Cuca, a Personificação do Luto à Luta: De Familiar de Vítima do Estado à Referência de Militância Favelada [PERFIL]

Cuca é uma liderança do Morro da Coroa, parte do movimento de familiares de vítimas do Estado, militante de direitos humanos presente em diversos atos pela cidade. Foto: Vinícius Ribeiro
Cuca é uma liderança do Morro da Coroa, parte do movimento de familiares de vítimas do Estado, militante de direitos humanos presente em diversos atos pela cidade. Foto: Vinícius Ribeiro

Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.

Na década de 1990, no Morro da Coroa, no bairro do Catumbi, Centro, um caso de violência policial mudou a vida de Luciano Norberto dos Santos, mais conhecido como Cuca. Na época, ele era dirigente da Associação de Moradores do Morro da Coroa quando um jovem de 15 anos foi morto pela Polícia Militar (PMERJ). 

“O primeiro caso que aconteceu lá no Morro da Coroa onde eu moro foi o caso da Dilamar. O filho dela foi morto com 15 anos. Na época, eu era o diretor da Associação de Moradores. Esse caso repercutiu muito, porque o rapaz era estudante e estava com 15 anos de idade e foi morto com um tiro na testa por um sargento da Polícia Militar. Na época, ele forjou o garoto, botou um pouquinho de droga e uma arma, o ‘kit bandido’, e tentou incriminar o menino. E isso aí revoltou a gente. Nos mobilizamos e fomos para a luta!” Cuca

O que Cuca não esperava era que, anos depois, seu próprio irmão, Josenildo dos Santos, na época com 42 anos, também seria morto a tiros pela mesma polícia durante uma operação policial. No dia 2 de abril de 2009, Josenildo saiu da oficina mecânica onde trabalhava como lanterneiro em direção a um bar no Morro da Coroa para comprar cigarros, quando foi alvejado com tiros de fuzil na nuca durante uma operação policial. Desde então, o foco principal de luta de Cuca tem sido obter justiça por seu irmão.

Protesto de vítimas de violência de Estado em 25/09/24 pedindo justiça por William e Samuel do Chapadão. Foto: Vinícius Ribeiro
Protesto de vítimas de violência de Estado em 25/09/24 pedindo justiça por William e Samuel do Chapadão. Foto: Vinícius Ribeiro

Haviam passado 14 anos de espera quando, em 2023, os policiais que assassinaram seu irmão fossem condenados a 54 anos de prisão. De acordo com o Ministério Público do Rio (MP-RJ), os policiais agiram com “violência desnecessária, sem que tivesse sido comprovado que os mesmos teriam sofrido ataque durante a incursão”. A mobilização dos familiares das vítimas foi fundamental para esse desfecho. Cuca, que perdeu a mãe enquanto aguardava por justiça, disse:

“Antes da minha mãe morrer, eu prometi a ela que a gente não ia descansar enquanto esse caso não fosse esclarecido e a gente levasse os culpados para serem responsabilizados. E ela sempre falou para a gente continuar apoiando a luta das mães de vítimas do Estado, porque, assim como aconteceu com meu irmão, acontece com muitos!”

Cuca com monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares ao fundo. Foto: Vinícius Ribeiro
Cuca com monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares ao fundo. Foto: Vinícius Ribeiro

Cuca: Um Defensor dos Direitos Humanos

Cuca é um homem calmo, tranquilo e humilde, com uma força e resiliência inigualáveis. Um defensor dos direitos humanos, que, ao longo dos anos, se engajou em diferentes causas. É comum encontrá-lo nas ruas em diferentes atos, sejam em apoio às mulheres, à causa LGBTQIAPN+, contra o racismo ou na luta por moradia. Cuca sempre está lá.

Cuca segura uma faixa que pede a liberdade para a Palestina em ato no Centro do Rio de Janeiro. Foto: Vinícius Ribeiro
Cuca segura uma faixa que pede a liberdade para a Palestina em ato no Centro do Rio de Janeiro. Foto: Vinícius Ribeiro

Em 2018, um grupo de militantes LGBTQIAPN+ se organizou para ocupar o antigo prédio do Automóvel Clube na Lapa, Centro do Rio. O objetivo da ocupação era fazer com que a prefeitura cedesse o imóvel que estava abandonado, para acolher pessoas assistidas pela Casa Nem, no acolhimento de pessoas LGBTQIAPN+ e em situação de vulnerabilidade.

