Esta é a nossa mais recente matéria de uma série gerada por uma parceria, com o Digital Brazil Project do Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos e justiça socioambiental em favelas.
No terceiro Grande Encontro anual da Rede Favela Sustentável (RFS)*, o Grupo de Trabalho de Memória e Cultura lançou um roteiro único para a riqueza cultural das favelas, periferias e quilombos da cidade: O Guia de Museus e Memórias da Rede Favela Sustentável. O Guia destaca histórias que foram forçosamente reprimidas e é uma referência para quem deseja se afastar da museologia conservadora e suas evocações unidimensionais do passado, ou visões superficiais e estigmatizantes das favelas.
“Esse Guia nos dá visibilidade, quando a gente é geralmente marginalizado. Mostra os saberes da favela para os outros. É importante que cada favelado conte a sua própria história”, disse Maria da Penha, do Museu das Remoções da Vila Autódromo, que também escreveu o prefácio do Guia, onde se lê: “Muito já se perdeu das memórias e histórias de comunidades, favelas, guetos e periferias. O Brasil não teve o cuidado e a atenção
devida em preservar na íntegra a memória dos povos originários, dos negros e da população pobre, que sempre colaboraram na construção e no desenvolvimento desse país”.
Além da introdução de Maria da Penha, o Guia inclui reflexões escritas coletivamente pelo GT de Memória e Cultura da RFS, sobre temas como: “Porque a existência de Museus de Favela” e “Como museus comunitários geram pertencimento e identidade?” No centro do Guia está contido o mapa das iniciativas de preservação da memória, que também pode ser acessado no Google Maps aqui. Por fim, no Guia, cada iniciativa tem um espaço próprio, que contém uma breve introdução do museu/iniciativa, informações de contato, o endereço e o ano em que a iniciativa foi fundada. Devido à natureza histórica do Guia, as iniciativas são organizadas em ordem cronológica, por ano de fundação.
Um esforço de pesquisa de um ano, que começou como uma discussão dentro do GT, identificou 26 museus comunitários, centros de pesquisa, galerias de arte e locais históricos na Grande Rio, que vão desde quilombos fundados há séculos até um museu móvel inaugurado em 2019, e incluem, mas não se limitam a, projetos que participam da RFS. Enquanto algumas das iniciativas contam com locais físicos, outras assumem a forma de tours ou desfiles de carnaval. O que os projetos têm em comum, segundo os textos elaborados conjuntamente pelo Guia, é que eles visam que “e todos tenham acesso ao entretenimento e a educação proporcionados pelos museus físicos”, e contam a história de uma perspectiva local, “deixando claro que não aceitaremos que nos seja imposta uma história e uma memória que não são nossas”.
As iniciativas entrelaçam elementos da arte local, histórias de moradores, métodos de convivência harmoniosa com a natureza e resistência política, como explicado em um ensaio como a “reafirmação de territorialidade frente à injustiça socioespacial, à tendência de homogeneidade do processo de globalização e à liquidez efêmera da pós-modernidade”, de acordo com os autores do Guia. Para eles, as iniciativas do Guia mostram a “função libertadora da memória”. Refletindo sobre os desafios da “falta de divulgação, e, consequentemente, falta de público em geral”, o Guia serve como um convite para visitas, diálogo e apoio.
O Guia inclui iniciativas culturais cujos eixos centrais estão ligados à história negra, como o Quilombo Pedra do Sal, um dos primeiros quilombos urbanos do Brasil; resistência indígena, como a Universidade Indígena Aldeia Maracanã; e identidades urbanas mais contemporâneas como o Museu do Graffiti e o Meeting of Favela, ambos com foco na arte de rua. Ao mesmo tempo, os museus representam a diversidade de pessoas que ao longo dos anos passaram pelos seus territórios e fizeram deles seus lares, valorizando “a autonomia, a construção coletiva, o envolvimento dos moradores e moradoras que são especialistas e pertencem de fato à aqueles territórios”, escrevem os autores do Guia.
O evento de lançamento, no dia 7 de novembro, contou com a participação de Maria da Penha, do Museu das Remoções, José Renato Pimenta do Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), Luiz Antônio de Oliveira do Museu da Maré, Francisco Valdean do Museu da Imagem Itinerante da Maré (MIIM) e Tereza Onã do Núcleo de Memória e Identidade da Maré (NUMIM). Eles refletiram sobre as filosofias que orientam suas iniciativas e os objetivos mais amplos por trás da criação coletiva do Guia.
