No dia 17 de abril, o Cidades: Núcleo de Pesquisa Urbana da UERJ, a editora Appris e o pesquisador Alexandre Magalhães organizaram o debate “O que restou do Rio Olímpico?” e o lançamento oficial do livro de Alexandre, “Remoções de Favelas no Rio de Janeiro: Entre Formas de Controle e Resistência”. Além de Alexandre, o debate do painel incluiu o professor de Direito da UERJ, Alexandre Mendes; Márcia Leite, professora de sociologia da UERJ; e Maria da Penha Macena, a Dona Penha, moradora da Vila Autódromo e um dos principais símbolos da resistência Olímpica na luta contra as remoções impulsionados pelos Jogos Olímpicos de 2016.
Márcia moderou o painel e apresentou o evento como a atividade inaugural do programa de sociologia urbana da UERJ. Ela então passou a palavra a Dona Penha, que começou contando a luta de sua comunidade contra as remoções. Ela lembrou que o ex-prefeito Eduardo Paes falou na TV sobre o legado dos Jogos Olímpicos para a cidade do Rio de Janeiro. Hoje, três anos depois, ela ainda pergunta a si mesma: “Onde está esse legado de que tanto falaram?” O único legado que ela pode reconhecer são os inúmeros problemas que sua comunidade—e todas as outras comunidades que lutaram contra as remoções—tiveram que lidar depois que as Olimpíadas foram concluídas e os olhos do público internacional mudaram para outro lugar. Ela destacou que as remoções ocorreram em toda a cidade e afetaram o Rio de Janeiro destruindo pedaços da história e atrapalhando as rotinas diárias que existiam nas comunidades há décadas: “Não só na Vila, mas acho que o Rio de Janeiro todo passou por um processo muito dramático, muito difícil, porque foram muitas famílias removidas, não só na Vila. A cidade toda teve muitas remoções e muita maldade também. As Olimpíadas foram usadas para tirar as famílias das suas casas, [famílias] que viviam bem, que moravam cada um no seu território, acostumados ao seu dia a dia, à sua história. E o prefeito fez essa maldade, tirar aquelas pessoas das suas casas, para deixar o terreno vazio”.
Dona Penha continuou: “E isso é doloroso, porque não perguntam, não têm respeito com o ser humano. E na Vila acabou tendo uma luta muito grande, foi uma luta de todos os moradores, porque o sonho da Vila era ser urbanizada”. De fato, em parceria com universidades locais, os moradores da Vila Autódromo criaram um Plano Popular para provar às prefeitura que a comunidade e seu território e local poderiam, de fato, ser urbanizados. No entanto, o plano foi amplamente ignorado e as remoções continuaram. Das 700 famílias originais, apenas vinte resistiram até o final. Segundo Dona Penha, essas vinte famílias são símbolos da violência que aconteceu na comunidade. “A verdade é que a Vila foi violentada por todos os governantes, porque a terra era do estado, o estado poderia ter intervindo, mas mesmo assim ele não interviu”, disse Dona Penha.
Então, qual é o legado das Olimpíadas do Rio? O único legado que Dona Penha vê é “um legado de sangue, de muito sofrimento, muita tristeza, porque até hoje os nossos companheiros de luta e da comunidade, a maioria, ainda hoje têm muita tristeza. Nossos idosos a maioria morreram, a gente vê pessoas que moravam na Vila que morreram jovens. Uma pessoa com 58 anos sofreu um infarto, tivemos vários casos de moradores da Vila que tiveram infarto”. Dona Penha concluiu descrevendo a situação em que os moradores da comunidade estão vivendo atualmente. Hoje a Vila Autódromo enfrenta muitas dificuldades, “porque os nossos governantes continuam a mesma coisa, e nós continuamos lutando”. A Vila Autódromo tem um acordo com a prefeitura, mas metade do que foi prometido neste acordo—incluindo uma praça e um espaço cultural—não foi cumprido. Dona Penha expressa toda sua decepção e a situação absurda, pois “antigamente a palavra valia, hoje nem um acordo assinado por eles próprios [da Prefeitura] tem valor, porque eles prometem e não fazem. Eu gosto de dizer que somos nós que pagamos o salário de nossos opressores, nós trabalhamos e pagamos para sermos roubados, e sermos oprimidos—isso é cruel”.
