Esta matéria, escrita por Isaura Bredariol, analista ambiental do ICMBio que atua na equipe socioambiental do Parque Nacional da Tijuca, faz parte de uma série gerada por uma parceria com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre justiça ambiental nas favelas fluminenses.
Floresta da Tijuca, cercada por condomínios e mansões de luxo. Poderia ser essa a ameaça anunciada na reportagem acima, de O Globo, publicada sábado, 14 de dezembro de 2024. Afinal, a expansão urbana é um desafio na conservação de florestas urbanas em todo o mundo, independentemente da presença de favelas. Quantas mansões não foram autuadas e embargadas pelo ICMBio e, antes, pelo IBAMA? Quantos condomínios prediais não suprimiram florestas do entorno do Parque Nacional da Tijuca, reduzindo o habitat das espécies que ele abriga e acentuando o efeito de borda da cidade sobre a floresta? O que dizer, então, das expansões da Rua Candido Benício, em Jacarepaguá, que, asfalto vem, asfalto vai, seguem historicamente ignorando o projeto de corredor de fauna que visava manter o fluxo da fauna entre o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca, fundamental para garantir a viabilidade genética das populações nativas do Maciço da Tijuca? O que dizer das linhas de transmissão de eletricidade que cortam todo o Parque e mantém um enorme corredor de espécies exóticas invasoras, altamente combustíveis, como ameaça crescente, face às mudanças climáticas? Obras de infraestrutura urbanas, habitações de classe baixa, média e alta, torres de telecomunicações, poluição industrial e veicular… a lista de ameaças à Floresta da Tijuca é vasta e diversa.
Mas, como sempre, a notícia de ameaça é a favela. A pobreza, mais uma vez, é a culpada pelas ameaças ambientais e de segurança. Sim, existe crime organizado nas favelas. Sim, existe crime organizado em coberturas de Copacabana e condomínios da Barra da Tijuca. Sim, existiu tráfico de drogas na comitiva presidencial de Bolsonaro em avião da FAB. Existiu tráfico de drogas em helicóptero de senador, na fazenda da família Neves. É possível comprar drogas nas areias de Ipanema e homenagear milicianos no Congresso Nacional. Mas, no mapa do cinturão do crime, figuram as favelas.
Como a lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação preconiza, o Parque Nacional da Tijuca conta com uma gestão participativa. Das 45 representações no seu Conselho Consultivo, somente 5 são lideranças de favelas. Considerando que a atividade é voluntária e que as reuniões atendem ao horário de trabalho das representações de órgãos públicos, parece notável que dediquem suas horas, entre tantos desafios, à gestão da Unidade de Conservação. Ainda assim, é insuficiente em um parque encravado na matriz urbana do Rio de Janeiro. Por isso, parte da pequena equipe de que o ICMBio dispõe para a área se dedica à relação entre o órgão e as favelas vizinhas.
O Programa Favela-Parque, obrigação contratual da concessão do Trem do Corcovado, apoia iniciativas socioambientais no Guararapes, Cerro Corá e Morro dos Prazeres. Todos os anos voluntários de projetos comunitários participam de formações e recebem recursos para investir em atividades educativas, culturais, esportivas e ambientais, sem remuneração de pessoal. As inscrições para 2025, inclusive, estão abertas no momento. O Programa de Responsabilidade Socioambiental é custeado por obrigação contratual da concessionária Paineiras-Corcovado e atua com uma incubadora de iniciativas socioambientais e de Turismo de Base Comunitária no Santa Marta, Guararapes e Cerro Corá. Em 2024, foram 15 projetos desenvolvidos por moradores que se dedicam intensamente a melhorar suas comunidades sem qualquer remuneração pessoal.
Em 2023, Isis Lopes, uma aluna da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) participante do Programa PIBIC/ICMBio, sob orientação de uma analista ambiental e de pesquisadores da Refauna, com o apoio de alguns voluntários, realizou um levantamento não exaustivo de instituições e iniciativas comunitárias em favelas da Grande Tijuca localizadas no entorno imediato do parque. Em apenas dois meses, ela contatou 25 organizações, algumas formalizadas e com algum tipo de apoio financeiro, outras totalmente voluntárias e realizadas com recursos próprios. A amostra é mínima perto do que se conhece ao circular pelas favelas do Rio de Janeiro, mas confirma uma organização social pujante, feita por moradores que trabalham, estudam, cuidam da família e, ainda assim, encontram tempo para se dedicar ao que os governos não fazem em territórios historicamente esquecidos pelas políticas públicas. O mesmo estudo realizou cerca de uma centena de entrevistas estruturadas com moradores dessas favelas. A maioria dos entrevistados frequenta a floresta para recreação. A ampla maioria identifica mais pontos positivos em viver próximo à mata, bem como vantagens que a floresta confere à cidade, como o clima e a oportunidade de contato com a natureza.
Em 2024, uma parceria entre ICMBio, UERJ, Paineiras-Corcovado, Cooperativa Anfitriões do Parque e Coletivo de Guias do Santa Marta realizou o Seminário Favela & Floresta Expor Tour, que contou com um dia de debates, uma feira de turismo de base comunitária e um roteiro de visita turística. Representantes de oito comunidades localizadas no entorno de unidades de conservação cariocas compartilharam suas experiências e não deixaram qualquer dúvida restar sobre o valor econômico, cultural e ambiental da visitação turística amplamente promovida pelas favelas. Apesar de dados sobre o quantitativo de visitantes ainda não estarem disponíveis, associações de moradores da Rocinha e TurisRio acabaram de lançar um aplicativo para monitorar o turismo, tamanha a proporção que a atividade ganhou na comunidade.
Com tantos exemplos de iniciativas que contribuem nas mais diversas temáticas, com diferentes públicos, para a construção de uma cidade mais justa, mais verde e mais segura para todo mundo, só podemos concluir que a realidade no dia a dia difere bastante do sangue que escorre das páginas dos jornais. As favelas querem, sim aparecer nos mapas e nas notícias. Mas o que têm a mostrar é muita iniciativa, organização comunitária, dedicação ao bem comum, preocupação com a sustentabilidade e a valorização da natureza.