Um viaduto com intensa atividade cultural, engajando a juventude do bairro, e um parque urbano como espaço para lazer e práticas de esporte. O que finalmente é realidade em Madureira, na Zona Norte do Rio, é aspiração de moradores de outros tantos bairros, que não deveriam precisar atravessar a cidade para acessar equipamentos de lazer e cultura, fortemente concentrados na Zona Sul e Centro, em seu tempo livre, para além dos deslocamentos que já fazem no dia a dia para trabalhar.
Cansados de esperar instalações formais onde possam socializar e criar, esses moradores vêm se organizando para ocupar praças, calçadas e passagens embaixo de viadutos com atividades que variam de festas a oficinas, de exibições de filmes a concursos (de rima, de passinho, de skate, de grafite), ressignificando espaços de passagem e transformando-os em espaços de convivência, aumentando inclusive a sensação de segurança no local. Exemplos são o projeto Praça Semente Viva, que prevê espaços de lazer e interação construídos no morro da Babilônia via mutirão comunitário, o Festival Leopoldina Orgânica, que ocupa diversas praças da Zona Norte (incluindo no Alemão, Manguinhos, Vila Cruzeiro, Vigário Geral) simultaneamente como espaços de experimentação e convívio em torno da cultura e da agroecologia, e o Favela Cineclube que exibe curtas e longas em uma praça debaixo de uma passarela no Morro da Providência.
No caso dos parques urbanos, a mobilização popular não é suficiente para criá-los, com toda a infraestrutura que necessitam, mas ela tem uma importante função em pautar a demanda das comunidades pelos parques e em cobrar a sua realização quando prometidos.
Sob o Viaduto
Realengo, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, eternizado na música “Aquele Abraço”–“Alô, Alô, Realengo”, diz Gilberto Gil, em alusão ao local onde ficou preso durante a ditadura–é palco de dois movimentos simultâneos. De um lado, embaixo do viaduto que dá acesso à estação de trem, foi criado o Espaço Cultural Viaduto de Realengo. O espaço é decorado com grafites de moradores, muitos pelas mãos de Oberdan Mendonça, idealizador primeiro da ocupação. Funciona em uma rua oficialmente sem nome que os que ocupam o lugar querem que leve o nome de Walter Fraga, luthier e violinista que morou na região. Oberdan e companheiros protagonizaram a iniciativa “Circuito de viadutos da cidade”, mapeando os viadutos da cidade e propondo atividades culturais há cerca de três anos. “Em vez de esperar convites para ir a outros territórios fazer qualquer atividade, decidimos avivar esse espaço público para ampliar a rede de cultura do bairro e a troca com outros territórios”, disse na época Oberdan.
Às terças rolam rodas culturais com batalha de rimas. Às sextas-feiras, bailes charme. Uma vez por mês rola uma Escola de Barbeiros, com cortes grátis. O espaço também foi um dos palcos do Festival Zona de Cinema, que circula por vários territórios da Zona Oeste. Fernanda Távora, moradora do bairro e uma das produtoras do festival, diz que as atividades são uma alternativa cultural, e também política, “em um bairro que não tem nada”. “Em Realengo não tem muitos equipamentos culturais, não tem teatro. Só tem cinema perto que passa filme blockbuster. Não tem museu. Não tem biblioteca, não tem livraria. Não que a gente esteja fazendo uma revolução, mas a gente tá fazendo política sim. A gente tá chamando atenção para o fato de que tem gente na Zona Oeste que produz e consome cultura”.
Ela relembra uma situação que ilustra bem isso: “Um senhor e uma senhora apareceram ali um dia, assistiram o filme, participaram do debate, e depois contaram que estavam indo para a Zona Sul para ir no teatro ou no cinema, mas perderam o trem [que ficava acima do viaduto do evento]. Como era final de semana o trem ia demorar a passar de novo e eles iam perder o horário. [Quando passaram pelo cineclube pararam lá. Depois da exibição do filme] o senhor falou que ele mesmo já tinha produzido um vídeo, com um sambinha, falando sobre Bangu. A gente abriu [o vídeo dele] na hora no YouTube e passou lá. Foi bem legal esse momento”.
