Esta é a primeira matéria de uma série de sete, que compõe o capítulo intitulado ‘Nem Todos Têm Um Preço’ que conta a história de luta da Vila Autódromo. Escrito por Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras,* o capítulo faz parte do livro Rio 2016: Olympic Myths, Hard Realities (Rio 2016: Mitos Olímpicos, Duras Realidades) organizado pelo economista Andrew Zimbalist. Como o livro foi publicado somente em inglês, pedimos permissão e agradecemos à editora Brookings por nos permitir publicar o capítulo na íntegra em português. Leia nossa resenha do livro Rio 2016 aqui.
Foi exatamente há cento e vinte anos, como conta a história já completamente entrelaçada com lendas, que soldados oprimidos–assolados pela pobreza e feridos, após a longa e sangrenta batalha de Canudos, a guerra civil mais fatal do Brasil–se dirigiram da Bahia ao Rio de Janeiro que era a capital da nação na época. Os soldados, outrora escravos que haviam sido recém libertados e imediatamente recrutados para a luta, receberam promessas de terras na capital, por servirem em combate.1
O Rio de Janeiro era uma das maiores cidades do mundo em 1897, e certamente a maior no Brasil, com mais de meio milhão de habitantes. O Brasil urbanizou-se relativamente cedo para uma nação em desenvolvimento, e o Rio foi a primeira grande cidade a fazê-lo. Devido à sua importância, tanto como a cidade que mais crescia no país quanto como capital federal, terras no Rio representavam uma grande oportunidade.
Mas ao chegarem, os soldados não receberam a terra prometida para eles, então acamparam em frente ao Ministério da Guerra no Centro do Rio, à espera do que viria a ser uma promessa vazia. Semanas depois, um coronel que tinha terras em um morro próximo à área do porto central do Rio lhes deu permissão para assentarem-se em sua encosta. Então eles subiram o morro e se assentaram, chamando o assentamento de Morro da Favela, devido ao robusto, espinhoso, oleoso e florido arbusto favela, característico dos morros de Canudos onde haviam servido, morros também assim nomeados devido à planta, e onde alguns haviam conhecido suas esposas. Eles, portanto, cunharam favela como o termo a ser usado para descrever os assentamentos informais do Brasil, que se tornaram o principal meio de moradia popular nas cidades brasileiras no século por vir.
Ao longo das décadas seguintes, mais e mais migrantes rurais e ex-escravos urbanos e rurais e seus descendentes se juntaram aos soldados de Canudos na ocupação dos morros do Rio,[a] e todos os assentamentos informais do Rio ficaram conhecidos como favelas, então o Morro da Favela mudou seu nome para Morro da Providência. Apesar de tentativas de remoções por toda sua história, os moradores da Providência resistiram, e a comunidade celebrou seu aniversário de 120 anos em 2017.
Surgindo inicialmente nos morros do Centro e depois, com a expansão da cidade, em áreas baixas periféricas–quase sempre em terras públicas–favelas vieram a ser uma parte tão integral da cidade que, em 2012, quando a paisagem do Rio foi declarada Patrimônio Mundial da UNESCO, a relatora especial da ONU para o direito à moradia adequada Raquel Rolnik declarou serem as “favelas cariocas entre a montanha e o mar” uma parte integral desse status de patrimônio. O historiador de história brasileira da Universidade de Georgetown Bryan McCann explica: “quase que as únicas coisas que a atual comunidade do Vidigal tem em comum com o mesmo bairro em 1978 são a falta de título de propriedade e a contínua discriminação a seus moradores, mas todos ainda a reconhecem como favela.”2
O século entre as duas datas foi marcado por diversas políticas voltadas às favelas do Rio, sendo a negligência a principal política que causou à marginalização dessas comunidades.3 Descendentes de escravos, que compunham o grosso das populações em favelas, não eram considerados cidadãos completos e as favelas foram, por consequência, descritas como “atrasadas, insalubres e demasiadamente sexualizadas“. Foram consideradas ocupações “ilegais” e portanto argumentou-se que não teriam direito a melhorias urbanas. Porém, em sua grande maioria não foram eliminadas e foram inclusive incentivadas em certos momentos pois “ofereciam mão de obra barata por perto”, como informou uma autoridade municipal num painel do qual eu fiz parte, a uma plateia internacional no Rio, em 2014; a autoridade também explicou que isso era “conveniente, até o momento“. Deste modo, pode-se resumir a política para favelas historicamente como uma forma de encontrar meios para manter a estrutura de uma sociedade escravocrata mesmo pós abolição.
