Centenas de pessoas se reuniram no Campo da Via Light, em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, na quinta-feira, 26 de outubro, para ouvir um importante anúncio da prefeitura sobre o projeto de verticalização proposto no Plano Estratégico do Prefeito Marcelo Crivella. Depois de vários palestrantes, foi a vez do vereador e representante de Crivella, Paulo Santos Messina, dirigir-se à multidão, que esperou a noite toda para ouvir o que ele tinha a dizer: “Ontem se chegou à decisão do projeto… Todo recurso que seria arrecadado para fazer esses prédios, essas praças, será utilizado para fazer saneamento básico, para fazer o asfaltamento, para fazer coleta de água fluvial, para fazer canalização de rio. Infraestrutura para a comunidade como ela está. Não haverá nenhuma remoção”. A multidão aplaudiu e comemorou. Mais tarde, Messina foi mais longe, afirmando que não haveria remoções em qualquer lugar do Rio sob a administração Crivella.
Depois de organizar e mobilizar milhares de seus vizinhos, a comissão de moradores de Rio das Pedras teve uma grande vitória na luta contra a remoção com esse anúncio. No entanto, essa luta está longe de terminar. Com o novo plano surgem novos e imprevistos problemas, e a comissão está ativa, mantendo-se atenta às mudanças, mobilizando a comunidade e lutando por planos de urbanização justos e humanos, não apenas para Rio das Pedras, mas para comunidades em toda a cidade.
Rio das Pedras e o Plano Estratégico
Rio das Pedras é uma das poucas três favelas explicitamente mencionadas no Plano Estratégico de Crivella. Da comunidade, os moradores podem ver o condomínio de prédios altos onde ele mora, e vice-versa; como resultado, muitos moradores começaram a chamar sua proposta de “limpeza social“. O plano original exigiu a conclusão de um estudo sobre requalificação urbana em Rio das Pedras até 2018, e Crivella elaborou uma proposta para um processo de verticalização. Isso incluiria a destruição de grandes extensões da comunidade, a construção de grandes complexos de condomínios e, posteriormente, o financiamento desses apartamentos para os atuais moradores. A proposta não abordou deficiências no estilo proposto de habitação pública e nunca esboçou como subsidiar habitação para os moradores mais pobres ou para onde os membros da comunidade iriam durante o projeto de construção, que provavelmente levaria meses, senão anos, para se completar. O anúncio da prefeitura na última quinta-feira foi, portanto, um suspiro de alívio para muitas pessoas. Contudo, a nova proposta da prefeitura é tão nebulosa quanto a primeira. Enquanto um documento oficial ainda não foi divulgado, a comissão recebeu informações de autoridades do governo detalhando algumas partes do projeto.
Os moradores estão céticos, e com razão. Foi dito a eles que parte da nova proposta inclui a perfuração até atingir a rocha e, em seguida, reforçar as fundações das construções em um nível mais profundo. Embora teoricamente isso proporcionasse mais estabilidade, esse processo poderia ter efeitos desastrosos para uma comunidade à beira de um rio, como Rio das Pedras, construída na antiga região de pântano que agora é a Barra da Tijuca. O membro da comissão da comunidade, Evandro Teixeira Tavares, elaborou:
“O prefeito diz que vai entrar com um novo projeto que não seria verticalização, mas urbanização. Só que a questão é que ele diz que vai entrar em becos e vielas com trabalho de estaqueamento. Como ele vai fazer estaqueamento em becos e vielas se não tem condição para entrar com a máquina de estaquear? E mesmo se pudesse entrar, no momento que as máquinas estiverem perfurando o solo para fazer esse trabalho, as casas não vão suportar e vão vir abaixo. As casas vão começar a tombar, e, obviamente, a Defesa Civil vai interditar essas casas. E, no nosso entendimento, isso seria um prato feito para o prefeito justificar, legitimar o que ele quer fazer, que não é… a verticalização.”
O vereador Messina também anunciou à multidão, na quinta-feira, que uma linha do BRT seria construída ao longo da comunidade, com uma estação e três pontos de ônibus. A multidão ficou visivelmente irritada com o anúncio. A integrante da comissão, Andréia Ferreira, declarou: “Nós temos a questão do BRT. Nós temos um grande exemplo aqui, da Vila Recreio, que foi uma comunidade que falaram que o BRT ia passar, e por isso precisaria retirar a comunidade. Porém o BRT passou metros à frente e a comunidade foi toda removida com esse discurso de BRT”. Evandro também observou que o plano do BRT envolveria ampliar a estrada principal através da favela Rio das Pedras em 50 metros, algo que certamente levaria a remoções.
