No dia 6 de agosto de 2016 começaram os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Enquanto o gás lacrimogêneo sufocava ativistas em um protesto do lado de fora do Estádio Maracanã, uma pequena fração dos moradores procedentes da Vila Autódromo estavam ocupados mudando-se para novas casas. Essas vinte famílias resistiram à remoção contra todas as expectativas após anos de luta e a perda de 97% dos moradores originais da comunidade. Depois de dois anos, em 5 de agosto de 2018, em um evento organizado conjuntamente pelo Museu das Remoções e a Defensoria Pública – Núcleo de Terras e Habilitação (NUTH), moradores e apoiadores celebraram a notável vitória da Vila Autódromo, ao passo em que miram o futuro da comunidade–bem como o futuro do direito à moradia no Brasil em geral.
Após resistirem à remoção de forma determinada e criativa, vinte famílias tiveram sucesso na sua luta para permanecer na comunidade, devido ao primeiro acordo de negociação coletiva de reassentamento no Rio de Janeiro. O governo construiu novas casas para esses moradores que permaneceram e prometeu novas urbanizações nos espaços comunitários nos meses seguintes aos Jogos Olímpicos. Essa segunda fase de urbanizações, que deveria estar completa no fim de 2016, ainda não foi iniciada.
O Museu das Remoções foi criado pelo movimento de resistência para garantir que a memória da remoção e da luta na Vila Autódromo não se perca. O museu é uma declaração dos moradores, que afirma que a Vila Autódromo não pode desaparecer do mapa e que esta “memória não pode ser apagada”. Como o museólogo Mario Chagas explica, o Museu das Remoções também confere legitimidade aos moradores da Vila Autódromo ao contar suas histórias em espaços de elite, como universidades e outros museus da cidade.
O evento iniciou com uma exposição fotográfica intitulada “Imagens de Memória e Luta” de Luiz Claudio Silva. Luiz mora na Vila Autódromo por mais de vinte anos; a casa de sua família foi a última a ser demolida antes da comunidade chegar a um acordo com a prefeitura. Nas palavras de Luiz, a exposição apresenta a “perspectiva de um morador, de uma comunidade que foi violentada nos últimos processos de transformação urbana desencadeadas pelos megaeventos, apresentando um olhar sensível de quem esteve cotidianamente imerso na luta em defesa de seus direitos de existir na cidade”.
Após a exposição, foi realizado um debate na igreja católica da comunidade, presidida pela defensora pública Adriana Bevilaqua. O painel foi composto por Regina Bienenstein, professora de arquitetura e urbanismo da UFF; Carlos Vainer, professor de planejamento urbano na UFRJ; e Maria da Penha, moradora da Vila Autódromo. Os dois professores conduziram a equipe de urbanistas que colaboraram com a comunidade para produzir o Plano Popular da Vila Autódromo, que apresentou um futuro alternativo para a comunidade onde as remoções não eram necessárias.
Regina começou seu discurso dizendo o quão bom foi estar de volta na Vila Autódromo e que ela sentia saudade da comunidade. “A luta da Vila Autódromo”, ela explicou, “ainda é um caso emblemático de resistência”. Descrevendo o processo de construção do Plano Popular ela afirmou que o caso da Vila Autódromo oferece lições importantes no processo de luta pelo direito à moradia. Ela disse que é importante salientar que a “Vila Autódromo nunca esteve sozinha”, pois recebeu apoio de movimentos sociais, universidades, políticos e outros.
Por fim, apesar de 97% da comunidade ter sido removida, ela vê a história da Vila Autódromo como uma relativa vitória, não apenas pelo sucesso dos que ficaram, mas por outro subconjunto moradores que saíram com acordos de indenizações adequadas como resultado de sua resistência feroz. Entretanto, Regina advertiu: “A sombra da remoção, ela não desaparece… A gente tem que dar visibilidade a essa luta”. Ela afirmou que “a luta não acabou” ao explicar que os moradores ainda não receberam os documentos prometidos para provar a posse da propriedade e continuam esperando por urbanizações não entregues, incluindo uma quadra poliesportiva e uma praça.
Enquanto Regina falava sobre o passado e a luta que continua até hoje, Carlos refletiu sobre como essas memórias podem ajudar a prever futuras possibilidades. Vila Autódromo “vive em cada um de nós, na memória de cada um de nós”, ele afirmou. Aqui, nestes eventos “nós construímos o presente a partir do nosso passado, e abrimos possibilidades para o futuro” criando um espaço onde “nós podemos pensar e mudar o futuro”.
Essa “possibilidade de um futuro diferente” nos permite afirmar que “nós queremos uma outra cidade”, ele explicou. Fazendo referência ao Plano Popular ele disse: “A Vila Autódromo fez o seu plano. A Vila Autódromo projetou seu futuro”. Ao fazê-lo, esses moradores demonstraram a possibilidade de “uma nova Vila, uma nova cidade, um novo mundo”, argumentou Carlos, alterando sutilmente o slogan oficial dos Jogos Olímpicos Rio 2016.
