Esta matéria faz parte da série de Memórias de Potências Faveladas do RioOnWatch, que visa documentar e celebrar a história das favelas do Rio de Janeiro através de relatos e reportagens sobre a memória coletiva em sua luta cotidiana pelo direito a uma vida plena.
O jornal Folha do Borel, fundado na década de 1970, foi uma importante mídia favelada que atuou contra o regime ditatorial e em defesa de direitos dos moradores de favela até sua última edição em 1988. O Morro do Borel sempre foi marcado pela resistência desde a sua fundação em 1921. Seus primeiros moradores foram a população removida dos Morros do Castelo e de Santo Antônio, demolidos. Os moradores se mobilizavam em torno de pautas e interesses comuns, como creches, posse de terra, lazer, água, entre outras demandas, que se estendem até hoje.
Borel foi a favela que criou a União dos Trabalhadores Favelados (UTF) em 1954, ainda na democracia brasileira pós-Segunda Guerra Mundial, dez anos antes do golpe de Estado que inaugurou a ditadura militar. Mauro Amoroso, historiador e professor da UERJ, aponta que o contexto histórico do Brasil era de muita repressão por parte do regime, mas, por outro lado, de muita resistência da população, exemplificada pela UTF.
“A União dos Trabalhadores Favelados foi a primeira instituição que reuniu associações de moradores de favelas. Só aí você coloca um pioneirismo na história de luta e de militância do Morro do Borel, brigando contra remoções.” — Mauro Amoroso
Esse cenário se deu em luta judicial, com empresas brigando pela posse das terras onde se localiza o Morro do Borel. “A UTF foi muito atuante na luta por direitos, tentando lançar candidatos que representassem os interesses dos moradores, principalmente no Legislativo, como o advogado Antoine Magarino Torres Filho, que colaborou para a criação da UTF e na luta dos moradores”, sinaliza Mauro. No entanto, em 1964 aconteceu o golpe militar.
“Com o Golpe de 1964, a UTF sofre um grande impacto. Só se rearticula a partir dos anos 1970. Muitas vezes, a atuação de grupos mais novos e mais velhos entravam em choque, mas todos continuavam militando pela causa da reorganização do Borel e da militância contra a ditadura.” — Mauro Amoroso
Ao longo da história do Morro do Borel, a comunicação comunitária se mostrou um caminho possível para resguardar e reivindicar direitos para a favela. “A imprensa favelada é importante para o jornalismo porque instaura um outro jornalismo que não é o da mídia tradicional, convencional. Outras possibilidades, dá oportunidade para os agentes, as pessoas das favelas terem atuação entre sua voz publicada e publicizada, para que essa voz possa ser ouvida e, por outro lado, fala de temas que interessam mais diretamente a esse público”, ressalta Marialva Barbosa, professora de Jornalismo da UFRJ.
É exatamente esse o caso do jornal Folha do Borel. Fundado na década de 1970, é um exemplo da busca pela potencialização das vozes faveladas. É o que relata Miramar Castilho, 70, morador antigo, que chegou ao Borel com 10 anos, ainda nos anos 1960, e participou de diversas mobilizações na favela. Ele foi um dos participantes do jornal Folha do Borel e conta um pouco dessa história, afirmando que o jornal era bem aceito pela favela.
“O jornal surgiu com a necessidade de divulgar os filmes do Cineclube Oscarito, que veio junto com a estudante de sociologia Marisa Palácio. Ela trouxe para o Borel um projetor, a máquina de passar filme daquelas antigas, projetor 16 mm, e começou os trabalhos com um grupo formado por pessoas aqui da capela da igreja… A gente fazia o jornal tipo um esqueleto, primeiramente. Cada um fazia uma determinada parte. Eu, por exemplo, ficava com a parte de diversão, palavras cruzadas, jogo dos sete erros. Tinha a Miriam, que fazia o horóscopo Madame Mira. A gente saía pelo morro para distribuir o jornal, que tinha uma tiragem de cerca de 1.000 exemplares, datilografadas naquelas máquinas antigas. As fotos [eram] em preto e branco, [tinha] alguns desenhos.