Em uma declaração ao O Globo sobre a nova proposta, Crivella afirmou: “Conversamos com os moradores e discutimos alternativas. Por falta de tratamento de esgoto, aquela região se transformou em uma espécie de latrina da Barra. A proposta é mudar isso. É possível que a execução do novo projeto ainda exija o reassentamento de algumas famílias. Mas será de forma negociada”. No entanto, moradores dizem que a comunicação foi quase inexistente e salientam que a comunidade já possui várias bombas de água instaladas pelo governo para bombear resíduos para uma instalação de tratamento. Contudo, essas bombas nunca foram ativadas, de modo que os resíduos fluem diretamente para a lagoa vizinha ao condomínio do prefeito. Além disso, deve notar-se que a falta de tratamento de esgoto é um problema na Barra da Tijuca e no Rio como um todo, com condomínios fechados que também contribuem para as águas poluídas. O fato de Crivella já estar contradizendo a afirmação de seu representante de que não haverá remoções também é preocupante.
Situação Legal
Adriana Britto, da equipe de cinco advogados da Defensoria Pública representando Rio das Pedras, falou sobre muitas das preocupações da comunidade na reunião de quinta-feira passada. Ela lembrou aos moradores que a maioria das favelas era designada Área de Especial Interesse Social (AEIS) através da Lei Municipal 2616/1998 e da Lei Municipal 2818/1999. Muitas vezes aplicada às favelas, a designação AEIS marca e teoricamente garante o valor social particular da terra como assentamento habitacional predominantemente para famílias de baixa renda. A advogada explicou que a designação reconhece Rio das Pedras como uma comunidade da classe trabalhadora e afirma os direitos de habitação dos moradores em face da potencial especulação imobiliária. Essa designação tem sido uma ferramenta legal eficiente na luta contra remoções forçadas, embora casos como Vila Autódromo mostrem que o governo pode às vezes romper com a própria intenção da lei, removendo o status de AEIS de uma comunidade para facilitar a remoção.
No nível federal, o presidente do Brasil, Michel Temer, assinou recentemente a Lei 13.465/2017, que visa simplificar a regularização fundiária, mas foi criticado por potencialmente enfraquecer a designação de AEIS, expondo as favelas às forças especulativas do mercado. A Defensoria Pública cita a legislação municipal em defesa de Rio das Pedras. O artigo 429 da Lei Orgânica de 1990 previne a remoção de favelas, a menos que haja risco físico direto para os moradores.
Com isso em mente, Adriana afirmou que, do ponto de vista legal, em Rio das Pedras “não há área de risco, então não pode haver remoção”. Todavia, advertiu que, dado que a comunidade se expandiu para uma população de 140.000 pessoas, de acordo com uma estimativa fornecida pela associação de moradores, uma vez que a AEIS foi criada no final dos anos 1990, partes dela estão agora fora da área protegida. A defensora pública disse que os moradores devem promover a inclusão de toda a comunidade sob a designação de AEIS. Ela explicou que AEIS significa que a prefeitura é responsável por implementar melhorias de infraestrutura e regularização fundiária na favela.
Ela disse que nesses projetos “têm que observar a lei. E nesse sentido, a lei exige duas coisas: ela exige que o poder público não imponha [seus termos], e também exige do poder público que ele não tente convencer. Não se trata nem de um processo de convencimento, nem de imposição. É um processo diferente, é um processo de diálogo“. Com essas palavras , ela retratou a falta de participação popular nas decisões sobre políticas públicas como uma falha fundamental da administração Crivella até agora. Os protagonistas de Rio das Pedras alcançaram sua recente vitória mobilizando os moradores para exigir tal diálogo. As coalizões de favelas do outro lado do Rio fizeram o mesmo em torno do Plano Estratégico do Prefeito Crivella de forma mais ampla. As melhorias prometidas em Rio das Pedras irão demonstrar o quão comprometida a prefeitura está com a consulta popular à medida que avançar e revelar seus planos específicos.
Organizando Esforços
A comissão de Rio das Pedras não apenas conseguiu frustrar uma tentativa de remoções ilegais pela prefeitura, como também mobilizou um grande número de moradores da comunidade de 140 mil habitantes para fazê-lo. Onde há força em números, no entanto, também há dificuldade. A comissão foi encarregada de organizar grandes eventos e da logística de conseguir multidões para eles, informando moradores de diversas origens em toda a comunidade sobre o plano do governo e seus esforços de resistência, e incentivando o envolvimento no processo político. Muitos membros da comissão paralisaram completamente outros aspectos de suas vidas para dedicar seu tempo e esforço ao movimento. Quando perguntada sobre como eles conseguiram fazer tudo isso, Andréia Ferreira riu e lembrou que isso é perguntado a ela muitas vezes, mas refletiu:
“A gente consegue mobilizar porque nossos argumentos são muito fortes. A gente tem a verdade a nosso favor. A população de Rio das Pedras já entendeu isso. A gente somente conscientiza. Nós somos o povo. É um movimento totalmente mobilizado, iniciado pelo povo. E o povo abraçou a gente. Eles viram em nós a esperança de serem ouvidos. Quando a gente trabalha com a verdade, fica tudo mais fácil. Não precisa mentir, não precisa enganar.”