Cuca chegou no local com mais dois amigos arquitetos que queriam apoiar o movimento e, durante essa visita, a chegada da Guarda Municipal e da Polícia Militar fez com que Cuca ficasse na ocupação e pedisse apoio de advogados defensores dos direitos humanos. Naquele momento, alguns jornalistas independentes que acompanharam o processo de ocupação do espaço não tinham mais como sair da ocupação. Porém, Cuca avistou uma janela e, com o auxílio de uma escada, ajudou na saída dos profissionais do prédio. Cuca ficou na ocupação por mais duas semanas, até o último dia da ocupação. Ele ajudou na negociação para que não acontecesse nenhuma agressão aos ocupantes.

“Chegaram lá já com o mandato oficial que é para tirar mesmo todo mundo, entendeu? Eles chegaram às 4 horas, mas não entraram. Ficaram lá fora na porta até que deu 6h30. Aí, já começaram a bater na porta. Aí, eu fui lá, atendi eles.” — Cuca

Em 2019, Cuca foi eleito conselheiro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos (CEDDH-RJ) e teve dois mandatos de dois anos cada. Como conselheiro do CEDDH-RJ, atuou em centenas de casos de violações de direitos humanos.

“Cuca é uma das principais referências de luta de direitos humanos no estado do Rio de Janeiro… ele, mesmo sendo vítima da violência policial, quando foi conselheiro de defesa dos direitos humanos, fazia a defesa dos direitos humanos de forma indiscriminada para todas as pessoas. Inclusive, fui com ele a alguns alojamentos da Polícia Militar para averiguar denúncias de violações de direitos humanos sofridas por esses militares [em seus batalhões]. Militares que tiveram que dormir em colchões com infestação de percevejo, em alojamentos absolutamente degradantes, sem banheiros ou vestiários, com policiais femininas tendo que dividir vestiário com policiais masculinos, ou seja, flagrantes situações onde esses policiais tinham seus direitos humanos violados… Então, ele é uma figura que é uma grande referência no estado do Rio de Janeiro.” — Rodrigo Mondego (advogado popular, ex-presidente do CEDDH-RJ)

Atuação no Movimento de Familiares e Vítimas de Violência de Estado

Cuca está presente e ajuda a articular diversos atos dos movimentos de vítimas de violência de Estado, desde atos populares até reuniões com órgãos do Estado, como a Defensoria Pública ou o Ministério Público.

Vítimas de violência de Estado no MPF. Foto: Vinícius Ribeiro
Vítimas de violência de Estado no MPF. Foto: Vinícius Ribeiro

Em uma de suas atuações, em 19 de setembro de 2023, ajudou os coletivos de mulheres Pão e Rosas e Mães de Manguinhos na organização do ato justiça para as vítimas de violência do Estado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), no qual foram entregues dezenas de placas em homenagem às vítimas de violência de Estado. O evento reuniu mais de 300 pessoas no auditório da universidade, com dezenas de familiares de vítimas da violência do Estado.

Ato de familiares de vítimas de violência de Estado na Uerj. Foto: Vinícius Ribeiro
Ato de familiares de vítimas de violência de Estado na Uerj. Foto: Vinícius Ribeiro

De forma bastante precisa, a Vereadora Monica Cunha, mãe de Rafael da Silva Cunha que também foi vítima de Estado—jovem que cumpria medidas socioeducativas e que foi morto aos 20 anos por um policial civil em dezembro de 2006—destacou que as vítimas e familiares ali presentes também eram vítimas do racismo estrutural. É importante lembrar que Monica Cunha é a fundadora da Comissão Especial de Combate ao Racismo, que, posteriormente, tornou-se permanente.

Ana Paula Oliveira também é mãe de vítima de Estado. Seu filho Johnathan de Oliveira Lima, de apenas 19 anos, foi assassinado pela Polícia Militar com um tiro disparado por um agente da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). O jovem voltava da casa de sua avó na favela de Manguinhos. Ela comenta que Cuca sempre se fez presente ao longo de sua luta.

