No dia 8 de janeiro de 2025, moradores da comunidade de Santa Luzia, situada entre os bairros de Vargem Pequena e Vargem Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foram surpreendidos com o prazo de dez dias para desocupação de seus imóveis. O aviso foi feito pela Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) da cidade do Rio de Janeiro através de cartazes colados ao longo da comunidade, sem nenhuma notificação prévia ou discussão com os moradores.
Elisângela Dias*, de 24 anos, mãe de Luísa e Breno*, espera seu terceiro filho e conta o quanto essa situação é crítica para sua família, justamente num momento tão delicado:
“Eu fiquei nervosíssima. Tô muito nervosa e desesperada por causa dos meus filhos, por causa do psicológico do meu filho e da minha filha. Eles estudam em escola pública, ela só tem um rim, faz tratamento no Fundão. Quando houve a Covid eu morava de favor, então, eu trabalhei, juntei dinheiro pra pagar. Paguei meu pedacinho que alguém que já tinha posse me vendeu, aí beleza. Eu fiz isso para quê, para trazer minhas crianças pra ter uma vida digna, porque eles (governo) querem a criança na escola, eles querem a crianças com a carteira de vacinação. Se você olhar a carteira de vacinação deles tá tudo ok, tá tudo em dia, mas aí vai, aparece uma notícia dessa de repente, porque quem conhece a SEOP sabe que ela entra pra tirar. Pra onde eu vou com as crianças? Eu nem daqui eu sou, sou de Minas Gerais, Belo Horizonte. Eles são cariocas. Eu vou mudar toda a vida deles, tudo que eles fazem, estudo, creche, amigos e vou pra onde com eles? Não existe isso. Eu tô com 36 semanas (de gestação), tô quase parindo. Eu posso parir, chegar em casa e não ter casa, como que pode isso? Como que eu monto o berço se eu nem sei se vou poder ficar aqui?”
Da mesma forma, Marluce Santos*, 48, moradora da comunidade Santa Luzia há décadas, sofre com o desrespeito da Prefeitura e com a possibilidade de ser removida:
“Nós estamos arrasados, estamos numa situação de tristeza. É uma comunidade com muitas pessoas, todo mundo pobre e estamos numa situação que precisamos de ajuda e nós não estamos tendo. Eu moro com meus filhos, com sete crianças dentro de casa e o que nós precisamos não estamos tendo… Se tu olhar, tu vai ver que é um lugar muito humilde. Moro aqui há 38 anos, tenho 48. Passei por muita coisa aqui, para, agora, chegar essa notícia de que a comunidade tem dias para sair!”
A Prefeitura se baseia no argumento de que a comunidade ocupa uma faixa marginal de proteção (FMP), áreas de terra localizadas às margens de corpos d’água que são destinadas à proteção ambiental, bem como à conservação de nascentes, rios, lagos, lagoas e reservatórios.
Ao contrário do que afirma o Art. 285, da Lei Complementar nº 270/2024, utilizada na notificação de despejo, os moradores de Santa Luzia ocupam uma área formada no período colonial, onde terras de domínio português foram cedidas a trabalhadores da região, majoritariamente descendentes de quilombolas e migrantes nordestinos, agricultores de subsistência à beira do Canal do Portelo, muito antes das leis mais recentes. Além disso, a comunidade já se encontra registrada no Instituto de Cartografia e Terras do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) desde 1992 e é reconhecida como Área Especial de Interesse Social (AEIS) desde 2006.
A identidade de Santa Luzia surge oficialmente em 1984, quando um bombeiro militar, identificado como Seu Aroldo, cria o CNPJ da associação de moradores, se tornando uma liderança local da época. E, ao decorrer de sua história, Santa Luzia foi atravessada por diversos embates estimulados por interesses fundiários.
Início dos Conflitos
Em 2006, moradores de Santa Luzia realizaram uma mobilização coletiva através de uma assembleia, nomeada de Movimento União Popular (MUP) que rendeu a inclusão de uma declaração feita por 29 comunidades, como AEIS no PEU (Plano de Estruturação Urbana) das Vargens, que, naquela época, estava sendo elaborado justamente para abrir possibilidades ao mercado imobiliário.
Essa ação impediu que no ano seguinte, em 2007, no governo do ex-Prefeito César Maia, a preparação para os Jogos Pan-Americanos do Rio removesse os moradores. Durante a gestão de César Maia, houve a proposta da implantação do projeto Veneza Carioca, transformando todos os rios e canais das Vargens em espelhos d’água navegáveis, onde haveriam resorts e mansões. Este projeto foi resgatado em 2024 pelo Consórcio Lagunar Marítimo, no entanto, ainda sem previsão de retomada.
Outra vez, em julho de 2020, durante a pior fase da pandemia do coronavírus, técnicos da Fundação Rio Águas, escoltados pela tropa de choque da Guarda Municipal e pela Polícia Militar, entregaram notificações com prazo de 30 dias para despejo, alegando se tratar de uma ocupação de área sensível. Entretanto, uma liminar conquistada junto à Defensoria Pública impediu a remoção dos moradores.