“Memória é um instrumento importante para essa transformação que a gente tanto deseja a partir da base”, disse Luiz Antônio. Ao criar um museu dedicado à cultura e à história local, ele disse, “você quebra esses estigmas que boa parte da sociedade imputou aos moradores de favela, ao longo de décadas na cidade do Rio de Janeiro. É um instrumento extremamente político”.
Como os Museus Comunitários Geram Pertencimento e Identidade
Muitas iniciativas do Guia de Museus e Memórias da Rede Favela Sustentável trabalham em estreita colaboração com moradores de favelas e periferias urbanas para documentar seu cotidiano, como a iniciativa Memórias de Cerro Corá, o Museu Sankofa na Rocinha e o Museu de Favela, um museu a céu aberto que busca valorizar a memória individual e coletiva dos moradores do Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo. Francisco Valdean, que exibe suas imagens por meio do seu museu itinerante, o MIIM, disse que esse tipo de trabalho mostra “que é possível… levar as pessoas a olharem as fotos, e a imaginarem as favelas, além das imagens já estabelecidas”. Romper o estigma e aumentar a compreensão é um princípio básico de muitos museus comunitários.
Muitas iniciativas do Guia possuem identidades ligadas à preservação da área ao entorno. A Associação Cultural Quilombo do Camorim realiza caminhadas históricas e ambientais, a Associação Cultural Quilombo do Sacopã é conhecida pela “preservação da mata e da biodiversidade”, destaca o Guia, enquanto no Quilombo Cafundá Astrogilda “o uso de plantas medicinais e as práticas de cuidado se configuram como dádivas herdadas dos antepassados”. O Ecomuseu de Sepetiba e o Ecomuseu Caceribú são especificamente focadas em seus ambientes naturais locais, assim como o Museu Vivo de São Bento, o primeiro ecomuseu da Baixada Fluminense.
Outros museus estão ligados às tradições musicais locais—e profundamente históricas, como a Casa do Jongo da Serrinha e o Museu Casa do Bumba Meu Boi em Movimento, em Bangu. Alguns se concentram mais nas artes visuais, como a Casa Amarela, na Providência. E muitos dos museus contam histórias das lutas políticas locais, como o Museu das Remoções e o Museu do Horto, “um instrumento de resistência na causa das famílias tradicionais do Horto Florestal, que hoje sofrem com a especulação imobiliária, apesar de dois séculos de história”.
Maria da Penha, no evento de lançamento, disse que o Museu das Remoções foi concebido a partir de 2015, pois a Vila Autódromo sofreu um processo de remoção amargo e prolongado. “[O Museu das Remoções] nasce com duas propostas: permanecer na comunidade, ser uma ferramenta de luta contra as remoções, mostrar que a gente queria ficar nesse espaço, que a gente amava esse espaço, que a gente tinha direito a esse território, que a gente estava sendo violando. E para guardar a memória, de quem foi, de quem morou nessa comunidade por tantos [anos]. E contar a nossa história”.
Maria da Penha concluiu, “Memória não se remove!”
A Importância dos Museus das Favelas para a Cidade
O Guia descreve que “O museu de favela, mais do que um lugar de memória e de exposição de acervo e coleções locais, pode e deve ser lócus de pesquisa e produção de conhecimento gerado a partir de um ponto de vista do oprimido, de um ponto de vista insurgente, de um ponto de vista decolonial, de onde emana a verdadeira busca por mudança”.
Essa perspectiva de mudança pode ser observada em museus do Guia, como o Instituto de Pesquisa a Memória Pretos Novos, que foi fundado em 2005 e “promove a reflexão sobre a escravidão e suas sequelas para os princípios de igualdade racial no Brasil”.
Muitos projetos culturais do Guia inovam ao questionar as noções tradicionais do que constitui um museu. O NOPH de Santa Cruz, embora tenha sido fundado originalmente para “valorizar o patrimônio material de Santa Cruz, principalmente as construções do período colonial, Jesuítas, e imperial”, disse José Renato Pimenta, evoluiu com “a virada da museológica em direção ao patrimônio imaterial, no final dos anos 1980, começo dos anos 1990”. Nos anos 1990, “o museu passa a ser o território do bairro e a população que nele habita, ou seja, isso coloca diretamente a favela dentro do NOPH… porque 70% do bairro de Santa Cruz é composto por favelas”.
MIIM, o “filho mais novo do catálogo”, disse Francisco, é um museu itinerante dentro de uma caixa de sapatos. Na caixa, Francisco armazena imagens em monóculos, negativos de fotos e fotos do dia a dia da Maré. Ele os mostra para as pessoas nas ruas da Maré e em eventos de bairro, como churrascos. “A parte inventiva desse museu vem desse contato com as pessoas”, disse ele. A pergunta das pessoas: “‘Isso é um museu?’ é uma questão de extrema relevância para a museologia e para a arte”.