Oradora inspiradora e moradora da Vila Autódromo há 20 anos, Maria da Penha, pegou o microfone e disse:“Agradeço a Deus por essa tarde maravilhosa”. Maria comentou que ver a igreja lotada, transbordando para a rua, enche-a de felicidade “porque estamos aqui celebrando dois anos da urbanização [da comunidade]”. Ela disse que a conquista da Vila Autódromo para muitos parecia impossível. De fato, antes das Olimpíadas, muitos moradores e ativistas duvidaram que a comunidade seria capaz de permanecer, dada a ferocidade das tentativas do governo de removê-los. Maria da Penha afirmou que, embora a comunidade esteja totalmente diferente hoje, sua história deve ser vista como uma vitória. A comunidade foi “transformada, mas com dignidade”. Por este motivo, ela está “celebrando nesse dia, esse grande vitoria”.
Para Maria da Penha determinação é essencial: “Quando você sabe o que você quer, você consegue… É difícil, mas não é impossível”. Sua terra, ela explicou, detém um valor que não pode ser comprado; o dinheiro acaba, mas sua terra permanecerá. Sendo assim, ela está feliz por ficar na sua terra, mesmo que não esteja na sua antiga casa. “A beleza [aqui]… não tem preço”, declarou Maria da Penha. Ela agradeceu aqueles que ajudaram a comunidade durante os anos de luta, apontando pessoas na multidão para agradecer-lhes por suas contribuições.
Maria da Penha argumentou que a educação é fundamental nas lutas populares. Eu tinha direito [de ficar]”, afirmou ela, explicando como conseguiu se manter firme diante das ameaças. Educar as pessoas sobre seus direitos é mais poderoso que quebrar coisas em protesto, argumentou ela, porque quando coisas são quebradas são os trabalhadores que irão consertar. Ela descreveu algumas das estratégias que os moradores usaram para resistir, desde eventos e seminários organizados pelo Ocupa Vila Autódromo até entrevistas, fazendo com que as pessoas “levassem nossa história pra fora”–local e globalmente.
Muitos dos presentes no evento eram alunos da UFF. Maria da Penha comentou: “É muito importante que vocês, estudantes, estejam ouvindo o povo”. Ela ponderou que, por ouvir essas histórias, esses futuros planejadores e arquitetos estarão cientes das dificuldades enfrentadas por comunidades como a Vila Autódromo, e farão seu trabalho com amor e gentileza, transformando o modo dominante de intervenção do governo nas favelas. Maria da Penha concluiu seu discurso inspirador com uma mensagem de esperança para o futuro, recebendo aplausos do público: “Nós podemos sim mudar essa cidade, esse país”.
Adriana, uma defensora pública que trabalhou no caso da comunidade, lembrou que as pessoas costumavam dizer: “Não sei se vou ficar, mas não tenho medo”. A vitória gloriosa da Vila Autódromo é uma prova de seu destemor, ela disse. Com a abertura do debate para o público, Daniel Ferreira Campos, um mobilizador comunitário da Vila União de Curicica, comentou que aprendeu “muito com a Dona Penha” sobre continuar a lutar contra ameaças de remoção. Graças, em parte, pelo apoio da Vila Autódromo, sua casa “continua em pé”.
Essas palavras capturam o tema do debate: agradecendo à Vila Autódromo pela lição de resistência. “Muito exemplar a resistência de vocês”, disse um dos oradores se dirigindo aos moradores: “Vocês são muitos inspiradores”. Em resposta a esses comentários, com um sorriso travesso, o Professor Carlos sugeriu que a área deveria ser reocupada: “As vinte casas que estão aqui hoje se tornarão a capital da Vila Autódromo”. Ele concluiu: “Vamos começar trabalhando nessa direção”.
Finalizando o debate, Maria da Penha mencionou os pássaros que se aninhavam na igreja e que estavam cantando durante todo o debate. Esses pássaros, ela disse, “estão ocupando porque têm direito à terra. Isso é maravilhosa”.
Após o debate, Luiz guiou o público de mais de cinquenta visitantes em um tour pelo Museu das Remoções, explicando que a própria comunidade é o museu–um monumento às memórias da luta. Ele mostrou fotos e marcos na comunidade, explicando a importância na luta. Enquanto colhia frutas de uma das árvores remanescentes na comunidade ele lamentou a oportunidade perdida das Olimpíadas. Luiz ama esportes–ele trabalha como professor de Educação Física e organizava torneios de futebol como parte do movimento de resistência. A Olimpíada, ele disse, poderia ter apresentado uma grande oportunidade de deixar um legado social positivo ao urbanizar esta comunidade, mostrando que as favelas poderiam ter o apoio do Estado.
Enquanto os moradores da Vila Autódromo comemoravam a vitalidade da comunidade e sonhavam com um futuro melhor, o Parque Olímpico ao lado estava vazio e abandonado.
Adam Talbot é professor de sociologia do esporte na Universidade de Abertay, Dundee, Escócia. Sua pesquisa se concentra em protestos, direitos humanos e nos Jogos Olímpicos.