Suas palavras fornecem um forte contraste com as da prefeitura. Enquanto Crivella cita sua fé cristã e afirma estar “cuidando” do povo do Rio, suas propostas ameaçam prejudicar os moradores mais vulneráveis da cidade. Com declarações contraditórias sobre se ainda há algum risco de remoções, o prefeito parece não ter a verdade do lado dele.
Uma coisa é certa: a comissão e os moradores de Rio das Pedras continuarão sua luta contra a remoção e pelo melhoramento de sua comunidade. Eles recebem com prazer urbanizações, mas também querem deixar claro que não são a prioridade. Andréia afirmou:
“Não vamos aceitar a covardia. Desde o início da gestão do Crivella, nós temos uma escola aqui que parou as obras. Nós temos uma Clínica da Família que não tem antibiótico, não tem recurso nenhum. Demora sete, oito horas para uma ambulância chegar. Pessoas estão morrendo. Se ele tem R$500 milhões para investir, que seja prioritariamente na saúde, e na educação. E depois sim, saneamento, mas saneamento sem remoção. A gente sabe que já existe modernidade, novas tecnologias, então não precisa remover ninguém. Esse é um projeto do interesse de empresários, não é do interesse da comunidade. A gente está de olho, a gente vai continuar fiscalizando.”
Seguindo em Frente
No último sábado, 28 de outubro, a comissão de Rio das Pedras organizou um mutirão, um dia de limpeza da comunidade, em que os moradores se uniram para limpar as ruas e voluntários passaram horas limpando o canal que leva ao lago. A coleta de lixo municipal é irregular, na melhor das hipóteses, e isso tem um impacto negativo no saneamento da comunidade. A comissão está tomando medidas diretas para melhorar a comunidade e lutar contra a retórica estigmatizante da prefeitura. “A gente está fazendo trabalho voluntário, os moradores se mobilizaram para fazer a limpeza. Isso deveria ser feito pelo poder público. É uma comunidade totalmente abandonada, então se os moradores não fizerem, ninguém faz. Nós amamos nossa comunidade”, afirmou Andréia.
Há algo especial sobre Rio das Pedras. Ao entrar na comunidade, há uma sensação tangível de camaradagem e confiança. Faz sentido. A maioria das famílias de Rio das Pedras tem suas raízes no nordeste, e migraram para o Rio em busca de oportunidade. Suas histórias compartilham tópicos semelhantes, e eles são orgulhosos do progresso que conquistaram juntos ao longo de décadas. Muitos moradores de Rio das Pedras são os trabalhadores da construção civil ou parentes dos trabalhadores que construíram a imensa Barra da Tijuca, o que faz com que as tentativas de removê-los da área sejam ainda mais sinistras.
A narrativa de Andréia sobre a história de sua comunidade é um poderoso argumento em defesa da sua permanência:
“Quando falamos de Rio das Pedras, estamos falando de um exemplo, porque são pessoas que não têm escolaridade, não têm acesso a oportunidade de vida nenhuma, são pessoas que viveram no Nordeste passando fome, e vieram para o Rio de Janeiro em busca de uma oportunidade. Foi uma história muito bonita porque aqui era tudo um areal, não era nada. A gente chegou aqui, a gente lutou muito para poder ocupar esse espaço… A gente, inicialmente, tinha um barracão gigante onde todo mundo morava junto. Imagina essa convivência, vários famílias em um local só. E depois fomos loteando. As pessoas trabalhavam, as mulheres tinham que carregar seus aterros, porque os homens estavam trabalhando. Aquelas famílias que só tinham mulheres, a gente pegava o vizinho e ajudava. Uma [grande] família construiu Rio das Pedras, inicialmente com barracos de madeira, e muita dificuldade. Depois de anos, você vê prédios, casas maravilhosas. No início era muito pior. Hoje a gente se sente vitorioso. Cada tijolo tem uma história de vida.
Minha avó chegou aqui analfabeta, trabalhou a vida inteira em casa de família e conseguiu construir a casa dela. Foi com muito trabalho. Agora você imagina minha avó, uma senhora de idade que trabalhou a vida inteira, hoje ela não tem mais condição de trabalhar na forma que trabalhou, e o prefeito destrói a casa dela e dá para ela um financiamento. Como que ela vai pagar um financiamento de um condomínio com salário mínimo? É um absurdo. Eu estou falando dessa história da minha avo porque é a história de todos aqui. Ninguém aqui roubou. Foi tudo muito suado, mas muito mesmo. Anos e anos de vidas trabalhados, muito honestidade, muito suo, muita dor.
E agora o prefeito vem–uma covardia, uma falta de respeito com a nossa cultura, com a nossa história. Hoje nós temos orgulho de falar que nós temos uma casa. A gente não está acostumado com condomínio, luxo, essas coisas. As pessoas aqui gostam de forró, de churrasco, gostam desse acolhimento de vizinhos, todo mundo junto. Nós somos ausentes da vida inteira deles [das autoridades do governo] há tantos anos e quando eles aparecem é para destruir. É inadmissível e inaceitável.”