O projeto Maré a Céu Aberto promete trazer uma nova perspectiva museológica para a favela da Maré, na Zona Norte. Roteiro histórico, instalação de estações de memória e arte urbana são alguns dos componentes do projeto que lembram uma galeria ao ar livre dentro da favela ou, ainda, um museu territorial, de percurso, como denominaria a museologia social.
A iniciativa parte do Núcleo de Memória e Identidade da Maré (NUMIM) da ONG Redes de Desenvolvimento da Maré, que realiza desde 2007 trabalhos voltados para preservação da memória e história da favela, em parceria com Azulejaria e o Itaú Cultural. Vizinho do premiado Museu da Maré, fundado em 2006 e tendo na última semana conquistado a posse definitiva do seu imóvel em mais uma grande vitória, as duas iniciativas colocam a Maré ainda mais no mapa da museologia social. O Rio conta hoje com mais de uma dúzia de museus comunitários.
Até o momento, as primeiras ações do Maré a Céu Aberto contaram com uma roda de conversa sobre memória e ancestralidade, realizada no Centro de Artes da Maré (CAM), em fevereiro, com a presença de ativistas e pesquisadores como Mãe Celina de Xangô, Keyna Eleison Ailton Krenak e Paulo Knauss, além de uma aula-campo realizada pela equipe em março, marcando os caminhos de percurso do Maré a Céu Aberto.
O projeto visa instalar, até o final deste ano, cinco estações de memória entre o Parque União, Nova Holanda, Baixa do Sapateiro e Vila do Pinheiro—favelas que fazem parte do Complexo da Maré. Mais para frente, conforme a disponibilidade de recursos, novas estações deverão ser criadas. O historiador Edson Diniz, diretor da Redes da Maré e coordenador-geral do NUMIM, conta que os pontos escolhidos são lugares representativos da favela: “Vai ter arte sobre azulejo marcando determinadas passagens históricas. Vamos convidar artistas da Maré e de fora da Maré para fazerem obras de arte que retratem um pouco dessas histórias. Essas estações serão ligadas por caminhos que são ruas históricas da Maré”.
Os pontos eleitos para esta fase do projeto são a Praça do Parque União, a Casa das Mulheres da Maré, a Praça da Nova Holanda, a Praça do 18 e o Parque Ecológico da Maré.
Tereza Onã, pesquisadora e uma das coordenadoras do Maré a Céu Aberto, conta que a proposta tem sido bem recebida pelos moradores. Na semana passada, coincidindo com a Semana Nacional de Museus, o projeto realizou encontros com grupos e entidades da Maré, incluindo escolas e associações de moradores: “Foi linda a recepção dos diretores e moradores para conhecer e somar nesse novo e coletivo espaço de memória na Maré. Todas as instituições, de bom grado, disponibilizaram espaços para os pontos focais de ‘recolhimento’ de memória para que as instalações tenham a cara e cultura da Maré e de seus moradores”.
Maré a Céu Aberto tem como referência algumas propostas de turismo sustentável e museologia social, tais como o Memórias do Cerro Corá e o Museu de Favela (MUF), localizados em favelas da Zona Sul, e a galeria de arte urbana do bairro Padre Cruz do Centro Cultural Cardine, em Lisboa.
“Quando tomei conhecimento do MUF, fiquei encantada com a ideia de um museu territorial vivo. O contato com um museu onde a natureza faz parte da exposição”, recorda Tereza Onã com entusiasmo. “Visito o museu da comunidade do Cerro Corá também. O trabalho realizado ali, de memória dos moradores, é fascinante. Admiro muito Ricardo Rodrigues. Mais uma fonte de inspiração de museu na favela.”
Trilheira assumida nos finais de semana, Tereza conta que visita várias favelas dessa maneira e tem boas expectativas para o Maré a Céu Aberto: “Estamos falando de um território de 140.000 habitantes, distribuídos em 17 comunidades, onde arte e cultura são expressões do território”, afirma Tereza. “Penso que as memórias e afetos são grande parte da garantia de desenvolvimento sustentável. Acredito muito nesse projeto como promoção de autoestima e diálogo com a cidade do Rio de Janeiro e do mundo. Poder estar junto na construção de um museu social, junto com os moradores da Maré, sobre arte, cultura, memória e identidade é o vislumbre de transformação.”
