Mais de 1000 dias se passaram desde a noite tenebrosa de 14 de março de 2018, mas as respostas sobre a motivação do crime e o nome do mandante do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes não chegam. O crime completou 1.000 dias sem respostas, em 8 de dezembro—por ironia, Dia Nacional da Justiça, que serve para homenagear o Poder Judiciário brasileiro.
Com um suspiro forte, Anielle Franco, irmã de Marielle Franco, toma ar antes de falar. “1000 dias que a gente acorda todos os dias esperando por dias melhores e tentando ter um entendimento do por que a Mari… Porque a gente não entende…, são 1000 dias que eu acho que a gente nunca vai entender como arquitetaram um crime daquele tamanho e ninguém descobre nada”, desabafa a educadora, hoje, diretora do Instituto Marielle Franco.
Eleita com 46.502 votos, a socióloga e vereadora Marielle Franco foi executada em uma emboscada na região central do Rio. O motorista Anderson Gomes, que condizia o carro, também foi morto no atentado. Duas pessoas, Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, são apontadas como executores do crime, mas ainda não foram a julgamento. A previsão é que eles irão a júri popular, em 2021, mas a defesa deles entrou com recurso em setembro de 2020.
“1000 dias que a gente acorda todos os dias esperando por dias melhores.” – Anielle Franco
Para marcar a data de #1000DiasSemMarielle, o Instituto Marielle Franco e a Anistia Internacional Brasil, espalharam 1000 relógios na porta da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, que despertaram às 8h da manhã, fazendo um “alarmaço” para cobrar justiça às autoridades.
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“Já passou da hora de um dos maiores ataques a frágil democracia brasileira ser concluído”, diz post da ação #1000DiasSemResposta, que tomou as ruas—com faixas e cartazes colocados em diversas regiões da cidade do Rio, além de outros estados—e as redes sociais, com post de políticos, artistas, ativistas, admiradores e eleitores da vereadora.
1.000 dias da morte de Marielle Franco e queremos saber, quem mandou o vizinho do Bolsonaro matar Marielle?
Seguimos na luta.#1000DiasSemMarielle #1000DiasSemRespostas
QUEM MANDOU MATAR MARIELLE
Marielle pic.twitter.com/bpb8t73dyt— tody (@JooPaul83353862) December 9, 2020
Uma petição também foi criada para pressionar o governador interino do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, e o procurador-geral do Ministério Público, Eduardo Gussem, por justiça.
“É muito triste ver minha mãe, Luyara e meu pai do jeito que eles ficam quando falam dela. É muito triste estar agora neste momento de 1000 dias com meu pai internado também por Covid-19. Me dói muito. Queria muito ter o poder de tirar essa dor deles, sabe?”, afirma Anielle Franco, em depoimento à reportagem, sobre o marco dos #1000DiasSemReposta.
Cria da Maré, negra, socióloga, intelectual, ativista de direitos humanos, feminista e LGBTQIA+, Marielle foi executada 14 dias após ser nomeada como relatora da comissão formada para acompanhar a intervenção federal no Rio de Janeiro e quatro dias após denunciar a violência policial em Acari.
“Sigo aqui firme esperando por dias melhores… Sigo esperando que as pessoas possam ter o entendimento que a Mari era um corpo que representava muitas lutas, que não era apenas uma mulher de esquerda como eles falam, zombam e fazem memes”, desabafa Anielle Franco, colunista do portal UOL.
Professora de inglês e ex-jogadora de vôlei, Anielle ajudava a irmã a escrever seus discursos. Após a morte da Marielle, ela se viu obrigada a tomar a frente da luta não só em prol das vidas negras e faveladas, que um dia foi a principal bandeira defendida pela irmã, mas também pela integridade da imagem de Marielle.
Desde o primeiro dia da morte da vereadora, a família viu a história de vida pessoal e política de Marielle virar alvo de ataques nas redes sociais com a publicação de fake news e manipulação de imagens, que incitavam o ódio e xingamentos. Em uma espécie de “tribunal na internet”, ela era julgada a partir da veiculação de informações falsas. O ataque polarizou opiniões até sobre a relevância da investigação do crime, que ganhou repercussão internacional.