Três outras políticas amplas e interligadas foram aplicadas às favelas do Rio no século XX. A primeira é a política de remoções, que foi aplicada principalmente no governo de Carlos Lacerda durante o regime militar, entre 1962 e 1974, quando 140.000 pessoas foram removidas de suas casas–apesar do medo de remoções ter caracterizado as experiências de moradores de favela desde o início até os dias de hoje.4[b] A segunda foram políticas de urbanizações esporádicas, restritas e insuficientes, criadas para providenciar infraestrutura mínima em algumas favelas. O programa mais robusto desse tipo foi o Favela-Bairro, implementado nos anos 90. A terceira política–cuja principal aplicadora é a Polícia Militar–é de criminalização e repressão da população urbana pobre, o que remonta à fundação da instituição na primeira década do século XIX , e que foi reforçada ao longo da história da instituição. Nos últimos anos, moradores de favela regularmente criticaram a ocupação das favelas pelo programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar por ser o único braço do estado com que os moradores têm contato, quando sempre cobraram “políticas públicas de longo prazo” e o que querem é o “fim das valas negras e das faltas de água e luz”.
Ao longo de mais de um século muitos moradores de favela não permaneceram como receptores passivos dessas políticas. Ao invés disso, eles organizaram e reagiram sempre e cada vez mais. O Vidigal, na Zona Sul do Rio, é notável por sua resistência precoce às remoções durante o regime militar, basicamente interrompendo a campanha de remoções em 1978.5 E grupos de moradia que surgiram devido a décadas de falta de habitação a preços acessíveis e de políticas falhas lideraram um movimento que assegurou o usucapião como uma cláusula na “Constituição Cidadã” de 1988, e outras formas de direito à moradia em legislações municipais e estaduais subsequentes. Além disso, na década de 1990, surgiu uma tendência, agora amplamente difundida entre arquitetos, engenheiros e urbanistas, que vê a urbanização de favelas em um processo abrangente e participativo como a abordagem política correta para melhorar a vida dos moradores.
Como resultado desse histórico, hoje o Rio de Janeiro é a cidade brasileira com o maior número de pessoas morando em favelas. Aproximadamente 1.000 favelas individuais–variando em tamanho desde centenas de moradores em pequenas comunidades como Recreio II, removida por pretexto da TransOeste, na Zona Oeste, até 200.000 moradores na Rocinha, na Zona Sul da cidade–abrigam os 1.5 milhões de favelados, ou 24 por cento da população carioca, vivendo em favelas.
E, de fato, apesar dos desafios significativos para implantar urbanizações abrangentes que garantiriam uma infraestrutura e serviços públicos de qualidade nessas comunidades, há diversas qualidades–urbanísticas, econômicas e socioculturais–que se desenvolveram a partir da informalidade das favelas do Rio.6 Favelas naturalmente tendem a se caracterizar por uma série de qualidades que planejadores urbanos ao redor do mundo atualmente tentam integrar a comunidades sustentáveis, mas frequentemente têm dificuldade em incorporar a centros urbanos já consolidados: moradia popular em áreas centrais, moradia próxima ao trabalho, construções baixas porém de alta densidade, empreendimentos de uso misto, ruas para pedestres, uso elevado de bicicleta e transporte público, arquitetura orgânica (flexível), alto índice de ação coletiva e apoio mútuo, incubadores culturais, e um alto índice de empreendedorismo, entre outros fatores. Na verdade, durante o recente boom de dez anos do Brasil, favelas se desenvolveram, em média, melhor do que a sociedade como um todo.
Diferentemente de outras regiões em desenvolvimento, particularmente a África e a Ásia, que vêm se urbanizando nas décadas mais recentes, a população brasileira é mais de 80 por cento urbana desde a década de 90. Dada a presença precoce das favelas na cidade que se desenvolveu mais cedo e rapidamente no Brasil, as favelas cariocas são um dos mais longínquos assentamentos informais (ainda vistos dessa forma) do mundo atualmente. Suas lutas, sucessos e desafios, portanto, oferecem fontes de sabedoria e conhecimento, inspiração e alertas incrivelmente ricos sobre o que pode acontecer quando comunidades acabam se auto desenvolvendo por um longo período de tempo. Planejadores urbanos e profissionais de desenvolvimento internacional estão começando a prestar atenção no que se pode aprender com essas comunidades, que tipos de novos tratamentos inovadores são necessários para garantir sua integração efetiva sem comprometer atributos comunitários e como suas histórias podem inspirar uma nova abordagem para construções de cidades nas décadas por vir.
