Leia a matéria original por Carolina A. Miranda, em inglês, no Los Angeles Times aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil. Carolina é escritora da equipe da Times de Los Angeles que cobre diversos assuntos sobre cultura, incluindo arte visual, arquitetura e filmes, inclusive as divas de cabaré de artes performáticas. Seu trabalho muitas vezes analisa como a arte se mistura com política, gênero e raça—desde das formas que os artistas estão enfrentando a fronteira entre Estados Unidos e México até as formas com que a arte se cruza com o desenvolvimento e gentrificação. Ela contribui regularmente com o “Press Play”, da KCRW e recebeu o prêmio Rabkin em Jornalismo de Artes Visuais de 2017.
As imagens do menino Flávio da Silva—da favela da Catacumba que existia na época na Lagoa Rodrigo de Freitas—tiradas pelo fotógrafo Gordon Parks em 1961 para a revista Life, estão sendo apresentadas em uma exposição atual no Getty Museum em Los Angeles. As imagens provocaram uma briga midiática entre Brasil e Estados Unidos. Flávio conta para o Los Angeles Times o que a série significou para ele.
No começo da década de 1960, Gordon Parks aceitou da revista Life a missão de fazer uma reportagem especial sobre pobreza na América Latina. O fotógrafo, conhecido por suas imagens de conflitos e retratos magnéticos, foi enviado para o Brasil, onde sua principal tarefa seria registrar a vida diária de uma família pobre em uma favela do Rio de Janeiro.
Quando aceitou o trabalho, Gordon não poderia suspeitar que aquele trabalho iria marcar o resto de sua carreira de forma indelével. Ele também não poderia saber que mudaria a vida de seu assunto principal: Flávio da Silva, um garoto raquítico de 12 anos que vivia em situação de plena pobreza em uma favela chamada Catacumba. Certamente, nenhum deles teria imaginado que seu primeiro e breve encontro, em um beco que levava a uma encosta íngreme no Rio, estabeleceria uma conexão que duraria por décadas, até a morte de Gordon em 2006.
“Eu vejo ele, Gordon Parks—ele faz parte da família”, Flávio, agora com 70 anos, diz com afeição em um inglês hesitante. “Amizade, boa amizade.”
Para a tarefa, Gordon criou um contundente portfólio preto e branco, de imagens que mostravam Flávio, o mais velho de sete irmãos, em seus atos diários de sobrevivência: puxando baldes de 18 litros de água morro acima, organizando o modesto barraco da família, alimentando seus irmãos com feijão, lutando contra seus ataques de asma—todas as coisas que ele encarava com o estoicismo de um adulto.
“Eu não tenho medo da morte”, ele disse para Gordon na história que acompanhava o texto em 1961. “Mas o que [minha família] vai fazer depois?”
A história, que estreou nas páginas da Life em junho daquele ano, gerou empatia e revolta: empatia dos leitores norte-americanos da revista, que enviaram diversas doações para Flávio através do escritório da revista Life; revolta no Brasil, onde os críticos acusavam a revista de estar contaminada de estereótipos sobre a América Latina.
A indignação foi tal que a revista O Cruzeiro, que não existe mais, enviou um fotógrafo para Nova Iorque para fotografar uma família pobre de lá e registrar uma miséria semelhante.
Essa história complexa—que aborda questões sobre agência de notícia e exploração, políticas e propaganda e o relacionamento entre jornalista e o assunto em pauta—é o cerne da nova exposição “Gordon Parks: A História de Flávio“, agora em exibição no Getty Museum em Los Angeles. A exposição (e seu valiosíssimo catálogo) coletou imagens da reportagem inicial de Gordon, com seus desdobramentos e exibe juntamente as imagens feitas por Henri Battol em Nova Iorque para O Cruzeiro.
O Getty também convidou Flávio, que vive no Rio de Janeiro, para ver a apresentação que foi elaborada a partir da sua vida.
