No último domingo, dia 20 de agosto, o ato-manifesto 5a Caminhada da Paz com Garantia de Direitos reuniu movimentos sociais, organizações e coletivos de Manguinhos e outras favelas da cidade para denunciar a violência armada e os cada vez mais recorrentes episódios de violações de direitos que moradores, trabalhadores e estudantes enfrentam todos os dias no território.
Quando refletimos sobre a necessidade de reivindicar paz com garantia de direitos, fica evidente que não é de qualquer paz que estamos falando. Não falamos de uma paz abstrata, mas aquela proporcionada pela garantia dos direitos fundamentais civis e constitucionais. Mas ainda estamos lutando para garantir direitos básicos? Parece um tanto anacrônico que a preservação da vida ainda seja uma bandeira permanente de enfrentamento. Nas mesmas comunidades que produzem o mundialmente conhecido carnaval, que ainda sofrem com as desigualdades sociais e econômicas que se acentuam violentamente, lutar por direitos ainda é necessário e urgente.
É preciso localizar os recentes acontecimentos na região de Manguinhos e Jacarezinho no espectro de políticas públicas–com foco na segurança pública–que o Estado empreende há décadas nos territórios favelizados da cidade. Uma política que se caracteriza, essencialmente, pela vulnerabilização da população pobre e preta do Rio de Janeiro. Nos Complexos de Manguinhos, Jacarezinho e Alemão–conjuntos de favelas vizinhos na Zona Norte do Rio–ano após ano os moradores e moradoras presenciam o fechamento de escolas e creches, equipamentos públicos (unidades de saúde, Casa da Mulher, Biblioteca Parque, Casa do Trabalhador), impedimento do direito de ir e vir, a morte de seus familiares, amigos e amigas.
Vidas são ceifadas em sua maioria pela atuação armada do Estado, em um modelo de segurança pública extremamente militarizado. O combate às drogas é usado como argumento para operações e incursões policiais que deixam como saldo negativo vidas inocentes perdidas. O direito à vida tem sido, com frequência, o direito mais violado nesses territórios. Quando o mais básico dos direitos é desrespeitado, todos os outros, que seriam capazes de garantir cidadania e dignidade, se mostram cada vez mais distantes.
A primeira edição da Caminhada da Paz, ocorrida há 12 anos, em 2005, foi às ruas para levantar a discussão sobre as mais diversas violações ocorridas no território, a partir da Agenda Redutora da Violência–conjunto de atores sociais de Manguinhos reunidos em torno do tema. A constituição da Comissão Contra a Violência, em 2016, com reuniões regulares de moradores, coletivos, organizações comunitárias e com apoio da ASFOC SN e da Fundação Oswaldo Cruz (que integra o território de Manguinhos) para discutir estratégias de enfrentamento à violência e violações de direitos, possibilitou a articulação de uma agenda ativa de atividades em Manguinhos, como o I e II Sábado Cultural Eu Só Quero É Ser Feliz, com carta de repúdio à violência armada e em defesa da Biblioteca Parque de Manguinhos, respectivamente.
Além disso, a Comissão também vem pressionando uma agenda com as instâncias de governo responsáveis para garantir os direitos dos moradores e moradoras de favela. A edição deste ano busca dialogar com outras favelas da cidade e fortalecer uma rede popular que pressiona e apresenta à sociedade e ao poder público o horizonte de paz que queremos, com os direitos humanos e constitucionais garantidos.
Os recentes episódios de ataques violentos nas comunidades de Manguinhos e Jacarezinho, com a presença massiva de agentes policiais dentro das favelas e moradores vitimados, fez com que a 5a Caminhada da Paz com Garantia de Direitos reformulasse a ação no último domingo. A articulação que vinha sendo construída há meses pela comissão de organização da Caminhada decidiu por manter a data, mas sem a programação de ações sociais, prestação de serviços e algumas atrações culturais. A redução do horário também foi acordada, por conta da insegurança instaurada na região. A Caminhada percorreu em cortejo as ruas entre as comunidades do Nelson Mandela e Samora Machel convocando as pessoas para o ato.
No retorno para a Rua Leopoldo Bulhões, a concentração seguiu para a frente do carro de som, onde representantes de coletivos e organizações de Manguinhos fizeram falas de enfrentamento à violência, relembrando casos recentes que vitimaram moradores e moradoras das comunidades–o número divulgado até o momento é de sete pessoas mortas, em dez dias de ataques. Essas incluíram Georgina Maria Ferreira, 60 anos de idade, moradora do Jacarezinho, baleada na cabeça na noite de sábado, dia 19, surpreendida por um carro blindado da Polícia Civil enquanto voltava da casa de uma amiga. A amiga que a acompanhava foi atingida na perna. Georgina morava há cerca de 40 anos na comunidade.
As falas dos coletivos, organizações comunitárias e representantes institucionais que estavam presentes neste domingo no ato reafirmaram o enfrentamento às violações de direitos que moradores, trabalhadores e estudantes sofrem cotidianamente na região. Os nomes das vítimas foram lembrados e ativistas foram homenageados na ocasião, assim como os projetos que contribuem para o fortalecimento de espaços de promoção de cidadania e direitos nas comunidades.
O Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (ASFOC SN) concedeu à Jane Maria Camilo, ativista de Manguinhos e integrante da Organização Mulheres de Atitude, a medalha Jorge Carelli de Direitos Humanos; assim como o projeto de futebol feminino Estrelas do Mandela e a Comissão dos Agentes Comunitários de Saúde de Manguinhos (Comacs). O Prêmio Sérgio Arouca de Saúde e Cidadania foi entregue ao Fórum Basta de Violência, do Complexo da Maré, que reúne moradores e moradoras, organizações da sociedade civil e comunitária junto a instituições de saúde e educação para discutir e pensar soluções para os problemas da violência no território.
A carta da presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nísia Trindade Lima, foi lida durante o ato, reafirmando o compromisso da instituição com a luta contra as violações e pela garantia de direitos. Em julho, a presidente esteve em audiência com o Governador Luiz Fernando Pezão, reivindicando uma política de segurança não baseada em um modelo de guerra, que vulnerabiliza e coloca em risco a vida da população.
Como veículo de comunicação comunitária sediada no Complexo de Manguinhos, preocupado com o trato crítico da informação que diz respeito ao local, o Fala Manguinhos! não poderia calar-se diante dos recentes movimentos de caracterização dos episódios de violência nas favelas cariocas em um contexto de guerra por parte da mídia hegemônica. É preciso que essa reflexão seja feita com responsabilidade, incluindo o olhar e a voz de quem vive nesses locais.
Matéria escrita por Edilano Cavalcante e Brunna Arakaki e produzida por parceria entre RioOnWatch e Fala Manguinhos!. Edilano é coordenador da agência de comunicação comunitária Fala Manguinhos! e Brunna é jornalista e colaboradora da mesma. Como prática de comunicação comunitária produzida por e para Manguinhos, o Fala Manguinhos! tem em sua origem a defesa dos direitos humanos e ambientais, promoção de cidadania e saúde com a participação direta dos moradores e moradoras nas decisões que envolvem a Agência de Comunicação Comunitária de Manguinhos, a partir dos encontros do grupo de comunicação do Conselho Comunitário. Siga o Fala Manguinhos pelo Facebook aqui.