Silvana Medeiros*, 53, mãe de Antônio*, 15, conta os impactos emocionais e psicológicos da notificação e sua preocupação de que seu filho esteja sozinho em casa diante do que pode acontecer:
“Ninguém tem para onde ir. Então, isso tá deixando todo mundo sem dormir, entendeu? Eles não ofereceram, assim, ‘vocês querem uma casa?’ Não! Então, quer dizer, como é que você sai da sua casa com filho? Você vai pra onde? Pra rua? Sem condições!” Não tenho como pagar um aluguel, nem tenho emprego, eu trabalho por conta própria. Como que eu vou fazer isso? Só meu marido é assalariado, então, eu não acho justo isso. E é com a comunidade inteira, não só comigo. Eles tão apertando a gente pra gente sair. Tá muito difícil para nós, muito difícil mesmo. Aí, a gente não sabe o que fazer. As vezes eu saio pra trabalhar e deixo meu filho em casa. Aí fico: ‘como é que tá aí? Chegou alguém aí? Se chegar e tocar a campainha, você não atende’, porque é de menor, né? Não vai atender. ‘Não mãe, tá tudo bem.’ Eu fico como? Com o nervo à flor da pele! Então, a gente dorme naquele medo, né? Quando toca a campainha, eu já fico ‘Será que vão tirar a gente’?”
A gestão municipal do Prefeito Eduardo Paes iniciada em 2020 adotou um processo dito para ordenar o mercado imobiliário na UEP (Unidade Espacial de Planejamento) com a criação de uma área de proteção ambiental denominada APA do Sertão Carioca (ou UCA das Vargens). Apesar da grande empolgação dos moradores com a possibilidade de ter na região uma APA, a sua área territorial foi diminuída em 40% pelo Decreto 49.695/21, em cerca de 400 hectares, sem qualquer justificativa científica.
Logo em seguida à criação da APA, o prefeito publicou dois decretos, 50.411 de 18 de março de 2022, que estabelece a delimitação da área de proteção, aumentando a superfície da APA, e 50.412 de 18 de março de 2022, que traça o zoneamento da APA. Ambos se constituem como normas de política urbana que não passaram pelo legislativo municipal, desrespeitando os incisos I, II, III e IV, do Artigo 2º do Estatuto da Cidade:
Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente.
O Decreto 50.412/22 permite, por exemplo, construções de prédios de seis pavimentos com a possibilidade de chegar até oito ou nove em áreas consideradas degradadas. Também será possível a construção isolada de casas ou em conjuntos tipo vilas nas encostas do Parque Estadual da Pedra Branca, com licenças para desmatamento e corte de árvores.
O Prefeito Eduardo Paes, em reunião na Associação de Moradores do Recreio dos Bandeirantes, em 18 de junho de 2022, anunciou ter licenciado um grande empreendimento na forma de loteamento com construção de casas na fronteira da APA do Sertão Carioca, numa extensão que, segundo ele, corresponde à metade da área do bairro do Leblon. Esse projeto, no entanto, não obteve licenciamento ambiental, que é concedido pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, tampouco teve seu impacto avaliado pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão licenciador a nível estadual, ou pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a nível federal.
Composição Atual de Santa Luzia
Atualmente, a comunidade está situada entre o Parque Estadual da Pedra Branca e o Canal do Portelo, na Zona Oeste, sendo dividida entre os bairros de Vargem Grande e Vargem Pequena. A comunidade ocupa uma faixa de terra de frente para o Canal do Portelo com aproximadamente quatro quilômetros de extensão. Santa Luzia possui uma única rua, a Professor Silvio Elias, que corta a comunidade exatamente ao meio. Essa rua é dividida entre o Lado A, de dois quilômetros de extensão, e o Lado B, de 1,8 km. Ao todo, abriga mais de 7.500 pessoas, 1.500 famílias, além da Associação de Moradores de Santa Luzia, posicionada entre os dois lados.
A remoção tem como objetivo construir uma Avenida à beira do Canal do Portelo na região hoje ocupada pela comunidade. O plano é que a avenida ligue a Rua Drumontina à Rua Benvindo de Novaes, sendo uma paralela à Estrada dos Bandeirantes.