Era de grande aceitação. As pessoas ficavam olhando o jornal; mas, muitas vezes, usavam o jornal para sentar na calçada após a leitura… Era um trabalho árduo, que ocorria uma vez por semana. A gente se juntava para subir a parte mais alta do morro e distribuir abaixo.” — Miramar Castilho
Em entrevista, Rute Barros, que coordenou o Projeto Condutores de Memória, afirma que o nome Folha do Borel foi dado após uma consulta com todos os participantes. O jornal nasceu em 1976, conforme registros de exemplares existentes. Segundo ela, o jornal funcionou por mais de dez anos, tendo sua última edição em 1988.
A impressão era realizada com a ajuda da Igreja Católica. Além disso, os comerciantes locais colaboravam como podiam, segundo Barros. Miramar diz que se cogitou a possibilidade de cobrar centavos à época para sustentar o jornal, mas a ideia não prosperou e o jornal continuou funcionando com as colaborações dos comerciantes e da igreja.
O conteúdo do jornal girava em torno de pautas de interesse comum dos moradores. No entanto, as lutas não se restringiam apenas ao Borel. Havia o acolhimento de demandas de outras favelas, como o Morro da Formiga, também localizado na Tijuca, que ganhou espaço para trazer suas demandas no período.
A reunião de pauta era realizada na Igrejinha, uma localidade no alto do morro, que faz referência a uma igreja Católica. E, como parte dos integrantes não era da favela, o grupo de fora ficava a cargo de trocar informações com outros veículos de comunicação. Como os integrantes do jornal não tinham instrumento para ajudar na produção das notícias, uma máquina de escrever foi doada na época por uma estudante da UFRJ, segundo Miramar.
Folha do Borel tinha editorias, que não se alteravam nas edições subsequentes: editorial, entrevistas, O Linguão (dedicado a trazer informes de reuniões e assembleias realizadas na associação de moradores), horóscopo, jogos, cantinho poético e culinária.
Assim como qualquer jornal, as principais notícias constavam na capa, trazendo a manchete e os boxes com outras notícias que o leitor poderia encontrar naquela edição.
O jornal tinha diferenças tipográficas e também discrepâncias na linguagem e na ortografia. No entanto, essa diferença ortográfica não era relevante, uma vez que o foco era informar. Erros no jornal eram corrigidos com um pedaço de papel em cima do que foi escrito, já que a máquina de escrever não permitia errar uma palavra. O periódico era feito em folha de papel A4. Na capa, constava o logotipo com nome do veículo Folha do Borel escrito à mão, inspirado no jornal Folha de São Paulo. Havia também informações de ano e tiragem. Rodava-se de 1.000 a 1.200 exemplares por tiragem semanal.
Quando o assunto é o conteúdo que o jornal abordava, em um exemplar, de 1982, por exemplo, houve uma convocação dos moradores para votarem de maneira consciente nas eleições para governador. Após anos de dura luta pelo voto direto, 1982 marca o retorno das eleições diretas para os governos estaduais. É importante lembrar que nesse período ainda não era permitido aos brasileiros votar para presidente. O controle do país ainda estava nas mãos dos militares. Só anos depois, em 1989, o voto direto para presidente voltou a ser permitido; quatro anos depois do fim da ditadura militar.
A Folha do Borel não tinha apenas o caráter denuncista, mas evidenciava a coragem de trazer em sua edição um texto com a opinião do jornal sobre as eleições, o período ditatorial e o ditador João Figueiredo. O veículo publicou duras críticas à política e ao regime, se referindo ao militares como “os homens”, que não permitiam que fosse escolhido um presidente, mas só governadores.
“Nada melhora, pelo contrário, cada vez mais comemos pior, nossos salários diminuem, o transporte é pior e mais caro, moramos em péssimas condições, o atendimento médico é pior e mais caro por causa da incompetência do governo. E pouco caso com a saúde do povo”, dizia um trecho do editorial publicado.