Apesar dessa realidade, uma narrativa profundamente tendenciosa e imprecisa domina a visão das favelas do Rio em nível local e global.[c] No começo do século XX, pouco depois de se estabelecerem, favelas foram rotuladas de “atrasadas e insalubres”. Visões como essa rapidamente chegaram à narrativa da monopolista mídia brasileira, onde se consolidaram ao longo de muitas décadas até o presente momento. Manter uma percepção pública de favelas como inerentemente ilegais, criminosas, precárias e não-administráveis, permitiu a perpetuação da imagem dessas comunidades como temporárias e com necessidade de intervenções punitivas dramáticas, seja a partir de remoções ou policiamento, e tem permitido às autoridades a perpetuação de uma política de negligência e urbanizações de má qualidade, mantendo favelas em um espiral sem-fim de negligência legitimada. Entretanto, como uma importante cidade mundial e destino turístico há dois séculos, o Rio sempre foi de interesse dos noticiários internacionais, mas não de importância o suficiente à destinação de recursos significativos para noticiar de perto. Em decorrência disso, a mídia global historicamente utiliza a narrativa dominante da mídia local e a amplifica a partir de jornalismo por telefone ou de paraquedas, citando autoridades ou comunicados de imprensa emitidos por autoridades ou jornais locais, que são profundamente comprometidos com a manutenção do status quo. Histórias de grande impacto e sensacionalistas são as únicas consideradas importantes o suficiente para se cobrir, então a narrativa global sobre essas comunidades tem produzido um preconceito intenso, que justifica ainda mais o estigma social por parte das elites que se importam com a percepção global de sua cidade e dependem dela para investimentos, em outro círculo vicioso.
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Esta é a primeira matéria de uma série de sete, que compõe o capítulo intitulado ‘Nem Todos Têm Um Preço’ que conta a história de luta da Vila Autódromo. Escrito por Theresa Williamson, diretora executiva da Comunidades Catalisadoras,* o capítulo faz parte do livro Rio 2016: Olympic Myths, Hard Realities (Rio 2016: Mitos Olímpicos, Duras Realidades) organizado pelo economista Andrew Zimbalist. Como o livro foi publicado somente em inglês, pedimos permissão e agradecemos à editora Brookings por nos permitir publicar o capítulo na íntegra em português. Leia nossa resenha do livro Rio 2016 aqui.
Notas
[a] O Rio foi o maior porto de escravos na história mundial, e escravos constituíam cerca de 40 por cento da população da cidade no século XIX,7 antes do Brasil abolir a escravidão em 1888. Foi a última nação do ocidente a fazê-lo.
[b] Antes de Lacerda, ocorreram remoções durante a primeira década do século quando Francisco Pereira Passos foi prefeito e encabeçou reformas urbanas significativas, mas estas eliminaram cortiços, o que acelerou o estabelecimento de favelas.
[c] Tal narrativa serve para manter a baixa auto-estima individual e comunitária no psiquismo dos favelados.
Demais Referências Bibliográficas
[1] NEUWIRTH, Robert. Shadow cities: A billion squatters, a new urban world. Nova Iorque: Routledge, 2006. 58 p.
[2] MCCANN, Bryan. Hard times in the marvelous city: from dictatorship to democracy in the favelas of Rio de Janeiro. Durham, NC (EUA): Duke University Press, 2014. 2 p.
[3] PERLMAN, Janice. Favela: four decades of living on the edge in Rio de Janeiro. Oxford, Reino Unido: Oxford University Press, 2010. 333 p.
[4] FISCHER, Browdyn. A poverty of rights: citizenship and inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro. Stanford: Stanford University Press, 2008. 60 p.
[5]MCCANN, Bryan. Hard times in the marvelous city: from dictatorship to democracy in the favelas of Rio de Janeiro. Durham, NC (EUA): Duke University Press, 2014.
[6] WILLIAMSON, Theresa. Rio’s favelas: the power of informal urbanism. In: MCALLISTER, M.; SABBAGH, M. (Ed.). Perspecta 50. Cambridge, MA (EUA): MIT Press, 2017. p. 213-228.
[7] BARBOSA, Rosana. Immigration and xenophobia: Portuguese immigrants in early 19th century Rio de Janeiro. Lanham, MD (EUA): University Press of America, 2009.
Série Completa: Nem Todos Têm Um Preço: História da Luta da Vila Autódromo
Parte 1: (Re)Introduzindo Favelas
Parte 2: Apresentando a Vila Autódromo
Parte 3: A Ascenção da Vila Autódromo Como Símbolo de Resistência Olímpica (2010-2012)
Parte 4: Intimidação e Virada Crucial na Luta da Vila (2013-2014) [VÍDEO]
Parte 5: Prefeitura Parte para a Desapropriação e Violência (2014-2016) [VÍDEO]
Parte 6: Conclusão—Vila Autódromo no Contexto das Remoções Olímpicas do Rio
Parte 7: Linha do Tempo da Vila Autódromo
*RioOnWatch é um projeto da ONG Comunidades Catalisadoras.