2º Intercâmbio da Rede Favela Sustentável Visita o Biossistema do Vale Encantado

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Rede Favela Sustentável (RFS) é um projeto da Comunidades Catalisadoras (ComCat)* desenhado para construir redes de solidariedade, dar visibilidade, e desenvolver ações conjuntas que apoiem a expansão de iniciativas comunitárias que fortalecem a sustentabilidade ambiental e resiliência social em favelas de toda a região metropolitana do Rio de Janeiro. O projeto começou em 2012 com a produção do filme Favela como Modelo Sustentável. Em 2017 foram mapeadas 111 iniciativas sustentáveis e foi publicado um relatório final que analisa o processo do mapeamento de 2017. 

A fase atual do projeto consiste em uma série de intercâmbios extensivos entre oito das mais duradouras e estabelecidas iniciativas mapeadas, culminando em um intercâmbio intensivo com todas as 111 iniciativas em 10 de novembro. Entre as oito estão seis organizações comunitárias: a Cooperativa Vale Encantado no Alto da Boa VistaEcco Vida em Honório GurgelVerdejar no Engenho da Rainha e Complexo do AlemãoQuilombo do Camorim em JacarepaguáReciclAção no Morro dos Prazeres, e a Eco Rede do Alfazendo na Cidade de Deus. Os intercâmbios também incluem a visita a duas iniciativas com foco além das favelas, sendo elas a Onda Verde em Nova Iguaçu e o Ecomuseu de Sepetiba. Os intercâmbios têm apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil

Os intercâmbios têm a intenção de conectar diversos projetos de base comunitária que trabalham em questões sócio-ambientais, apoiar o compartilhamento de conhecimento de experiências entre os membros dos projetos, e identificar novas oportunidades conjuntas para promover sustentabilidade nas favelas do Rio. As extensas visitas foram realizadas aos sábados durante os meses de setembro e outubro e vão culminar em um evento aberto a todas as 111 iniciativas mapeadas pela RFS no dia 10 de novembro


A manhã do segundo encontro: Vale Encantado

Na manhã de 8 de setembro, o segundo encontro da Rede Favela Sustentável (RFS) começou na comunidade do Vale Encantado—uma pequena favela no bairro Alto da Boa Vista, no meio da Floresta da Tijuca. O encontro reuniu representantes de organizações comunitárias que promovem a sustentabilidade ambiental e a resiliência social na Cidade de Deus, no Morro dos Prazeres, no Quilombo do Camorim e em Sepetiba—juntamente com membros da equipe da Comunidades Catalisadoras (ComCat) e colaboradores (incluindo engenheiros ambientais e uma defensora pública). Originalmente fundada por três famílias que trabalharam em plantações de café na região no século XIX, hoje a comunidade é composta de 25 residências e 116 moradores. O Vale Encantado é considerado modelo de sustentabilidade em favelas.

Otávio Barros, morador da quinta geração e presidente da Associação de Moradores do Vale Encantado, lançou o projeto de turismo sustentável da comunidade em 2005. Desde então, o projeto se transformou em uma cooperativa que promove caminhadas e passeios na floresta, e gerencia um restaurante que emprega moradores que criam e servem pratos locais exclusivos. Nos últimos anos, o Vale Encantado desenvolveu um biossistema—um sistema de esgoto sustentável que trata o esgoto da comunidade através de um biodigestor local e um sistema de filtragem natural. Cinco casas já estão conectadas ao sistema, e um biodigestor separado usa resíduos alimentares para fornecer biogás que abastece a cozinha do restaurante cooperativo.

Vale Encantado apresenta soluções sustentáveis

A reunião de sábado começou com um passeio pelo Vale Encantado ao longo de uma trilha na floresta que circunda a comunidade. O grupo fez uma pausa em um mirante para ouvir e tomar ciência sobre as ameaças de remoções enfrentadas pelo Vale Encantado nos últimos anos. Otávio falou sobre uma ação movida pelo Ministério Público do Estado do Rio contra a Prefeitura do Rio de Janeiro em 2006, que acusou a prefeitura de prejudicar o meio ambiente ao permitir a “favelização” de áreas protegidas na fronteira com o Parque Nacional da Tijuca. Ao longo dos anos, os moradores das favelas do Alto da Boa Vista se mobilizaram para mostrar que suas comunidades não representam um risco para a floresta ao redor, e que, pelo contrário, seus moradores trabalham para preservar o meio ambiente.