Naquela mesma edição, moradoras faziam um chamamento público de mulheres para discutirem a sociedade e por que homens estavam indo trabalhar e elas precisavam ficar em casa cuidando dos filhos. Elas queriam igualdade de gênero. As mulheres queriam creches para deixar os filhos–uma luta que se estende até os dias atuais. Era um movimento feminista num país em que o debate do feminismo ainda não contemplava as mulheres faveladas. Independentemente disso, elas se mobilizaram no Borel, em sororidade favelada.
“Companheiras, a Associação do Borel está com um trabalho de mulheres, que é o Departamento Feminino, no qual nós, mulheres, discutimos os nossos direitos junto com os dos homens: a criação dos nossos filhos sem escolas, o sinal, que é um perigo para todos, principalmente, para os nossos filhos e o direito de dividirmos com o nosso companheiro a luta do dia a dia. Discutimos todos os problemas, inclusive, o da carestia. Já que somos mulheres, não servimos só para lavar, cozinhar e passar. Somos mães, amantes e mulher. Mãe para criar os nossos filhos sem levar em conta a carestia. Amante para dividirmos o nosso amor com nosso companheiro. Mulher para ser parente principalmente na doença”, dizia um trecho do jornal.
“Por mais que a gente já estivesse na parte final da história militar, é sempre importante lembrar que ainda aconteceram alguns eventos que foram chocantes para a história do Brasil, como o atentado do Riocentro. O próprio comício das ‘Diretas Já!’ foi muito mobilizador, mostrava o quanto a sociedade queria o fim da ditadura. Teve muita adesão, mas não foi o suficiente para fazer com que tivéssemos eleições diretas em 1985, como a sociedade desejava.” — Mauro Amoroso
“É um período que os militares ainda estavam, de certa forma, dentro da ideologia. E restrita, ainda seguravam muita coisa. E isso no campo da censura era bem nítido”, complementa Mauro, pontuando que a censura estava presente no campo artístico e cultural, nas novelas e demais produções.
Ele cita a obra O Jornalismo Popular nas Favelas Cariocas, de Marco Morel, lançada em 1986, que retrata a comunicação comunitária como ferramenta de transformação local. “Mostra como é que, por meio do jornalismo comunitário, da imprensa comunitária, os moradores de favela estavam reorganizando seu movimento social”, já que estavam mobilizados e falando sobre a retomada da Federação de Associações de Favelas do Rio de Janeiro (FAFERJ), na época, Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), que havia sido perseguida e posta na ilegalidade desde o início da ditadura, nos anos 1960.
“Destacam-se grupos políticos, por exemplo, envolvidos com o povo Borel. Você teve muitos militantes da Ação Popular, que era um grupo que vem da Igreja Católica. Também teve alguns militantes famosos e o grupo do Movimento Armado Oito de Outubro (MR8), um grupo revolucionário marxista, que participou da luta armada contra a ditadura militar.” Segundo o pesquisador, após o desmantelamento dos grupos armados, os militantes passaram a procurar novas formas de continuar lutando contra o regime e começaram a dialogar com outros grupos, como nas favelas. Embora os diversos grupos tivessem suas tensões, buscava-se, então, uma “convivência tática”, de acordo com Amoroso, disputando associações de moradores, entre outras frentes.
“A Folha do Borel teve um papel importantíssimo de rearticulação da militância, principalmente uma militância mais jovem no próprio Borel. Então, é importante ressaltar esse papel da comunicação popular, que, ao mesmo tempo, serviu como um estopim para a reorganização de uma militância jovem favelada no Morro do Borel e acabou se tornando uma referência.” — Mauro Amoroso
Sobre o autor: Igor Soares é cria do Morro do Borel e jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente contribui com o #Colabora e atua como freelancer. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos e segurança pública, já tendo passado pela redação do Estadão, do Portal iG e produzido reportagens para a Folha de São Paulo.