O pesquisador e professor Alexandre Magalhães começou então a apresentar seu novo livro. Visivelmente emocionado, Alexandre observou que o livro representa para ele uma grande realização e a transição entre a vida estudantil e profissional. Depois de agradecer a todos que contribuíram com o livro, incluindo familiares e amigos, ele agradeceu muito a Dona Penha, Jane Nascimento e Sandra Maria de Souza—alguns dos moradores mais engajados na luta contra a remoção na Vila Autódromo que participaram do evento. “[Quero agradecer] a todos os moradores da Vila que eu conheci nessa jornada. Aprendi muito com vocês, vocês são uma fonte de energia, de luta, apesar de todo o sofrimento que passaram, e os efeitos nefastos e profundos das remoções. Muito obrigado a vocês”, continuou Alexandre.
Ele explicou que a ideia da pesquisa que levou ao lançamento do livro começou durante um evento em 2005, onde ele ouviu falar e se deparou com o fenômeno das remoções nas favelas do Rio, que posteriormente se intensificaram nos preparativos da Copa do Mundo e das Olimpíadas. De acordo com Alexandre, foi somente em abril de 2010, quando fortes chuvas, inundações e deslizamentos de terra causaram centenas de mortes em todo o Rio, que as políticas de remoção começaram a ser institucionalizadas e sistematizadas pelas autoridades municipais. Isso ocorreu em conjunto com o desenvolvimento do programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, “que deu o suporte material e financeiro para que as remoções pudessem ganhar forma e produzirem os efeitos negativos que produziram na vida das pessoas, e mais profundamente na vida da cidade. Porque foi um processo que transformou e reconfigurou a cidade”, descreveu Alexandre. Desde aquele período, as remoções continuaram sistematicamente em um ritmo alarmante em toda a cidade. Ele afirmou que muitas das dificuldades que os ativistas continuam enfrentando em seus esforços para construir uma cidade mais inclusiva e respeitosa derivam desse período de intensas remoções no Rio de Janeiro, antes da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016.
Refletindo sobre essa avalanche de violências e remoções, Alexandre afirmou: “Acho que a gente conseguiu com a nossa luta, com a nossa resistência, impedir que aquilo [a remoção] ganhasse uma dimensão ainda mais negativa. Muitos processos não se realizaram completamente porque moradores como a Penha, a Dona Jane, a Sandra—acadêmicos e outros tantos—botaram literalmente os seus corpos diante dos tratores, e impediriam que mais demolições ocorressem”. Na perspectiva de Alexandre, ele não estava lá apenas como um pesquisador; ele internalizou a luta da comunidade e experimentou um processo que o transformou profundamente. “Eu percebi quantas pessoas sofrerem por causa dessa violência. E isso me marcou e me marca até hoje. Eu sentia um compromisso ético, político, com todas essas pessoas que eu conheci durante essa jornada. Eu fiz muito mais que uma pesquisa, e eu fiz o que fiz porque acreditava na luta dessas pessoas. E acredito até hoje, porque sem essas pessoas, não se consegue construir uma cidade democrática”, disse Alexandre, tentando conter as lágrimas.
O professor da UERJ, Alexandre Mendes, destacou que é exatamente essa sensibilidade, característica de seu colega Alexandre Magalhães, que lhe permitiu entrar, participar e se relacionar com a luta das comunidades afetadas pelas remoções. Isso se materializa no livro, que não tenta romantizar os fatos, mas produz um relato verdadeiro e consciente da luta contra as remoções, das pessoas que estiveram na vanguarda dessa luta e das conseqüências que essa forma de violência provocou na cidade e em seus moradores. Alexandre Mendes destacou uma linha do livro que ele particularmente gosta: “Observar é participar e participar é sentir”.
Um morador da favela do Metrô-Mangueira expressou preocupação com os acadêmicos que estudam e pesquisam as favelas, dizendo que, na maioria das vezes, os pesquisadores externos não conseguem realmente internalizar as lutas dos moradores porque eles sempre terão suas casas nas partes seguras do Rio para voltar no final do dia e, portanto, eles não são capazes de contribuir concretamente para a luta da comunidade. Sandra Maria, moradora da Vila Autódromo, interveio lembrando a dedicação de vários pesquisadores—estudantes e professores de instituições brasileiras e internacionais—que fizeram da Vila Autódromo o tema de seus estudos. “Pessoas como Alexandre, que é um pesquisador, a pesquisa foi uma consequência da paixão dele, do seu ativismo, porque o Alexandre frequenta a Vila Autódromo desde quando era menino, ele jogava bola lá… ele já estava lutando por nós. Então, pra nós, pra mim, esse é um legado. Esse foi o nosso legado Olímpico: essa relação de afeto, essa rede de afeto, de apoio, que se construiu no processo de luta contra a remoção, na trajetória de resistência da Vila Autódromo”, explicou Sandra.