Flávio é um homem esbelto, com bastante cabelo na cabeça e com apenas alguns fios grisalhos. Ele é extremamente educado, mas, quando sorri, seu rosto parece se iluminar por uma eletricidade crepitante. Foi o sorriso de Flávio que atraiu os olhos de Gordon quando eles se conheceram na Catacumba.
Sentado em um terraço ensolarado no Getty Museum, Flávio diz que tinha pouco entendimento sobre o significado da história de Gordon na época em que ela foi publicada. “Eu apenas ouço sobre isso e vejo fotos”, diz ele. “Mas não sei quão grande é a situação.”
Seus pais, na época, trabalhavam duro para conseguir sobreviver com US$25 por mês (o que representa, hoje, cerca de US$215/R$887). Revistas não faziam parte de sua vida cotidiana. Mas aparecer na revista Life mudou sua vida de uma forma marcante, porém custosa.
Em um momento em que questões de poder e representação na mídia estão sendo fortemente debatidas, “A História de Flávio” é uma exposição que não poderia vir em melhor momento.
“Essa história é de 1961”, diz a curadora associada do Getty, Amanda Maddox, que organizou a exposição com Paul Roth, diretor do Ryerson Image Centre em Toronto. “Nos mostra que a questão de quem é o agente humano do assunto em pauta—a natureza do relacionamento entre um fotógrafo e o fotografado—é um ponto complicado há muito tempo”.
No caso de Gordon e Flávio, esse foi um relacionamento que foi ainda mais complicado quando Gordon e a revista Life se tornaram parte da história.
Isso porque a matéria caiu como um raio. No momento de sua publicação, a Life recebeu mais de US$26,000 em doações de leitores que queriam ajudar (o equivalente a mais de US$223.000/R$920.042 em 2019). Com os fundos, a equipe da revista comprou uma casa para a família de Flávio, uma casa modesta, de alvenaria, em um bairro popular que representava uma melhoria imensa de vida em relação a seu barraco na favela. A revista também providenciou o transporte do jovem Flávio para os Estados Unidos, para ele receber dois anos de tratamento médico gratuito.
No mês depois da história sair, Gordon voou para o Brasil para encontrar a família e garantir a permissão para levar Flávio para os EUA—que foi quando o caos começou. No curso de um único dia, os da Silva foram realocados em sua nova casa—a foto na exibição os mostra olhando por uma janela, atordoados—e Flávio e Gordon embarcaram em um voo, para um centro de tratamento de asma em Denver. Uma imagem tirada por um fotógrafo brasileiro, que serve como capa do catálogo, mostra Flávio, olhos lacrimejados, agarrado a Gordon, enquanto eles andam pelo aeroporto.
A viagem para Denver trouxe para Flávio o tratamento médico necessário. Além da asma, ele estava desnutrido e sofria de infecção. A viagem também o levou para um lugar em que ele não conhecia a língua ou entendia a cultura.
“Eu senti falta da minha família”, ele se lembra de suas primeiras semanas lá. “Algumas vezes eu chorei sozinho. Você não podia imaginar se eles eram bons”.
Se sair do Brasil foi difícil, seu retorno foi ainda mais.
Depois de dois anos, Flávio tinha se aclimatado com a vida nos EUA. A família que o hospedou, José e Kathy Gonçalves, tinham praticamente o adotado. Ele jogava beisebol com os amigos, estava apaixonado por uma garota chamada Deborah e aprendeu a falar inglês (que ele ainda fala muito bem). Em uma foto tirada pela família Gonçalves na exposição do Getty, Flávio é visto em um terno elegante, posando alegremente com um pé no para-choque de um carro. Ele parece feliz e saudável.
Sobre seu retorno para o Brasil, ele diz: “Eu não me senti feliz”.
Seu retorno significava confrontar a pobreza que sua família vivia, bem como a educação limitada e falta de oportunidades econômicas. A vida profissional de Flávio consistiu, desde então, de uma constelação de empregos mal remunerados: trabalho em restaurante, limpeza, construção, um bico como segurança e outros pequenos trabalhos que marcam a economia informal latino-americana. Ser a estrela da série de Gordon mudou sua vida—mas só um pouco.