Uma parte fundamental dessa mobilização é justamente o desenvolvimento de um sistema de esgoto sustentável no Vale Encantado. Nas palavras de Otávio, este projeto “é justamente para mostrar que nem todas as comunidades estão fazendo essa degradação ambiental como eles [o Ministério Público Estadual] dizem que está sendo feita”. No encontro, dois engenheiros ambientais e colaboradores do setor de saneamento, Tito Cals e Leonardo Adler—que trabalham com o Vale Encantado para desenvolver o biossistema desde 2013 e agora coordenam o Instituto Ambiente em Movimento—se uniram a Otávio para mostrar ao grupo os dois biodigestores construídos para tratar de forma sustentável o esgoto da comunidade. Um biodigestor menor construído anteriormente, que gera biogás para a cozinha do Vale Encantado usando materiais orgânicos como sobras de alimentos, foi desenvolvido e doado ao Vale Encantado pela ONG Solar CITIES e foi o que inicialmente levou Tito e Leonardo a trabalharem como voluntários em sua construção. Num grande circulo, foi a ComCat que fez essa introdução inicial ao Solar CITIES que gerasse os vários projetos.

Leonardo descreveu que foi trabalhando como voluntário no biodigestor da cozinha do Vale Encantado que percebeu que o que o Otávio e a cooperativa estavam realmente buscando era um sistema capaz de tratar o esgoto de toda a comunidade. “Foi por essa razão que a gente voltou à PUC, onde a gente se formou, e junto do departamento de engenharia civil escrevemos um projeto para um edital da FAPERJ e conseguimos a verba para realizar o projeto lá de baixo [o biodigestor de esgoto]”. Referindo-se às ameaças de remoção que o Vale Encantado e outras comunidades da Floresta da Tijuca enfrentaram nos últimos anos, a defensora pública Maria Lúcia Pontes do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública  do Estado do Rio de Janeiro (NUTH), também presente no encontro, observou: “Esses tipos de levantamentos são muito importantes na hora de fazer a defesa jurídica da comunidade. Por isso, que os parceiros das comunidades têm que ter essa noção de que o trabalho de vocês é de suma importância para uma defesa, para desmistificar e desconstruir a visão da comunidade como poluidora”. Em resposta à Maria Lúcia, Leonardo acrescentou: “A gente ouviu de uma moradora quando veio visitar [o biodigestor] aqui, ela falou: ‘Agora os pobres estão limpando e são só os ricos [dos condomínios vizinhos sem tratamento de esgoto] que estão sujando a floresta'”.

Saneamento Ecológico: Conclusões do Exemplo de Vale Encantado

Após a visita ao Vale Encantado, Otávio, Tito e Leonardo apresentaram aos visitantes uma visão geral de projetos de saneamento sustentável, descrevendo o tratamento de esgoto como “um dos maiores desafios da cidade do Rio e do país inteiro”. Ao descrever as grandes estações de tratamento que a prefeitura construiu para responder a esse desafio, Tito e Leonardo explicaram: “Não é só uma política pública atrasada, mas também uma política pública elitista. Quem não tem dinheiro são as últimas pessoas a serem atendidas na lógica do governo. Reconhecendo que alguns espaços exigem estações de tratamento de esgoto grandes e centralizadas, o objetivo dos engenheiros é mostrar que um sistema centralizado não é a única opção disponível. Eles acreditam que as comunidades precisam considerar suas próprias necessidades, custos e capacidade de manutenção, a fim de escolher um sistema de saneamento que funcione melhor para elas. Na esfera dos sistemas de saneamento ecológico, isso pode significar a utilização de um biodigestor, um vermifiltro (que usa minhocas para replicar os processos naturais de tratamento), ou o chamado sistema bio-séptico que utiliza bananeiras para tratar resíduos. Tito e Leonardo apresentaram exemplos de projetos de saneamento ecológico em andamento, descrevendo especificamente a construção dos biodigestores no Vale Encantado e explicando como eles funcionam.