Ela destacou o papel dos aliados acadêmicos como Alexandre Magalhães, cujas contribuições foram cruciais para a vitória da Vila Autódromo. “Foi graça a esse apoio, essa pesquisa intensa, essas pessoas que se deslocavam dos seus apartamentos, saiam dos seus confortos para passar o dia inteiro lá lutando ao nosso lado—pessoas que estavam dispostas a entrar na frente de um trator, a ficar dentro de uma casa que vai ser demolida, essas pessoas têm que ser respeitadas. Porque esse tempo que eles passavam lá do nosso lado, era fundamental para a nossa vitória. Sozinhos, nós não teríamos conseguido, nós só conseguimos porque nós conseguimos mobilizar uma quantidade imensa de pessoas que vinham do mundo todo! Esse pra mim é o verdadeiro legado Olímpico, essa rede de afeto que foi construída por pessoas comuns, por pessoas simples e por pesquisadores que hoje graça a esse ativismo, graça a esse olhar para a favela, que é mais do que um olhar, é um deslocamento, isso mudou a academia”, continuou Sandra.
A conversa tocou em uma questão importante: para que e para quem servem as pesquisas acadêmicas sobre as favelas? De acordo com Sandra, existem dois lados: “Têm esses pesquisadores que ficam pesquisando, lendo autores de todos os séculos, para debater dentro da academia, fazendo seminários, fazendo falas—isso serve para eles ganharem dinheiro, prestígio, construir uma carreira. Mas para a construção da cidade, para a transformação do mundo, para acabar com essa violência, com essa crueldade, com essa injustiça social, isso não serve. Porque a academia não tem sentido quando ela fica falando pra ela mesma”. Em outras palavras, a pesquisa deve se estender além dos círculos acadêmicos e se envolver com a sociedade civil, a fim de enfrentar efetivamente os desafios enfrentados pelos moradores da cidade. Sandra continuou explicando que “felizmente, nós temos dentro da academia um número muito grande de pesquisadores que dão sentido a esse espaço [da academia]. Porque quando a pesquisa vai além da pesquisa, ela é ativismo. Quando a pesquisa é feita para atender ao ativismo, ela é transformação social… E essa pesquisa tem que ser respeitada, amada, valorizada, porque ela nos dá voz, ele faz que a nossa voz, a nossa história alcance segmentos da sociedade ao qual nós não conseguimos, porque nós sofremos esse silenciamento que é exercido pelo poder público, pela elite, que domina esse sistema que eles construíram”.
Márcia Leite fez uma observação final em um esforço para resumir a discussão e responder à pergunta: “Qual é o legado das Olimpíadas do Rio?” Ela relembrou o momento em que foi anunciado na TV que os Jogos Olímpicos de 2016 seriam realizados no Rio de Janeiro. “Foi uma euforia na cidade, e durante muito tempo se viveu uma certa euforia de que isso [as Olimpíadas] iria mudar o destino do Rio”. As principais intervenções urbanas eram justificadas pela ideia de que as Olimpíadas, como qualquer outro megaevento, daria ao Rio de Janeiro a oportunidade de inserir-se no cenário econômico global e “a partir daí ia ser uma cidade do tipo de Barcelona, com grandes eventos, iria melhorar a vida do todo mundo, ter mais negócios, ter mais dinheiro, ter mais de tudo”. O problema é que para conseguir isso, a assim chamada prosperidade, os moradores teriam que lidar com certos “inconvenientes” por algum tempo—justificados pelo fato de que suas vidas melhorariam depois disso. Só mais tarde, em grande parte graças a movimentos sociais, incluindo aqueles formados por moradores de favelas, as pessoas começaram a se perguntar: “Quem ganhou com legado Olímpico do Rio?”. Márcia tentou responder a essa pergunta usando as palavras mais citadas por Alexandre Magalhães e Dona Penha durante a discussão: “Foi um legado para alguns, e não para outros. O que restou do Rio Olímpico: terror, destruição, maldade, dor, violência, sangue, suor, sofrimento, opressão, crueldade, brutalidade, tristeza, e novas tecnologias de poder que usam a violência”.