados Unidos, ativistas que lutam pela libertação de grupos marginalizados voltaram-se para os marcos físicos do ódio e da violência no espaço público para enviar uma mensagem, seja para lembrar ou seguir adiante.
2. Crimes de Ódio e Religiões Afro-Brasileiras
Grupos Alt-Right em Charlottesville mostraram uma série de ideologias baseadas no ódio: anti-semitismo, militância anti-governo, supremacia branca, nazismo e sentimento anti-imigrante. A organização de monitoramento de ódio, Centro de Direito de Pobreza do Sul (SPLC) reporta um aumento no número de grupos de ódio operando nos EUA. Em 2016, o número cresceu para de 892 para 917. Os crimes de ódio aumentaram logo após a eleição de Donald Trump, cuja tolerância chocante aos grupos nacionalistas brancos após Charlottesville já estava presente como tema em sua campanha.
No Brasil, a retórica de líderes de algumas denominações cristãs neopentecostais, que experimentam uma rápida expansão, tem resultado na legitimação similar de crimes baseados em ódio. Os alvos desta perseguição são seguidores do Candomblé e Umbanda, entre outras religiões sincréticas. As estatísticas colocam os membros dessas religiões como menos de 5% da população, mas o censo de 2010 mostrou que 13% da população brasileira afirma ter mais de uma religião, muitas vezes incluindo algum envolvimento com a espiritualidade afro-brasileira.
Os praticantes dessas religiões enfrentaram perseguição ao longo da história brasileira, historicamente rotulados como seitas pela maioria católica. Entre 2012 e 2015, as estatísticas da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) mostraram que 70% das 1.104 infrações registradas foram dirigidas a praticantes de religiões afro-brasileiras. Seguindo as tendências de crime de ódio nos EUA, o número desses incidentes no Brasil aumentou 119% entre 2015 e 2016. Isso inclui ameaças de morte, incêndio criminoso, vandalismo de propriedade e ataques físicos. Mais recentemente, em Nova Iguaçu, Maria da Conceição da Silva, de 65 anos, foi apedrejada pelo vizinho por ser praticante de Candomblé.
O neopentecostalismo no Brasil, no modelo das megaigrejas evangélicas nos EUA, associado à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), defende a guerra espiritual contra as chamadas forças do mal e satânicas das religiões afro-brasileiras. A IURD chegou mesmo a formar a milícia “Gladiadores do Altar“, que provocou um pedido de inquérito por líderes religiosos afro-brasileiros. Prometendo e promovendo a prosperidade material, os neopentecostais criaram uma rede de 7000 igrejas com milhões de seguidores e grande influência na política brasileira. João Luiz Carneiro, professor de estudos religiosos da PUC-SP, diz que o racismo e o discurso neopentecostal “reforçam no público a imagem [da religião afro-brasileira] como vodum, sujo e que faz o mal”.
Embora esta combinação de intolerância religiosa e racismo possa não funcionar exatamente como a supremacia branca opera nos EUA, ela fala sobre a presença comum de retórica explícita baseada no ódio em ambos os países.
3. Extremismo e Normalidade: Violência Policial
Na esteira de Charlottesville, alguns criticaram a lenta intervenção da polícia de Charlottesville para impedir a violência dos protestos, que deixou um morto e 35 feridos. Em comparação, os protestos de 2014 pelos moradores negros de Ferguson, Missouri–após um policial atirar em Michael Brown–geraram imediatamente forças policiais militarizadas, e os protestos foram rotulados como “revolta” pela grande mídia. Desta forma, Charlottesville se insere à rede normalizada de racismo estrutural ou institucional nos EUA, no policiamento e justiça criminal, onde pessoas negras e latinas compõem 69% da população encarcerada apesar de serem minorias. Este sistema criminaliza desproporcionalmente, mata e trava pessoas negras e pardas, e sufoca sua expressão: um resultado extremo de um sistema “normal”.
No Brasil, a violência policial nas favelas de maioria afro-brasileira também é “cotidiana”. Com um índice acelerando graças aos megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a polícia tem sido registrada em certos anos matando na média uma pessoa em relação a cada 23 presas, em comparação com 1 a cada 37.000 nos EUA. A polícia do Rio, chamada de a mais violenta do mundo, matou mais de 8.000 pessoas na última década, das quais três quartos eram homens negros. A crise econômica pós-Olímpica no Rio, juntamente com falhas políticas a longo prazo, aumentou a violência no Rio em 2017. Em agosto, o estado do Rio ordenou que forças armadas federais atuassem em cerca de oito favelas na Zona Norte, incluindo Jacarezinho, Alemão e Manguinhos. Esta megaoperação deixou muitos mortos e 22.000 alunos incapazes de irem à escola. O jornal Extra começou a cobrir a violência em uma seção que denominou “Guerra no Rio”, provocando críticas de outras fontes. Esta linguagem glorifica os assassinatos “normais” nas políticas de policiamento falidas do Rio, e minimiza a experiência dos moradores de violência extrema, que eles chamam de massacre.
A violência policial no Brasil levou a fundadora do coletivo feminista Não Me Kahlo, Gabriela Moura, a escrever que “tem um Charlottesville no Brasil todos os dias“. A intolerância, o ódio e o racismo institucional estão profundamente arraigados em ambos os países, como resultado de suas histórias e realidades presentes. A visita do ano passado ao Rio de uma delegação de ativistas do #BlackLivesMatter (Vidas Negras Importam) mostrou o potencial de se engajar contra o racismo através das fronteiras, e ajudou a despertar a organização dos eventos anuais Julho Negro por todo o Rio. Grupos em cada país estão cada vez mais olhando para o outro para ajudar a contextualizar seus próprios desafios e fortalecer suas lutas paralelas e entrelaçadas para a libertação.