Descrevendo soluções de saneamento ecológico como “uma quebra de paradigma muito grande”, Tito e Leonardo concluíram sua apresentação com uma história, enfatizando a importância de uma “ecologia de saberes” que valoriza a sabedoria tradicional e o conhecimento da comunidade. Durante a construção do biodigestor, eles explicaram, a equipe sabia que precisaria de concreto, mas não conseguiam descobrir como transportá-lo para o meio da floresta. Nem os engenheiros nem os arquitetos da equipe chegaram à solução. Em vez disso, foi Otávio—um morador—quem sugeriu fazer o concreto no local, usando a mesma técnica usada na construção de sua própria casa. Os membros da comunidade desempenham um papel fundamental no desenvolvimento de soluções de saneamento ecológico; Tito e Leonardo descrevem seus papeis como o de pessoas que estão “levando a mensagem do saneamento e das soluções que são possíveis”.

Desafios e Próximos Passos para o Vale Encantado

Durante o almoço no restaurante sustentável do Vale Encantado, os membros da RFS discutiram os planos do Vale Encantado para o futuro e seus principais desafios. No momento,  Otávio se diz focado em completar o resto do biossistema da comunidade, bem como em aumentar a conscientização dos moradores sobre o sistema. Para mobilizar os moradores para a separação do lixo e para trazer resíduos biodegradáveis para o biodigestor do restaurante, Otávio teve a ideia de fornecer produtos da cozinha, como pão fresco, para aqueles que entregam as sobras de alimentos. Para isso, Otávio explicou que a comunidade precisa remodelar a cozinha para atender à crescente demanda tanto por seus produtos quanto por empregos. Se a cozinha for capaz de produzir alimentos para até cinquenta pessoas por vez, ela poderá permanecer aberta em horários regulares sem precisar de reservas prévias (como é preciso fazer atualmente) e garantir um emprego permanente para os moradores que atualmente viajam longas distâncias para ir para o trabalho. “Essa reforma da cozinha seria crucial para o desenvolvimento não só dos trabalhos que a gente faz, mas para gerar também emprego para as mulheres que estão desempregadas na comunidade”, disse Otávio.

Outro grande desafio atualmente enfrentado pelo Vale Encantado diz respeito à estrutura da cooperativa comunitária. Está sendo considerada uma reestruturação na forma de uma organização sem fins lucrativos ou empresa—cada uma com suas vantagens e desvantagens. Isso desencadeou uma conversa entre os participantes do encontro da RFS sobre a melhor estrutura legal para suas próprias organizações. A conversa se transformou em uma sessão de chuva de ideias para o Vale Encantado. Carlos Alberto Oliveira, do Alfazendo, na Cidade de Deus, enfatizou a importância de sistematizar seus conhecimentos e criar um plano estratégico para prever suas ações, parcerias e custos. Helio Vanderlei, da Onda Verde, em Nova Iguaçu—anfitrião do primeiro encontro da RFS—sugeriu que Otávio e seus vizinhos sejam parceiros de departamentos relevantes da PUC-Rio e de empresas locais que possam estar dispostos a contribuir com projetos em andamento. Também foram compartilhadas ideias sobre cartazes eficazes que ajudariam os visitantes a entender rapidamente o projeto, seus sucessos até o momento, e seus planos para o futuro.

Cheio de novas idéias, torta de coração de banana e bobó de jaca, os participantes da RFS viajaram de ônibus por cinquenta minutos, dentro da cidade do Rio e sem parar em qualquer sinal de trânsito—através da maciça Floresta da Tijuca—até o Morro dos Prazeres, favela localizada no topo do histórico bairro de Santa Teresa, próximo ao Centro do Rio, para continuar o dia de visitação. 

Leia sobre todos os intercâmbios da Rede Favela Sustentável aqui.

*RioOnWatch é um projeto da ONG Comunidades Catalisadoras.