Esta é a primeira matéria de uma série de quatro que resume o relatório sobre o potencial–dentro da lei atual brasileira–da aplicação do modelo Community Land Trust, sendo traduzido para o português como Termo Territorial Coletivo (TTC), para a segurança fundiária nas favelas do Brasil, apresentando e adaptando um relatório pelas advogadas e urbanistas Tarcyla Fidalgo e Renata Antao, preparado com apoio do Instituto Lincoln de Políticas de Terra (LILP). Esta série esclarece vários pontos referentes à proposta, mostrando as suas bases, contextualização para favelas, benefícios, aplicabilidade e forma de funcionamento. Nesta primeira matéria, contextualizamos o tema e desenvolvemos o panorama geral do que seria o Termo Territorial Coletivo enquanto um instrumento da política urbana para favelas. Para ler as outras matérias da série clique aqui.
Esta série foi publicada em preparação para a vinda da delegação de Porto Rico, entre 23 e 27 de agosto, que conseguiu realizar o TTC em oito favelas de San Juan, com ótimos resultados. As oficinas foram realizadas pela ComCat em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio, e o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro.
As origens e as bases da proposta do Termo Territorial Coletivo
O instrumento do Termo Territorial Coletivo (TTC) surgiu a partir das experiências ocorridas nos Estado Unidos com os Community Land Trust na década de 60, encabeçados por movimentos sociais norte-americanos. No entanto, o primeiro Community Land Trust urbano só foi ser implementado em 1980, na cidade de Cincinnati. Desde então, a proposta vem sendo amplamente difundida em diversos locais, com centenas de experiências variadas ao redor do mundo, inclusive no Canadá, Inglaterra, Escócia, Austrália e Quênia.
A proposta original do Community Land Trust não prevê aplicabilidade direta em favelas, mas por ser um modelo bastante flexível e passível de ser adaptado a diferentes contextos e necessidades, e por ser desenvolvido exatamente para responder a contextos mais vulneráveis ao mercado imobiliário especulativo, ele se tornou uma ferramenta de interesse para atender a demanda por segurança fundiária em favelas. Isso porque a proposta principal deste modelo é fornecer moradia adequada e economicamente acessível perpetuamente, combatendo a especulação imobiliária sobre a terra e garantindo a segurança de permanência dos moradores em seus locais de moradia.
A tradução de Community Land Trust para Termo Territorial Coletivo busca valorizar a ideia de um termo entre várias partes, a coletividade, no gerenciamento do território que todos têm em comum. Nesse sentido, a terra fica na posse do TTC (pessoa jurídica criada), que é composto pelos moradores e por um conselho, e a sua gestão é feita de forma coletiva. No entanto, enquanto a comunidade estabelece um acordo para o uso do território onde convive, as construções em si–os imóveis sobre a terra do TTC–são de propriedade individual, possibilitando um meio-termo entre as expectativas individuais e coletivas.
Na última década, o Rio de Janeiro enfrentou uma série de políticas urbanas ligadas ao contexto dos megaeventos sediados na cidade, e que contribuíram para uma série de remoções em favelas e para a especulação da terra urbana. Como exemplo, o programa da UPP adotado teve um claro impacto no potencial especulativo para o mercado das favelas onde foi implementado, aumentando tanto o preço dos imóveis nos bairros formalizados em torno quanto em favelas que receberam essa intervenção, principalmente aquelas localizadas na Zona Sul, área mais turística da cidade.
Nesse contexto, surge a necessidade de pensar novos mecanismos e instrumentos que possam garantir a permanência dos moradores em suas comunidades, seja contra o risco de remoção pelo Estado ou remoção pelo mercado. Títulos de posse–o tradicional alvo da militância neste sentido, de fato só protegem contra a remoção estatal, e nem plenamente, como vimos no caso da Vila Autódromo. Porém, títulos na verdade exacerbam o risco de remoção pelo mercado, ou gentrificação, tanto pela força legal que agora é dada à transação, quanto pela individualização e lógica mercadológica que acompanham o recebimento de um título individual, que transforma o lar em mercadoria sob a lógica do ‘investimento’.
