No final de março de 2005, a Polícia Militar do Rio de Janeiro matou 29 pessoas nos bairros de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, no que mais tarde ficou conhecida como a Chacina da Baixada, a mais sangrenta da história do Rio de Janeiro. Treze anos depois, na noite de 27 de março, multidões lotaram o Cine Odeon da Lapa para a pré-estreia do novo documentário “Nossos Mortos Têm Voz”. O filme, agora em pré-lançamento, acompanha seis mulheres da Baixada–todas mães ou irmãs de vítimas de violência policial–e seus esforços para manter vivas as memórias de seus entes queridos.
O evento de exibição em si, embora focado na violência do Estado na região da Baixada, homenageou aqueles que perderam membros da família para violência em todo o Rio de Janeiro. Enquanto os membros da platéia tomavam seus lugares, cada um deles encontrou o nome de uma vítima de violência do Estado fixado ao seu apoio de cabeça.
Muitos membros das famílias dessas vítimas estavam presentes no evento. Eles subiram ao palco, em pé lado a lado em solidariedade, um por um recitando os nomes dos que tiveram as vidas perdidas, enquanto o público respondia com ‘presente’.
Os organizadores prestaram uma homenagem especial à vereadora Marielle Franco, recentemente assassinada, e a seu motorista Anderson Gomes, transmitindo o vídeo da campanha de Marielle de 2016 e lembraram à platéia que nenhuma prisão foi feita desde seu assassinato em 14 de março.
Com o filme “Nossos Mortos Têm Voz”, os diretores Fernando Sousa e Gabriel Barbosa, da Quiprocó Filmes, esperam dar força aos que combatem a violência de Estado na região da Baixada. Fernando diz que embora todo o Rio sofra com violência patrocinada pelo Estado, a Baixada merece atenção especial. “A violência de Estado na Baixada Fluminense ganha uma configuração específica, na medida em que grupos de extermínio e esquadrões da morte se articulam com as diferentes instâncias dos poderes públicos locais, como o legislativo, executivo e o judiciário”.
Para esse fim, o filme usa a Chacina da Baixada como exemplo de cooperação estatal na violência e como um marco para “abordar outros casos de violência de Estado na região”. Fernando e Gabriel argumentam que a violência cometida pelas milícias de hoje traçam sua história até a década de 1950, quando esquadrões da morte agiam abertamente na Baixada. Desde então, esses grupos só cresceram em poder e organização.
Estima-se que 2 milhões de pessoas, em 202 bairros da região metropolitana do Rio de Janeiro, vivam sob alguma forma de controle de milícias, e Fernando tem razão em apontar que a área da Baixada é especialmente vulnerável. Segundo o sociólogo José Cláudio Alves, dos treze municípios da Baixada, nove sofrem com a presença da milícia.
Os homicídios por milícia e a extorsão só são agravados pela frequente cumplicidade da polícia. No mês passado, investigadores apreenderam nove supostos milicianos no município de Mesquita, na Baixada, quatro dos quais eram membros ativos da Polícia Militar do estado.
Uma das protagonistas do filme, Luciene Silva, também esteve presente no evento da noite de pré-estreia. Para Luciene, que perdeu seu filho Rafael na Chacina da Baixada de 2005, esse nível de envolvimento policial faz com que as vítimas na Baixada, sejam menos propensas a falar do que no resto do Rio de Janeiro. “As pessoas têm medo de denunciar, de falar. E a violência cresce cada vez mais”, diz Luciene. “Muitos [vítimas] desaparecem. Muitos nem entram como estatística”.
Esse medo de denunciar gera impunidade em um sistema já repleto de irregularidades jurídicas. “Esses policias que ocupam o grupo de extermínio, cometem crimes e continuam andando na rua”, diz Fernando. Ele lembrou à platéia do caso de Joanna D’Arc Mendes: em 2004, três policiais assassinaram seu filho Flávio Mendes Pontes em Itaguaí. Um oficial foi expulso, enquanto os outros dois participaram da Chacina da Baixada, um ano depois.
Ao apoiar as mães e irmãs da Baixada em sua busca pela justiça, os diretores Fernando e Gabriel sabem que lutam uma batalha difícil. “Você pode ter certeza”, diz Fernando, “a gente sabe que esse filme não vai render milhões. Assumimos um compromisso público. A gente vai continuar se metendo nisso tudo”.