Francisco disse que quando apresentou o MIIM numa escola da Vila do Pinheiro na Maré, “um aluno levantou e afirmou: ‘Minha vó é um museu!’, e eu perguntei: ‘Por que sua avó é um museu?’, e ele respondeu: ‘Porque minha vó é cheia de histórias, e ela arquiva o material fotográfico dela numa caixa também!'”
O Guia mostra que assim como uma caixa de sapatos pode servir de museu, também o pode fazer uma caminhada, como o Rolé dos Favelados e Rocinha Histórica, e um desfile de carnaval, como o Se Benze Que Dá da Maré.”
Os museus comunitários, disse Luiz Antônio de Oliveira do Museu da Maré, têm “muito a dialogar com os ditos museus tradicionais”.
A exposição de longa duração do Museu da Maré examina as diferentes fases da vida dos moradores da favela, como migração, trabalho, resistência e festividades. “A Memória é ao mesmo tempo encantadora, sensível, mas é poderosa, e forte. E pode ser bruta também. Em dados momentos que sejam necessários”, disse Luiz Antônio, acima de tudo, “a memória é social. Memória de vida é feita por pessoas, não por móveis e paredes”.
Além disso, comentando sobre a importância do intercâmbio, ele disse: “Não dá para a gente se fechar em um círculo de museus comunitários. A gente tem que trabalhar essa pedagogia”.
Esse diálogo entre museus tradicionais e favelados já está ocorrendo, como pode ser visto por intercâmbios e premiações como no caso do Museu de Favela, outra iniciativa no Guia, que recebeu duas homenagens em 2009 do Instituto Brasileiro de Museus: “pelo seu conceito de Museu Vivo e diferenciado de se pensar e fazer museus”.
Museus Comunitários Após a Pandemia
“O que a gente vislumbra dos museus comunitários pós-pandemia é justamente que os museus físicos se mantenham de pé e com as portas abertas”, está escrito no Guia. “Muitos deles, infelizmente, podem não voltar a abrir por causa da falta de recursos e de visitantes”.
Durante a pandemia, gestores de museus de favelas continuaram a divulgar seu trabalho por meio da participação em eventos e projetos digitais, como a compilação do próprio Guia. O MIIM, por exemplo, organizou uma exposição coletiva online de fotógrafos da Maré, enquanto o Museu da Maré oferece passeios virtuais para aqueles que contribuem com sua campanha de arrecadação de fundos.
Mas muitas das experiências dos museus não são as mesmas no mundo virtual e, por isso, seus organizadores estão se preparando para o momento em que seja seguro circular pela cidade novamente. O evento de lançamento do Guia foi encerrado com as palavras de Tereza Onã, do NUMIM, que faz parte da ONG Redes da Maré. O NUMIM ajudou a criar o Museu a Ceú Aberto da Maré, cuja inauguração oficial foi adiada pela pandemia. O museu é “um circuito que começa no Parque União e termina lá na Vila do Pinheiro”, disse Tereza, e é composto por azulejos com palavras dos moradores. Foi criado “conversando com moradores. Na verdade, é um conjunto de memórias de moradores, também de todas as faixas etárias”.
Tereza também faz parte das Griots da Maré do NUMIM, um grupo de contadoras de histórias negras. “Como uma mulher negra na diáspora, a oralidade é um alicerce para nossa população”, disse ela. Se a Maré é cheia de história que compõe a sua identidade, também é verdade que “a Maré é o futuro”.
O sentimento de esperança foi ecoado por outros participantes no evento de lançamento e em um dos textos finais do Guia: “Com dedicação e trabalho em conjunto com as nossas comunidades, esperamos que os museus de favelas possam receber mais trabalhos culturais, para que todos possam ter acesso a uma diversidade que apenas a favela tem a mostrar”.
Para que os museus continuem a florescer, afirmou Luiz Antônio no lançamento, “é importante estar nesses espaços coletivos. Tentar criar redes. Tentar criar caminhos para aglutinar essas ações tão importantes”.
“Museus das favelas, resistem!” Lê-se no subtítulo do cordel, escrito em conjunto, que fecha o Guia, e que conclui: “Cuidar, trocar, amar e divulgar—o Guia de Museus das Favelas está pronto para registrar narrativas de olhares periféricos”.
Leia o Guia de Museus e Memórias Aqui.
Assista ao Lançamento do Guia Aqui:
* A Rede Favela Sustentável e o RioOnWatch são projetos de Comunidades Catalisadoras (ComCat). A Rede Favela Sustentável é apoiada pela Fundação Heinrich Böll Brasil.