Com isso, com a titulação também se torna fundamental desenvolver formas de fortalecimento dos elos comunitários e a organização social local. Felizmente o TTC também oferece uma estrutura eficaz neste sentido, viabilizando a união de forças necessárias para o enfrentamento de futuras disputas.
Termo Territorial Coletivo como possibilidade de política urbana
O Termo Territorial Coletivo (TTC) é um instrumento que une dimensões jurídica, social e de planejamento urbano, tendo por objetivo garantir a permanência dos moradores em seus locais de moradia e oferecer habitação acessível de forma contínua. Isso é viabilizado já que, ao ser constituído, o TTC–cujo conselho é eleito somente por moradores locais–se torna o proprietário da terra. Dessa forma, a terra é governada pelos moradores porém é retirada do mercado e separada do valor das construções, portanto não é passível de ser especulada. Na sua criação a gestão do TTC pode também escolher estabelecer um teto de valor para as propriedades que forem vendidas, de forma a garantir ainda maior acessibilidade à moradia.
Um dos principais benefícios deste modelo é que–apesar do cenário ideal incluir a aprovação de uma lei específica para o Termo Territorial Coletivo para que houvesse sua legislação própria–este instrumento pode ser aplicado através dos instrumentos de política urbana já existentes. Além disso, apesar do apoio do governo ser um facilitador, ele não é imprescindível para que seja iniciado um Termo Territorial Coletivo. Com isso, o TTC oferece uma possibilidade de aplicação de forma mais imediata.
Fundamentos básicos da proposta
Garantir a segurança da permanência, além de moradia acessível e de qualidade é o principal objetivo de um Termo Territorial Coletivo (TTC). No entanto, essas moradias podem ser propostas de diversas maneiras, e vai depender da própria organização do TTC.
Além disso, os TTCs podem ir além da moradia em si, contribuindo para o desenvolvendo local de forma mais ampla, como, por exemplo, desenvolvendo hortas comunitárias, serviços locais e pleiteando a implementação de serviços públicos. As possibilidades são enormes, e o desenvolvendo local vai depender das necessidades e das vontades que o conselho e os participantes decidirem desenvolver. No entanto, apesar de ser um modelo bastante flexível, este instrumento apresenta algumas características básicas comuns a todos os formatos.
De maneira geral, o Termo Territorial Coletivo objetiva:
- Garantir o acesso à terra e à segurança contra remoções para a população mais pobre e vulnerável às ações do mercado imobiliário;
- Gerir coletivamente as terras inscritas dentro do regime do TTC, enquanto as moradias construídas sobre essas terras são de propriedade individual;
- A auto-organização de seus moradores e parcerias com técnicos de forma continuada, como forma de gestão do TTC;
- O ingresso voluntário, uma vez que ninguém é obrigado a fazer parte de um TTC.
Quando aplicado em favelas, atuando em uma área já ocupada socialmente e culturalmente, o modelo permite que o desenvolvimento local ocorra de acordo com os interesses e a cultura local. O desenvolvimento local é, portanto, liderado e orientado pela comunidade, o que é essencial para atender as necessidades locais e promover o engajamento e organização necessários para abrir caminhos para outros projetos e melhorias. Além disso, conforme mais TTCs são formados, a força social organizada para demandar direitos aumenta, uma vez que os TTCs podem se unir para articular movimentos maiores que demandem por outros direitos e que se organizem para novas possibilidades de luta.
Mais segurança contra remoções
A remoção é uma violência social, psicológica, física, política e econômica. Além de violar os direitos dos moradores, acarreta na perda de tudo o que eles construíram ao longo do tempo, implicando em uma reconstrução psicológica, social e econômica, que nem sempre é possível.
Uma vez que o proprietário das terras é o TTC, a segurança perante um processo de remoção aumenta dramaticamente, já que as titulações não são individualizadas e o seu próprio funcionamento implica na auto-organização dos moradores junto a profissionais. Dessa forma, além de ser necessária uma tentativa de remoção de toda a comunidade de uma só vez, o que já dificulta a ação do governo, o conselho de suporte profissional ao TTC aumenta a base de apoio técnico em uma possível tentativa de remoção.
Esta é a primeira matéria de uma série de quatro.