De acordo com os moradores, a única resposta apresentada pela Prefeitura foi o aluguel social, no valor de R$400,00 durante 3 meses, uma ajuda de custo irrisória e vergonhosa, ainda mais no caso de uma comunidade de décadas, com historia claramente registrada. Para todos os entrevistados para essa matéria, a permanência é o caminho correto, mas, caso haja a desapropriação, que sejam pagas indenizações compatíveis com o valor da terra e os investimentos dos moradores em seus terrenos e imóveis. É o que afirmam moradores como Leonel Filho*, 40, morador da comunidade há dez anos:
“Eu tô me sentindo muito constrangido. A gente comprou o terreno, construiu e agora estamos correndo o risco de perder tudo que a gente tem. Temos mulher, criança pequena. De repente, a Prefeitura chega notificando todo mundo… Ameaçando tirar, demolir nossa casa em dez dias. É muito difícil isso. Sem uma segurança da gente receber alguma indenização. Na minha casa, moramos em quatro pessoas: eu, minha esposa, uma filha grávida e um neto… Acho que deveriam legalizar tudo. Devia fazer isso e deixar a gente em paz. Nós queremos é ficar em paz, tranquilos. Já tem dez anos que moro aqui nessa área e tudo que eu tinha eu gastei ali. Eu acho que eles deveriam legalizar. É direito da gente ter o que é nosso. A gente não invadiu, compramos o terreno e eu gosto daqui. É um lugar tranquilo, sossegado. Pra mim, esse lugar é tudo!”
Rose Batista*, 24, mora com a filha Isabel* de quatro anos e o companheiro e compartilha sua indignação com a investida mais recente da Prefeitura contra a comunidade Santa Luzia:
“Eu acho que eles deviam tratar a gente igual ser humano e não chegar com um aviso na tua porta e bá: ‘você perdeu sua casa’, que você construiu com seu suor, com muita dificuldade. Até porque todo mundo [aqui] tem muita dificuldade para tudo. Então, alguém chegar e ‘vocês têm dez dias pra tirar tudo’, você acha que isso realmente vai acontecer… Na hora você só pensa: ‘para onde eu vou?’ Minhas coisas, minha filha, minha casa… É bem triste. Eu acho que o mínimo que qualquer pessoa ali quer é outro lugar para morar, pra você poder começar de novo, do zero. Por mais que seja do zero, dá uma condição pra pessoa sair dali. Não tipo: ‘pega tudo que você tem e você se vira’. Porque ali é tudo que as pessoas têm, na verdade.”
Moradores Buscam Apoio na Defensoria Pública
No dia 13 de janeiro, cerca de 60 moradores se reuniram no Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUTH) com os defensores Luis Gustavo e Paloma Lamego. Depois do encontro, a mobilização seguiu em direção à Câmara dos Vereadores, contando com o apoio do Vereador Rodrigo Vizeu, e foi encerrada com uma reunião restrita entre lideranças da Santa Luzia e representantes da SEOP.
De acordo com Luis Gustavo, defensor público, há um contrassenso municipal quanto ao tratamento e abordagem com a área:
“A comunidade foi notificada porque haveriam construções na faixa marginal de proteção, que a lei de fato proíbe, entretanto, como se trata de uma área de especial interesse social, cabe ao município flexibilizar as regras urbanísticas. Não adianta o município reconhecer a área como AEIS e notificar a comunidade inteira, objetivando removê-la, sem oferecer nenhum tipo de solução habitacional. São mais de 1.000 famílias. É uma área destinada à moradia de pessoas hipossuficientes, uma área na qual ela pode flexibilizar as regras urbanísticas e não faz. Existe uma discussão processual já em curso, a Defensoria tá acompanhando. A intenção nossa é que seja reconhecido o direito a realização fundiária da comunidade.”
O maior desejo dos moradores da comunidade Santa Luzia para o ano novo é dignidade, sentimento resumido através da fala da moradora Marta Oliveira*:
“Todos nós temos direito ao mínimo de dignidade. A partir do momento que cada morador recebe uma notificação—‘Sai do teu imóvel em dez dias e te vira’—falta o mínimo que é dignidade. A cada quatro anos, é essa mesma história. ‘A gente vai tirar, vai tirar, vai tirar [remover a comunidade]’ e com as piores desculpas possíveis. ‘É uma área que vai ter que desapropriar por causa do ambiente’, tá bom, traz o laudo, a análise que foi feita para dizer que a comunidade não pode existir aqui. Hoje, a comunidade é completamente diferente porque os próprios moradores fizeram o que o poder público não fez [para desenvolver moradia acessível]… aí eles vêm agora querendo tirar as famílias, algumas que moram aqui há mais de 60 anos, para construir outros imóveis. Se eu não posso morar nesse espaço por questões ambientais, porque pode construir condomínios aqui no mesmo lugar? Só aqui tem mais de cinco condomínios considerados de luxo. Então se vai tirar a comunidade, tem que tirar os condomínios de luxo também. É muito incoerente essa notificação: ‘Agora, sai’. Não! Não é ‘sai’. Tem que conversar! O Estado tem que [nos] proteger, tem que pegar cada casinha ali e conversar com os donos, ver o que é seu de direito: ‘você mora aqui há tantos anos, o seu imóvel vale X, vale Y’. É organizar e não bagunçar.”
*Os nomes de moradores no texto são fictícios para preservar a privacidade e segurança dos mesmos.