Para lutar por justiça, defender a memória e multiplicar o legado político da vereadora, formando um diálogo com a sociedade, a família criou o Instituto Marielle Franco. “Espero que daqui há algum tempo a sociedade entenda a nossa força e a nossa vontade de dialogar, de construir coletivamente, principalmente em prol das mulheres negras”, afirma Anielle.
Com a voz embargada, gaguejando um pouco e puxando mais ar para respirar, Fernanda Chaves, ex-assessora parlamentar e jornalista de 45 anos, aceitou falar da falta de respostas do Estado sobre quem mandou matar e por que mataram Marielle Franco. “Ninguém sequer foi julgado ainda. Você tem aí figuras que estão acusadas pelo assassinato, mas até agora não houve um julgamento. É aviltante isso! Continuamos sem resposta”, protesta.
Coordenadora de comunicação no mandato da vereadora, ela estava no carro no momento do atentado, mas escapou da emboscada. “São 1000 dias sem paz… [respira] sem poder retomar a normalidade. Não há como! A vida segue, os projetos existem, as coisas estão de alguma forma retomadas ao seu cotidiano, mas normalidade não há. Mataram Marielle há 1000 dias e não há respostas”, desabafa Fernanda.
Ela diz sentir falta de todas as dimensões de Marielle Franco, do pessoal ao político. “Arrancaram a Marielle de nós e, quando falo da falta que ela faz para a gente, é para além do campo pessoal. Ela faz falta do ponto de vista político. Faz falta no espaço que ela ocupava com tudo que ela representava. Eu sinto falta da gente ir juntas para a feira de manhã, mas também de pensar junto com ela nas formas de melhorar a vida, de pensar política, de construir….”.
Para Fernanda, “o povo também sente falta disso… Marielle concentrava no corpo dela todas as bandeiras que ela defendia. Eu tenho absoluta certeza que ela faz muita falta no espaço onde ela estava. Tem uma lacuna ali, politicamente falando”, avalia.
“Marielle concentrava no corpo dela todas as bandeiras que ela defendia.” – Fernanda Chaves
A vereadora lutava por uma sociedade mais justa, livre de toda forma de opressão e exploração. Ela foi incansável na defesa dos direitos humanos, atuando no atendimento de vítimas e familiares de vítimas da violência. Por isso, foi capaz de representar a maioria do povo na sua diversidade: mulheres, negras e negros, faveladas e favelados, jovens, LGBTQIA+, trabalhadoras e trabalhadores.
Fernanda conheceu Marielle Franco em 2006 durante a campanha em defesa dos direitos humanos contra o blindado do Bope da Polícia Militar, apelidado de Caveirão. Em 2007, elas trabalharam juntas no mandato do então deputado estadual Marcelo Freixo, onde Fernanda era coordenadora de comunicação e Marielle assessora para as temáticas de território e direitos humanos. Tornaram-se amigas a partir dali. Fernanda saiu do mandato em 2013 e foi trabalhar no Senado Federal.
Três anos depois, em 2016, Marielle Franco então eleita para seu primeiro mandato, sendo a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro, chamou Fernanda para ser coordenadora no mandato que se iniciaria em 2017.
“O que posso mais dizer a você sobre este 8 de dezembro—nesses exatos 1000 dias desde aquela noite tenebrosa, em que o carro que a gente estava foi fuzilado por criminosos—é que são exatos 1000 dias que mataram uma amiga, confidente, vizinha, chefe e madrinha da minha filha.”
Um Amanhecer Por Marielle Franco
Sidney Teles, 62 anos, educador social, militante de direitos humanos, trabalhou dez anos com Marielle. Desde a morte da amiga e companheira de trabalho, ele e o filho acordam juntos para participar das ações do Amanhecer Por Marielle. Deste ano foi a terceira realização—na Praça Seca, Zona Oeste—com cartazes, adesivos e girassóis.