Edson Diniz lembra que a ideia de percurso já foi testada pela Redes da Maré no Festival Comida de Favela, realizado em 2015. “O Comida de Favela funcionou parecido com essa ideia porque as pessoas circularam pela favela, e esses bares, restaurantes, estavam em pontos bem conhecidos também. Foi muito legal. As pessoas andaram por dentro da Maré para conhecer os pontos de comida e é isso que a gente quer fazer de novo, mas que agora as pessoas circulem para conhecer a história”.
Maré a Céu aberto é o desdobramento de doze anos de trabalho do NUMIM voltados para preservação da memória e história da favela. “A gente fazia um trabalho mais voltado para pesquisa e produção de conhecimento”, afirmou Edson, responsável pela série de livros Tecendo Redes de Histórias da Maré que publicou as pesquisas “Memória e Identidade dos Moradores de Nova Holanda” em 2012, e “Memória e Identidade dos Moradores do Morro do Timbau e do Parque Proletário da Maré”, em 2014.
O acervo de depoimentos dos moradores produzido pelo NUMIM está digitalizado e a expectativa é que o material esteja disponível para consultas no próximo ano: “A ideia é que a gente tenha um portal e que isso fique publicizado, obviamente, com a autorização das famílias”. Para além do espaço virtual e do percurso territorial, o NUMIM está organizando um centro de documentação que ficará aberto para consulta, pesquisa e intercâmbio de pesquisadores de dentro e de fora da Maré: “Na verdade, a gente não quer fazer um museu ou um arquivo fechado, a gente quer que as pessoas possam pesquisar”.
Mas, para muito além da relação profissional com a história da Maré, Edson Diniz lembra que chegou na favela Nova Holanda com seis meses de vida: “Eu nasci na Paraíba, numa cidadezinha chamada Serra Branca. Muita gente na Maré veio de lá. Eu vim naquela história dos migrantes. Meu pai veio para cá na década de 70, eu vim com seis meses”, ele recorda. “Aí fiquei, casei na Maré, morei por 40 anos. Depois é que sai. Mas estou na Maré todo dia. Minha família mora na Maré até hoje, a minha vida está muito ligada a Maré. Eu vivi tudo o que os moradores enfrentam. Eu vivi muito por dentro, então é uma marca identitária, de afeto também muito forte. Meu trabalho hoje tem muito a ver com minha experiência de vida como morador da Maré e a opção de trabalhar com memória e história tem muito a ver com esse caminho, essas memórias que eu tenho. O trabalho profissional, militante e pessoal estão imbricados.”
Como lembra Edson, “tudo que acontece na Maré afeta a cidade”. A Maré é um bairro atravessado pelas principais vias de acesso ao Centro do Rio—Linha Amarela, Linha Vermelha e Avenida Brasil—com um fluxo diário de cerca de 1 milhão de pessoas, para além dos 140.000 moradores que ocupam o conjunto de favelas da Maré.
“Então, não é só fazer uma memória para dentro. É para dentro, mas é também para dialogar com a cidade”, afirma o coordenador do NUMIM. “A Maré é um espaço de memória, de histórias, de identidades. Vamos marcar isso no território.”
As próximas ações do Maré a Céu Aberto, neste semestre, contam com oficinas de azulejaria para crianças e rodas de conversas com as griots da Maré—grupo formado por mulheres da favela e coordenado por Tereza Onã. Já a formação de guias está prevista para o próximo semestre. A expectativa é que visitas possam ser agendadas a partir de janeiro do ano que vem.
Miriane Peregrino é pesquisadora, jornalista comunitária e educadora, especialista e mestre em Literatura pela UERJ. Criou, em 2013, o projeto de incentivo à leitura “Literatura Comunica!” que atua em escolas, bibliotecas comunitárias e equipamentos culturais. É migrante, nasceu no interior do Rio e mora na Vila do Pinheiro, Maré.