Para Fernanda, além das dimensões culturais e políticas, a ocupação do espaço é uma questão de segurança e de identidade: “O espaço ali sempre foi muito abandonado. Qualquer evento que tem no viaduto passa segurança pro morador da região. Aquela parte é conhecida por ter muito assalto, é um lugar [que era] muito deserto, perigoso. A galera que ocupa tem essa coisa de deixar limpo, de botar grafite pra decorar, pra não deixar o espaço escuro e sem cor. A gente também fez uma tentativa de ter uma horta comunitária. Do lado direito de quem entra tem um canteirinho. O pessoal ia lá cuidar das plantas. É uma forma também de estimular o sentimento de comunidade, de pertencimento ao território, entender que aquele espaço ali é de todo mundo. Aquele pedaço ali é seu, é parte do lugar que você mora, não é só um lugar que você passa como qualquer outro, um espaço de vai e vem”.
Depois de fazerem o trabalho que a prefeitura deveria garantir de ofertar espaços culturais, os organizadores desse tipo de evento costumam buscar o apoio da prefeitura para a continuidade das suas atividades por meio de editais e repasses de fomento à cultura. Esses, no entanto, encontram-se escassos na presente gestão, que vem apresentando uma relação conturbada com a área da cultura, especialmente a popular e de rua. “A gente depende de edital. A gente tinha ganhado um da RioFilmes pra fazer um festival. Não tem nenhuma política pública, nada, que dê apoio financeiro para organizar o festival. Tem uma galera que faz isso na raça, começa por conta própria e depois vai conseguindo apoio da galera–loja de tatuagem, de comida, mas nada do governo”, diz Fernanda.
Sobre o Parque
De outro lado, a pouco mais de um quilômetro dali, um terreno abandonado onde funcionava uma fábrica de cartuchos do exército, desativada em 1978, é reivindicado há anos pelos moradores para a implementação do Parque Realengo Verde, dando uma destinação pública a uma área que é, afinal, pública. Em uma ponta do terreno já funciona o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFRJ), referência na educação pública da cidade, mas o resto do espaço permanece abandonado desde a década de 70. A POUPEX (Associação de Poupança e Empréstimo), gerida pela Fundação Habitacional do Exército, que tem atualmente posse do terreno, quer construir unidades habitacionais destinadas a militares. Pode-se questionar a demanda por mais habitação para militares num bairro que é vizinho de Deodoro e da Vila Militar e onde, na década de 80, foi construído um condomínio para militares que não foi totalmente ocupado e as unidades foram comercializadas também para civis.
O projeto da POUPEX inclui uma área verde aberta aos moradores, como contrapartida social ao bairro. Os moradores, no entanto, recebem a proposta com descrédito. Além da área ser muito inferior que a do parque que eles reivindicam, temem que, por se tratar de uma área militar, o acesso seja burocrático ou mesmo restrito. A preservação ambiental da região também é uma preocupação dos membros do movimento, que poderia vir a ser prejudicada pela construção dos prédios.
Os moradores defendem que o parque melhoraria a ventilação do bairro, que compartilha com o vizinho Bangu temperaturas altíssimas no verão, e supriria uma necessidade de áreas verdes, surpreendentemente escassas no bairro que se situa entre o Maciço da Pedra Branca e a Serra do Mendanha. Leandro Fraga, morador há 47 anos do bairro e parte do Movimento Popular Parque Realengo Verde, que articula moradores e mais de 22 instituições, diz: “Não há uma área de lazer para onde podemos trazer pessoas que visitam o bairro, idosos e crianças. As serras em volta são ingrimes, não dá. Eu como pai não tenho como levar meus filhos lá. Não tem Jardim Botânico, Parque Lage, Aterro do Flamengo aqui. Um parque ecológico traria paz, tranquilidade, harmonia. O bairro passaria a ter outro ritmo. Poderia até diminuir o impacto das enchentes, permitindo a drenagem das ruas em volta”.
