Esta é a terceira matéria de uma série sobre o cenário político brasileiro para 2018.
No dia 16 de fevereiro o governo federal autorizou uma chamada intervenção federal, de caráter militar, no Rio de Janeiro, até o dia 31 de dezembro desse ano. A atuação de militares na segurança pública do Rio não é novidade. As forças armadas atuaram no Alemão em 2010 como parte da estratégia que culminou na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na comunidade, atuaram na cidade durante os megaeventos, e atuaram por 14 meses na Maré entre 2014 e 2015 a um custo de R$600 milhões.
Além destes casos, nos dias que antecederam o carnaval de 2017 um contingente de 9.000 militares esteve nas ruas do Rio, solicitados pelo Governador Pezão, que alegou “necessidade por conta do aumento no número de pessoas na cidade”. Já em julho de 2017 o então ministro da defesa, Raul Jungmann, havia anunciado que as forças armadas iriam “ajudar na segurança pública” no Rio até o final de 2018. Em setembro e outubro, moradores da Rocinha tiveram que conviver com repetidas ocupações por parte do exército, que se estendeu até quatro favelas na Baixada. Em novembro, uma operação do Exército com a Polícia Civil culminou na chacina de oito pessoas no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Em janeiro desse ano, cerca de 3.000 militares se somaram aos policiais em uma ação conjunta no Jacarezinho que durou mais de uma semana.
Diferente das decisões anteriores, no entanto, a autorização de intervenção torna a possibilidade de ação das forças armadas contínua e não pontual. Cada atuação não precisa de um decreto presidencial para acionar o dispositivo de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), mecanismo da constituição que permite ação das forças armadas para apoiar a segurança pública em caso de agravamento da insegurança e insuficiência das forças policias. A partir desse decreto, não só a execução, mas o planejamento da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro passam a estar subordinados ao General Walter Souza Braga Netto, interventor federal que responde diretamente ao presidente e que assume a Secretaria de Segurança do estado, as polícias Militar e Civil, o Corpo de Bombeiros, a Administração Penitenciária e inclusive aqueles encargos do governador que tenham relação direta ou indireta com a segurança pública. A atuação das forças armadas deixa, portanto, de estar subordinada ao governo do estado. E as normas estaduais que conflitem com medidas tomadas pelo interventor ficam sem efeito, de forma que os militares terão liberdade total de ação.
Apesar de já ter sido aprovado pelo Congresso e já haverem tropas nas ruas (agindo na favela Kelson’s na Zona Norte e Vila Kennedy na Zona Oeste, além de uma ação na Penitenciária Milton Dias Moreira em Japeri), o próprio Braga Netto disse em sua primeira coletiva de imprensa que ainda é necessário fazer estudos e planejar a intervenção. Além da falta de planejamento, faltam dados que sustentem a necessidade da intervenção. A intervenção foi justificada com base em um suposto surto de violência durante o carnaval, ainda que a diretora do Instituto de Segurança Pública (ISP) tenha desmentido tal surto, atribuindo a sensação de insegurança a uma narrativa alimentada pela grande mídia que não é refletida nos indicadores. A decisão pela intervenção nesses moldes é inédita desde a redemocratização do país, e teme-se que abra precedentes mais distantes para a atuação de militares em esferas além da segurança, e mais próximos para o aprofundamento da militarização e recrudescimento da violência.
Impacto para os moradores de favelas e periferias
A sensação imediata de segurança, além de ser seletiva e não resolver questões mais profundas da política de segurança como a circulação de armas e a política de guerra às drogas, vem às custas da insegurança de uma parcela significativa da população: a negra e favelada. Se sob a ação da polícia casas já eram invadidas sem mandados, pessoas eram presas arbitrariamente e inclusive desaparecidas, teme-se o que poderá acontecer sob a ação das forças armadas, treinadas para atuar em cenários de guerra. Mesmo antes da intervenção entrar em vigor, moradores de favelas já estão tendo suas liberdades violadas, como o direito de ir e vir. Na Vila Kennedy, militares já estão realizando “fichamento” de moradores, tirando fotos de seus rostos e identidades, e atrasando o seu deslocamento para o trabalho. Além disso, o então Ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou que seriam concedidos mandados coletivos de busca e apreensão, mandados esses que tratam todos os moradores como suspeitos e dão carta branca para que os militares adentrem não uma casa específica sob suspeita, mas qualquer casa em uma rua, região ou bairro, aprofundando a possibilidade de ações arbitrárias e violações de direitos.