“Eu lembro que conheci o Cuca já no movimento de mães e familiares [de vítimas de violência de Estado], ele fazendo parte da Rede Contra a Violência e sempre com esse jeito dele, acolhendo todo mundo, querendo ouvir cada familiar, cada pessoa, dando a mão para todo mundo, sempre jogando a gente para cima. É um grande companheiro de luta, é uma pessoa com a qual eu me orgulho caminhar ao lado nessa luta. Porque a nossa luta não é uma luta fácil e ouvir o Cuca falando da perda do irmão dele e em consequência da perda desse irmão, falar do adoecimento da mãe dele e da perda da mãe também, me leva a refletir um pouco sobre a minha filha mesmo, sobre o papel dos irmãos que perdem seus irmãos por conta dessa violência do Estado. Para além do cuidado com a gente, ele é uma pessoa muito querida no meio da luta, muito respeitada e admirada também, pelo tanto que ele se dedica a essa luta.” — Ana Paula Oliveira (fundadora de Mães de Manguinhos, mãe vítima de violência, defensora de direitos humanos e pedagoga)

Ana Paula Oliveira, fundadora de Mães de Manguinhos, defensora dos direitos humanos e pedagoga, ao lado de Cuca. Foto: Vinícius Ribeiro
Ana Paula Oliveira, fundadora de Mães de Manguinhos, defensora dos direitos humanos e pedagoga, ao lado de Cuca. Foto: Vinícius Ribeiro

A atuação incansável de Cuca nos movimentos de familiares de vítimas de violência do Estado é prova de como a luta por justiça muda a vida. Sua postura destemida e solidária, sempre apoiando e oferecendo um ombro amigo num momento de dor e de luto, o fez ser respeitado e admirado em vários aspectos pelos defensores dos direitos humanos.

“Cuca é um defensor de direitos humanos incansável. Ele tem lutado ao longo de todos esses anos não só pelo caso que vitimou o irmão dele, mas tem lutado também em apoio a outros familiares, em especial às mães que perderam seus filhos para a violência do Estado. Ele tem sido apoio fundamental para muitas famílias, acompanha de perto os casos e participa dos atos, das reuniões, das construções de políticas públicas, enfim, tendo no horizonte da sua atuação tanto o protesto, a reivindicação, a manifestação, mas também a participação de coletivos e espaços de construção de acesso a direitos.” — Guilherme Pimentel (ex-ouvidor geral da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e atual coordenador técnico da Rede de Apoio e Atenção às Vítimas de Violência do Estado – RAAVE)

Protesto de vítimas de violência de Estado. Foto: Vinícius Ribeiro
Protesto de vítimas de violência de Estado. Foto: Vinícius Ribeiro

Cuca é a personificação do luto à luta. É a manifestação talvez menos esperada causada pela violência de Estado. Assim como ele, figuras como Monica Cunha, Ana Paula e centenas de outros familiares de vítimas, mesmo em momentos de dor, encontram na defesa dos direitos humanos um motivo para seguir lutando pela memória e legado de seus familiares, assassinados pelo Estado.

Sobre os autores:

Vinícius Ribeiro é nascido e criado na Zona Oeste, entre a Estrada da Posse, em Santíssimo, e o Barata, em Realengo. Atualmente, mora na Mangueira. Jornalista, cineasta e fotógrafo, é membro do Coletivo Fotoguerrilha. Assina direção e roteiro dos curtas SobreviverDame CandoleSob o Mesmo TetoEntregadores e On: Uberização o Que Você Não Vê. Atualmente, está em um projeto sobre camelôs no Rio de Janeiro.

Lucas Novello é graduado em jornalismo pela Universidade Estácio de Sá, fotógrafo e filmmaker. Criado no Morro da Babilônia, é membro do Coletivo Fotoguerrilha, onde atua com comunicação popular e fotojornalismo, cobrindo manifestações, ocupações culturais, movimentos sociais e lutas por moradia. Em 2022, foi diretor de fotografia e editor do documentário curta-metragem “ON: Uberização – O Que Você Não Vê”, com direção de Vinícius Ribeiro. Além disso, atua como filmmaker freelancer em diversos segmentos do mercado audiovisual.


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