“Completar mil dias sem resposta sobre os mandantes do assassinato de Marielle Franco e constatar que o genocídio da população negra atinge hoje as crianças e adolescentes diretamente, nos faz refletir sobre a importância de uma pessoa como ela. Não nos calaremos. A lembrança viva de Marielle está sempre conosco. Seus assassinos carregarão o peso de seu cadáver”, coloca Sidney.
Na favela Vila Aliança, Zona Oeste, o vendedor Carlos Motta, 40 anos, e a sobrinha, a estudante Caterine do Nascimento, 12 anos, também acordaram cedo para reclamar os 1000 dias sem solução para o crime. Eles estenderam uma faixa com as cores do time da vereadora, o Flamengo, e imprimiram cartazes para participar da campanha. Carlos participou de ações de comunicação comunitária na Maré, onde conheceu Marielle “antes dela pensar em se tornar parlamentar”, conta. Hoje, ele faz parte do coletivo Democracia Rubro-Negra.
O Amanhecer por Marielle teve manifestações em diversas cidades do país a partir do nascer do sol no dia 8 de dezembro, com a participação de ativistas, políticos, artistas e admiradores nas ruas e nas redes sociais.
Em Brasília, militantes do partido da vereadora, o PSOL, estenderam faixas em uma via principal da cidade.
À noite, um grupo de ativistas projetaram na cúpula do Museu Nacional de Brasília, uma homenagem a vereadora.
Em Santo André, São Paulo, um grupo de ativistas também amanheceram nas ruas por Marielle Franco, com cartazes e uma enorme faixa em alusão a placa com o nome da vereadora que se tornou símbolo de luta após ser quebrada por Daniel Silveira e Rodrigo Amorim, à época, candidatos ao cargo de deputado federal e estadual do Rio de Janeiro pelo PSL, nas eleições de 2016.
Depoimentos Sobre o Significado do Amanhecer por Marielle
Flávia Cândido, 39 anos, professora popular, moradora da Maré, Zona Norte, que trabalhou no mandato da vereadora até seu assassinato, e que faz parte do Núcleo do PSOL na comunidade, explicou à reportagem—emocionada e pedindo calma para respirar—porque ações como o Amanhecer Por Marielle são importantes na luta por justiça e memória:
“Quando o Núcleo do PSOL e os outros demais núcleos do partido demarcam a ausência da Marielle [com essas ações] lembramos de uma Marielle que não é só a mareense, mas uma Marielle que escolhe ser vereadora, que escolheu ser parlamentar e foi arrancada disso. A gente marca essa mulher forte e corajosa que escolheu o parlamento como sua trincheira de luta.”
Pâmella Passos, 36 anos, amiga de Marielle, descreveu o significado desses #1000DiasSemMarielle sendo privada do direito ao luto por precisar erguer a voz por justiça e ataques a memória da amiga:
“Eu queria poder estar em silêncio para acolher a dor avassaladora de perder uma amiga, mas sigo falando, pois a justiça ainda não foi feita. 1000 dias que seguimos perguntando quem mandou matar Marielle Franco e não temos respostas oficiais. 1000 dias que as decepções não param, a dor faz dessas coisas com as pessoas, elas se perdem, e acabam por, a la Maquiavel, achar que os fins justificam os meios. 1000 dias convivendo com exposição e a falta de cuidado, e para piorar a tristeza, não somente dos inimigos. 1000 dias em que me sinto num tabuleiro de xadrez do qual não quero fazer parte, onde as peças inimigas me assustam e aqueles, que eu julgava estar ao mesmo lado que eu, com suas movimentações tão bruscas e autocentradas colocam todas e todos em risco. 1000 dias em que perdemos a grande potência de renovação da esquerda carioca. 1000 dias em que muitas de nós perderam uma amiga confidente. 1000 dias que acordamos dilaceradas, mas nos obrigando a ser semente e seguir a luta.”