Além disso, há um potencial perigoso de que violações contra a vida de moradores sejam tratadas com impunidade. Isso porque, diferente da polícia, os homicídios causados por membros das forças armadas passam a ser julgados pela Justiça Militar, inclusive durante operações de GLO e no cumprimento de atribuições estabelecidas pelo presidente da República, como prevê a Lei 13.491, aprovada em outubro do ano passado, inicialmente concebida provisoriamente para cobrir os crimes dolosos que ocorressem durante os Jogos Olímpicos. Mas é preciso lembrar que não se tratam de homicídios em cenários de guerras internacionais, mas em um cenário urbano, cometidos contra a própria população. Diante desse cenário, os moradores estão alertando uns aos outros para não saírem sem documentos, para carregarem nota fiscal das coisas que possuem, para preferirem guarda-chuvas pequenos e não longos que possam ser confundidos com armas de fogo.
“Precisamos de um discurso único não contra a ação de ninguém, mas em defesa dos direitos da favela. Não podemos abrir mão do direito de ir e vir”, disse Itamar Silva, ativista morador do Santa Marta e diretor do iBase, durante um evento organizado pela Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ). Diante da percepção compartilhada de que existem nas favelas aqueles que são a favor da intervenção, ele coloca o desafio para os ativistas de favelas: “Como eu dialogo com o meu vizinho, com quem eu cresci? Qual a narrativa que a gente vai disputar nos nossos territórios?”. A resposta parece passar por uma série de ações propostas ao final do evento, que incluem a conscientização e informação da população por meio de assembleias locais e do trabalho dos comunicadores populares. Além disso, também foram propostos o enfrentamento jurídico da intervenção por meio de advogados populares, incluindo o combate ao mandato coletivo e a criação de uma comissão para dialogar com o interventor, além da transformação das UPPs em Unidades de Políticas Públicas.
Enquanto alguns moradores celebram a resposta enérgica do governo federal contra uma violência que sentem na pele, muitos mostram-se céticos não só quanto a quem se destina essa proteção, mas quanto ao próprio custo-benefício das ações. A FAFERJ clama que os custos da intervenção sejam reinvestidos na forma de “escolas e creches, hospitais, projetos de geração de emprego e renda e políticas sociais voltadas principalmente para juventude”, o que eles chamam de uma intervenção social. Isso é especialmente importante se considerarmos que os 14 meses de ocupação do Exército na Maré custaram aos cofres públicos R$600 milhões, enquanto ao longo de 6 anos o investimento em projetos sociais na comunidade foi de apenas a metade, R$300 milhões. “Precisamos de uma intervenção que nos traga a vida e não a morte”, diz a nota oficial da FAFERJ. “Isso tudo é pra inglês ver. Depois da eleição eles saem rapidinho. Não precisa de intervenção nenhuma pra que entrem nas nossas casas e atirem nos nossos filhos, a polícia já faz isso”, disse uma moradora do Complexo do Alemão que preferiu não ser identificada.
Para monitorar as ações das Forças Armadas e inibir essas violações, estão sendo criadas iniciativas como o Observatório da Intervenção do CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), o Observatório Jurídico da OAB-RJ, e o Observatório Legislativo da Intervenção Federal da Segurança Pública do Estado do Rio (OLERJ), criado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, para garantir a transparência dos dados das ações no contexto da intervenção. Quanto a esse último, no entanto, questiona-se a imparcialidade que terá para fazer denúncias, visto que não será uma entidade externa, mas composto por servidores federais, além do que sua criação precede um passo ainda mais imediato, que é a apresentação do planejamento da intervenção.
