Na última terça-feira, dia 2 de abril, ocorreu na sede do Observatório de Favelas, no Complexo da Maré, o seminário “Novos Paradigmas para Políticas Urbanas na Perspectiva da Potência das Periferias“, com apoio do CAU/RJ. O seminário faz parte do projeto Território Inventivo, desenvolvido pelo Observatório em parceria com a Redes de Desenvolvimento da Maré, que visa realizar ações de formação, produção e comunicação no campo da arte, da cultura e da educação. O objetivo do seminário foi sistematizar e difundir as metodologias inovadoras e os resultados alcançados até aqui, visando produzir contribuições para o campo do urbanismo a partir dos territórios favelados.
O projeto é pautado pelo mesmo paradigma que perpassa todas as ações do Observatório, o paradigma da potência. Segundo ele, a favela não é definida pela lógica da carência e da ausência frequentemente associadas a esses espaços. “A única forma de construir políticas públicas para os moradores é a partir dos próprios moradores subvertendo essa lógica”, colocou Lino Teixeira, arquiteto que acompanhou o projeto pelo Observatório. Essa subversão está na afirmação da potência criativa desses moradores.
Aruan Braga, diretor do Observatório, reforçou o desejo dessas organizações de discutir a cidade a partir da favela: “Não se trata de pensar uma favela melhor, mas uma cidade melhor a partir da favela”. Jorge Barbosa, um dos fundadores do Observatório, ecoou esse posicionamento, dizendo que o objetivo é ter a Maré como referência para a produção de um projeto para a cidade, a partir de uma agenda propositiva e de um conhecimento que seja interessado, provocativo, político. Jailson Souza e Silva, também fundador do Observatório, disse que diante de um projeto de política pública orientado pela lógica da intervenção, que é pontual, eles propõem um projeto permanente de disputa de cidade. Isso porque, segundo ele, a favela nunca foi uma exceção em relação a cidade, tampouco um efeito colateral—ele colocou que das 16 favelas que constituem o Complexo da Maré, nove foram construídas pelo próprio Estado, muitas vezes ignorando a realidade local no desenho das habitações, como quando constrói casas com telhados diagonais, que impossibilita o uso da laje como espaço de lazer ou de construção para gerar renda ou para abrigar famílias polinucleares.
Durante o seminário Lino Teixeira recapitulou as ações anteriores do projeto Território Inventivo, expondo que como parte do projeto em 2014 foi feito um diagnóstico urbano para entender essas potências do território. Esse diagnóstico passou pela produção de mapas do território, diante da inexistência de mapas oficiais, além da produção de conceitos, metodologias e formas de incidência. O mapeamento foi um esforço manual de Pedro Évora, arquiteto do Rua Arquitetos, que na época fazia seu trabalho de mestrado. Lino observou que não estar representado no mapa da cidade, seja por estigma ou por burocracia ou pelos dois, tem efeitos práticos muito fortes.
Foram identificados nesse mapa 3000 pontos de uso na favela, que incluíam comércio e práticas culturais. Era um esforço, portanto, para produzir presenças e derrubar ausências. Além da identificação dos pontos, observou-se as condições de difusão, modo de financiamento, público envolvido e inserção no território. A pesquisa concluiu que as práticas culturais encontram-se predominantemente na comunidade de Nova Holanda (25,0%) e no Parque União (18,3%), seguidas da Vila do João e do Morro do Timbau, contrastando com as comunidades originadas de conjuntos habitacionais (Vila Pinheiro, Nova Maré, Conjunto Pinheiro, Conjunto Esperança), que apresentam menos densidade de práticas culturais. Concluiu-se, assim, que os espaços produzidos organicamente apresentam mais oportunidades para encontros e uso intenso do espaço do que os espaços planejados, cujas formas restringem a convivência.
Assim como os mapas, Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré, relembrou o trabalho da Redes em nomear as ruas da Maré e realizar um censo do complexo, produzindo um conhecimento de dentro para fora e preenchendo as lacunas deixadas pelo poder público, que segundo ela nunca age de forma espontânea, e por isso o papel importante de organizações do território em cobrá-lo. A formalização de todas as ruas, por exemplo, ainda depende da assinatura do prefeito em 5 das 16 comunidades. “A prefeitura está pensando em construir um Parque Maré, falando em cidades inteligentes, quando os serviços mais básicos não funcionam”, desabafou ela. Pablo Benetti, arquiteto e professor da UFRJ, concordou e reforçou que mesmo diante de tudo que os moradores realizam, não devemos simplesmente abandonar o referencial do Estado: “É preciso estar com um pé na crítica e um pé na cobrança. O Estado tem que cumprir o seu papel porque os serviços ainda são centralizados nele”.
Em seguida, em 2015, buscou-se identificar e implementar melhorias urbanas e equipamentos no território, a partir das vocações, fortemente ligadas à cultura, identificadas no diagnóstico anterior, como foi o caso da proposta de um Farol da Maré, uma torre de dez andares para abrigar atividades culturais e um mirante, ligada por uma ponte de pedestres a Bonsucesso e à Cidade Universitária, que surgiu tanto para promover o desenvolvimento interno mas também para promover novos pontos de vista da cidade e criar uma referência que pudesse ser não só uma centralidade para a Maré, mas para a cidade.
Houve também em 2016 a oficina “Espaço Público e Mobilidade: Os desafios da Maré“, em parceria com o Instituto Pereira Passos (IPP), a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades (SNH/MCidades), a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFRJ e o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil). Participaram da oficina diversas secretarias da prefeitura, técnicos que podiam qualificar a demanda dos moradores e os próprios moradores, que apresentaram suas visões para o entorno das estações do BRT Transbrasil. Clarisse Linke, diretora executiva do ITDP, colocou que as áreas em um raio de 1 km de estações de transporte de média e alta capacidade devem receber investimentos e concentrar população e serviços. Ela ainda lembrou que 90% do Complexo da Maré encontra-se em um raio de 1 km das estações do BRT Transbrasil, que ligaria Deodoro ao Centro e até hoje não concluído, configurando como área prioritária para investimentos.
Dentre as propostas que surgiram dessas oficinas, estavam a melhoria das calçadas ao longo da Avenida Brasil, tornar a rua principal mais segura para pedestres e ciclistas e repensar a estação do Parque União para não só ser uma estação que leva pessoas, mas uma que traz pessoas para a Maré. Para Jailson, o projeto como um todo contribui para reconstruir as relações da cidade a partir da criatividade na Maré e assim criar um espaço democrático e atraente para trazer as pessoas que têm medo da favela.
Na fase entre 2017 e 2018, focou-se em qualificar os dados quantitativos levantados no diagnóstico de 2014, de forma a compreender como a cultura se desenrola nesse território e desenhar políticas públicas voltadas para a cultura que tenham como foco o desenvolvimento urbano. Inaugura-se agora uma nova fase do projeto, de sistematização do que foi feito até aqui, e expansão para outros territórios, também potentes como a Maré. Já na plateia do seminário, uma jovem demonstrou interesse em levar as discussões para dentro da favela do Muquiço, onde mora, também nas margens da Avenida Brasil.