Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro deu prova cabal de que nunca abandonou seu projeto de cidade repartida. E os noticiários dão corpo a isso. Uma cidade que remove, divide, vulnerabiliza as populações mais empobrecidas e negras, do alto dos morros e dos subúrbios recortados pela malha ferroviária. Os recentes episódios de violência armada nas comunidades da Rocinha, que geraram imensa repercussão, combinados ao gigantesco evento de música que a cidade recepcionou, o Rock in Rio, amplificaram as tensões vividas todos os dias pela população. Ambos foram palcos que reuniram diferentes experiências de fazer parte de uma cidade como o Rio de Janeiro.
Não é preciso empreender uma busca profunda na memória dos editoriais e noticiários para constatar o que já é óbvio para quem vive e trabalha nas favelas e periferias da cidade: apenas no primeiro semestre de 2017, o Complexo de Manguinhos e Jacarezinho, por exemplo, seguiram com as violações de direitos humanos e a violência armada e simbólica como temas imperativos. Em uma simples análise de postagens da página Fala Manguinhos no Facebook foi possível identificar que, pelo menos, um terço dos informes davam conta das operações em curso nas comunidades e áreas próximas. Outros dados também foram registrados no período, como o número de dias em que os alunos ficaram sem aulas. Ainda que dados quantitativos não demonstrem todas as interfaces de impactos na rotina, na saúde e na sociabilidade dos territórios, eles são importantes indicadores para pensarmos a diversidade de experiências urbanas presentes na cidade.
Algumas disputas estão em curso na cidade repartida. Especialmente no que diz respeito à memória dos acontecimentos em territórios de favela. Quando um dos jornais de maior circulação no Rio de Janeiro estabelece um Editorial de Guerra para tratar dos assuntos referentes à segurança pública nessas áreas, é preciso que essa reflexão seja feita com responsabilidade, incluindo o olhar e a voz de quem vive nesses locais. Em um contexto de guerra, sabemos que as estatísticas se acentuam e os indicadores de direitos decrescem a cada registro de incursão armada. A guerra produz sentidos para além dos números divulgados. Existe um saldo permanente de impactos que marca os territórios e, claro, a vidas das pessoas.
A guerra sentida pela população de Manguinhos e outras favelas do Rio de Janeiro não é de agora. E tampouco se apresenta apenas como um sentimento, uma sensação. As escolas fechadas, a impossibilidade de circular com segurança pelas vielas e ruas, o número de casas marcadas por tiros e as pessoas vitimadas nas operações não nos deixa outra constatação. De todo modo, não é possível retirar dessa discussão o modelo de política de segurança pública que vem sendo empreendido na cidade, aplicado violentamente nas favelas cariocas.
A recente ocupação com tanques e centenas de agentes do exército, da polícia civil, militar e rodoviária nas comunidades de Manguinhos e Jacarezinho no dia 21 de agosto de 2017, para apreender drogas, armas e trazer ordenamento aos territórios, materializou aquilo que se assumiu como narrativa oficial da cidade. Nesse fatídico dia, moradores e moradoras tiveram suas casas e corpos revistados. Não são poucos os relatos de quem saía para trabalhar e foi abordado de maneira desproporcional pelos agentes, mulheres revistadas na frente de seus filhos. Uma imagem violenta por si só. O impacto é maior ainda quando se tem registros do dia anterior, quando moradores, moradoras, trabalhadores e outros atores sociais de Manguinhos e Jacaré se mobilizaram ocupando a Rua Leopoldo Bulhões para reivindicar paz com garantia de direitos e o fim das violações de todas as naturezas.
No dia em que os tanques tomaram as principais vias em Manguinhos e no Jacaré, um caso chamou nossa atenção, principalmente por envolver um dos comunicadores do Fala Manguinhos!. Nosso jornalista fazia uma cobertura sobre os acontecimentos quando foi preso pelos agentes de maneira abusiva, como suspeito de participação em um homicídio. Felizmente, a presença do advogado Djefferson Amadeus, uma das poucas figuras do Direito empenhadas em acompanhar e dar apoio jurídico in loco aos moradores e moradoras da área, conseguiu esclarecer a situação.
“Indagado a cerca de onde estariam as autorizações para adentrar as residências, bem como proceder a prisão de pessoas que, eventualmente, estivessem exercendo seu trabalho jornalístico, obtive como resposta, do próprio agente do Exército, que a Constituição estava suspensa por conta de uma ordem judicial, que autorizava o mandado de busca e apreensão coletiva. O que significa dizer isso? Se a Lei exige que o mandado de busca e apreensão–ou seja, aquilo que permite o ingresso dentro da residência–seja específico e determinado, a juíza permitiu o chamado mandado genérico, que permite a entrada na residência de qualquer pessoa dentro de um determinado local. O que é totalmente contrária à Constituição. Motivo pelo qual aqueles agentes que ali estavam, se sentiram autorizados a cometer as maiores barbáries que pude constatar”, conta o advogado.
Ainda que narrativas como essa, em geral, não extrapolem os registros oficiais das corporações ou dos próprios trabalhadores do Direito, é muito importante que sejam comunicadas à população. Fazem parte da disputa de imaginário sobre a favela, de quem vive e trabalha nessas áreas e também para desnaturalizar situações como essa, tão cotidianas mas que não podem ser esquecidas ou amenizadas. O Fala Manguinhos!, como veículo de comunicação comunitária preocupado com as demandas do território, na lida diária com as informações que circulam dentro e sobre as comunidades, não poderia se calar diante de fatos como esse. A cidade repartida determina também qual a memória que será predominante em sua população. Um olhar de fora, quase sempre limitado, não dá conta das variáveis presentes nas favelas e periferias da cidade. É preciso que voltemos o olhar para dentro, para as pessoas que vivem, trabalham e constroem suas histórias do lado de cá.
Matéria escrita por Brunna Arakaki e produzida por parceria entre RioOnWatch e Fala Manguinhos!. Brunna é jornalista e colaboradora da agência de comunicação comunitária Fala Manguinhos!. Como prática de comunicação comunitária produzida por e para Manguinhos, o Fala Manguinhos! tem em sua origem a defesa dos direitos humanos e ambientais, promoção de cidadania e saúde com a participação direta dos moradores e moradoras nas decisões que envolvem a Agência de Comunicação Comunitária de Manguinhos, a partir dos encontros do grupo de comunicação do Conselho Comunitário. Siga o Fala Manguinhos pelo Facebook aqui.