Além disso, para os defensores do parque, não se trata somente de uma questão de bem-estar e lazer. A ocupação do espaço público abandonado também é uma questão de segurança, visto que as instalações abandonadas da antiga fábrica acabam sendo usadas como esconderijo para assaltantes. E lazer não se restringe a somente a existência de um espaço físico. O projeto que os moradores entregaram para a prefeitura, elaborado pelo professor Luiz Otávio Pessôa da Universidade Estácio de Sá, inclui quadras esportivas, campo de futebol, ciclovia, pista de skate, academia da terceira idade, parquinho, quiosques, áreas para piquenique e espelho d’água, de forma a atender as demandas dos moradores. Além disso, a abertura do parque facilitará o acesso de pedestres à estação de Realengo (e, consequentemente, ao espaço cultural do viaduto).
A importância do parque é potencializada pela constatação de que as opções de lazer na cidade do Rio se dão de maneira muito desigual. A própria prefeitura de Crivella reconhece isso em seu Plano Estratégico, dizendo que existe “disparidade na concentração de parques urbanos na cidade, que estão localizados em sua maioria nas Áreas de Planejamento 1 e 2”, que correspondem ao Centro e à Zona Sul, e que “[n]a região da Área de Planejamento 5 – AP5 (Zona Oeste), por outro lado, existe uma grande carência de parques e espaços de lazer, ao mesmo tempo em que grandes áreas, muitas vezes ameaçadas por pressão imobiliária irregular, são ambientalmente frágeis e demandam um olhar mais cuidadoso em relação a sua utilização”.
No entanto, apesar do diagnóstico, acompanhado pela previsão da criação do Parque Realengo anunciado no Plano Estratégico e em decreto da prefeitura de 1° de janeiro de 2017, não há nenhum sinal dele. Tampouco há sinal dos outros parques urbanos à semelhança do Parque de Madureira prometidos–entre eles, o Parque Campo Grande, anunciado em outubro de 2017, o Parque da Cidade de Deus, anunciado quatro dias depois uma operação policial no local com intenso tiroteio e o Parque da Maré, anunciado depois da morte de Marielle Franco, ambos em março desse ano.
Em reunião consultiva no bairro com a presença do prefeito ainda em março de 2017, moradores votaram pela criação do parque em detrimento do condomínio e Crivella enfatizou a importância não só do parque, mas do projeto participativo: “Com a escolha do Parque de Realengo feita pela maioria, nós estaremos contribuindo para toda a região. Porque vai ser uma área de lazer espetacular, uma área democrática, uma área que vão os jovens, os idosos, os pobres, os ricos. Algo extraordinário que vamos deixar também para os nossos netos, bisnetos e pósteros como uma realização da nossa geração”. Para Leandro, no entanto, a fala de Crivella é vazia: “O prefeito não está resolvendo–ou ele agrada a grande maioria, que é a população, ou os diretores dos bancos, o capital imobiliário, os coronéis”. O prefeito disse que iria dialogar com o Exército acerca da transferência do terreno para a prefeitura e que voltaria para dar continuidade ao projeto, mas nunca retornou ao bairro.
Prova disso é que no final do ano passado foi apresentado na Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar 32/2017, assinado por Crivella, que está longe do que demandaram os moradores. O PLC determina que a POUPEX doe 54% da área do terreno para que a Prefeitura construa o parque em troca da construção do condomínio nos 46% restantes. Como contrapartida à cessão da POUPEX, o projeto permite que o gabarito seja alterado de 8 (como determina o Plano Diretor) para 11 andares, “de forma a liberar maior área possível para implantação de um parque, projeto de grande importância social”.
A página no Facebook da XXXIII Regional Administrativa de Realengo fez uma enquete online e 80% escolheu a opção que previa a construção do parque na integralidade do terreno. O resultado justifica o lema que foi então assumido pelo movimento: “100% Só Parque Realengo Verde”. O projeto de lei está sofrendo emendas e ainda não foi votado. No dia 8 de junho haverá uma nova audiência pública para debater o tema no campus da Universidade Castelo Branco.