Impacto para a política e as eleições
Há a percepção que a intervenção federal é a nova aposta de segurança pública diante da falência das UPPs. A escolha pelo Rio de Janeiro (apesar de outros estados da federação serem também palco de profundas inseguranças, inclusive nas fronteiras, onde o emprego das forças armadas é justificado para controlar a entrada de armas e de drogas) pode ser atribuída a esse histórico de grandes projetos de segurança pública, inclusive com a participação das forças armadas, e a sua projeção nacional e internacional, graças à mídia.
Para Michel Temer, que goza de baixíssimos níveis de popularidade, a criação de uma ameaça e a consequente oferta de uma resposta enérgica àquele que é visto como um dos principais problemas do país, o da segurança, é uma manobra ousada que pode lhe garantir alguma legitimação. Além disso, desvia atenção de sua principal bandeira, a Reforma da Previdência (que, diferente de uma intervenção militar, é extremamente impopular por mexer com as aposentadorias), ao mesmo tempo em que cria um mecanismo legal para que ela possa ser aprovada rapidamente. Isso porque não podem ser votadas emendas à Constituição enquanto um estado estiver sob intervenção, mas Temer declarou que irá suspender o decreto da intervenção (mas na prática continuará funcionado sob uma GLO) para que haja a votação e, se aprovada, será emitido um novo decreto de intervenção, o que lhe dará tempo para articular o apoio a sua medida e poder para inviabilizar qualquer resistência a ela depois de aprovada. Finalmente, a solução militar pode ter o efeito de permitir que o candidato apoiado pelo governo atual capture o eleitorado potencial de Bolsonaro, assumindo para si uma pauta de centro-direita em defesa da lei e da ordem.
Ainda no âmbito federal, o planejamento da intervenção já levou à criação do Ministério da Segurança Pública, sob a direção de Raul Jungmann, até então o Ministro da Defesa, à frente das ações militares na cidade do Rio e 2017 e de um plano integrado de segurança pública, que seria lançado no início do mês, mas que não saiu do papel. O recém-criado ministério será responsável pela integração dos serviços de segurança pública e pelas Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Departamento Penitenciário Nacional e Secretaria Nacional de Segurança Pública, hoje subordinada ao Ministério da Justiça. Assim, não se sobreporá à atuação das Secretarias Estaduais de Segurança, que são responsáveis pelas polícias militar e civil. O cargo que Jungmann deixa vago no Ministério da Defesa será ocupado pelo General Joaquim Silva e Luna–primeira vez que um militar assume o Ministério desde sua criação em 1999.
O também impopular governador do estado, Pezão, responsável pelas políticas de segurança pública no Rio de Janeiro, a partir do decreto abre mão de suas responsabilidades na área, delegando-as ao Exército, na esperança de que ela produza efeitos rápidos. Assim, no curto prazo, deslocará a atenção dos erros de gestão e gera governabilidade e, no longo prazo, poderá garantir a sua reeleição. Há ainda boatos que o próprio Jungmann pretenda disputar o governo do estado, de forma que o sucesso da intervenção fortaleceria a sua candidatura
Já o Prefeito Marcelo Crivella–que estava ausente no momento da declaração da intervenção em uma missão na Europa para buscar tecnologias de segurança (missão essa que foi desmentida), que não compareceu à reunião de criação do OLERJ, e para quem a segurança pública se faz na orla da cidade orientada para o turismo–poderá também colher os frutos de um aumento na sensação superficial de segurança, especialmente sentida nos bairros mais ricos da cidade. A intervenção, no entanto, é um plano para o estado do Rio de Janeiro, não para a cidade. Isso significa que, ao mesmo tempo que a atuação dos militares nos pontos mais abastados possa apenas deslocar a atividade criminal para outros municípios, como aconteceu com as UPPs, há um potencial de ação truculenta das forças armadas em locais para onde os olhos do público não se lançam e que a mídia não noticia. Essas duas realidades têm potencial de se manifestar ainda mais cruelmente em municípios como os da Baixada e em São Gonçalo, que já contam com altíssimos índices de homicídio.
Esta é a terceira matéria de uma série sobre o cenário político brasileiro para 2018.