Havia também o modo como a história de Flávio foi usada politicamente. Primeiro, pela revista Life, cujo relato sobre a pobreza na América Latina foi motivado não por uma curiosidade investigativa, mas por uma preocupação, gerada pela Guerra Fria, de que as condições de vida abaixo do padrão pudessem gerar comunistas (a linha de capa da reportagem sobre o Brasil dizia: “pobreza chocante cria vermelhos”, em alusão aos comunistas).
E houve a resposta da mídia brasileira. Muitos jornalistas brasileiros acusaram a reportagem da Life—e as histórias que se seguiram, incluindo a história de capa da Life sobre o tratamento médico de Flávio em Denver—como paternalismo e imperialismo norte-americano. À revista Life, escreveu um jornalista do jornal O Dia, criou um “falso entendimento” sobre os problemas econômicos e sociais do país. “Em vista desse problema que envolve evidentes intenções ocultas, nossa atitude só pode ser a de protestar.”
O Cruzeiro acusou Gordon de encenar suas fotografias. Em contrapartida, a revista Time (que, como a Life, pertencia a Time Inc.) acusou O Cruzeiro de encenar as imagens feitas em Nova Iorque. Essa discussão afastou os holofotes do verdadeiro ponto em questão, diz o curador Sergio Burgi, que ajudou a organizar “O Caso Flávio“, uma exposição que explorou a competição entre essas narrativas de mídia no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro no ano passado.
“A pobreza nunca foi o que se tornou a discussão pública”, ele diz. “Se tornou mais uma questão de construção de notícias verdadeiras e falsas.”
Curiosamente, no meio de toda essa disputa de mídia, ninguém nunca pensou em entregar uma câmera para Flávio e pedir para que ele documentasse sua própria realidade. Essas verdades, talvez, teriam sido difíceis de negar.
Gordon se manteve imperturbável durante o debate político.
“Ele realmente não se importava com o que os outros sentiam”, diz Peter Kunhardt Jr., diretor executivo do Gordon Parks Foundation, a organização com sede em Nova Iorque que mantém o arquivo fotográfico. “Ele estava fazendo algo que ajudou Flávio e a família dele.”
Flávio da Silva foi mais do que apenas uma história. Nas décadas depois da reportagem ser publicada, Gordon e Flávio continuaram trocando correspondências. O fotógrafo voltou para o Brasil para visitas na década 1970 e novamente na década de 1990. Em 1978, ele publicou The Flávio Story (A História de Flávio), um livro de memórias sobre a história.
No livro, Gordon expressa dúvidas sobre o papel que ele teve na vida de Flávio: “Como um fotojornalista eu tive a chance de fazer histórias que mudaram bastante vidas humanas”, ele escreve. “Em retrospectiva, eu às vezes me pergunto se não teria sido mais sensato ter deixado tais vidas intocadas”.
Mas suas imagens tiveram o poder de atração—e regularmente Flávio é abordado por jornalistas que querem saber mais sobre os eventos.
“O que foi fascinante sobre essa história é que ela foi recontada diversas vezes”, diz Amanda. “Ela está sendo recontada agora. E toda vez que ela é recontada, ela é um pouco diferente. Você nunca vê a mesma versão sendo repetida. Isso, em parte, é o produto do tempo e da memória. Mas eu estava compelida pelo impulso de voltar a essa história e recontá-la.”
Perguntado sobre como ele se sente sobre revisitar continuamente esse momento de sua vida, Flávio não dá muita atenção para a pergunta.
“É a escolha divina”, ele diz. “Ele fez você do jeito que você é. Eu sou do jeito que ele me quer.”
O simples encontro que ainda reverbera? Era tudo uma questão de destino.
“Gordon Parks: A história de Flávio”
Onde: Getty Museum, 1200 Getty Center Dr., Los Angeles
Quando: Até 10 de novembro
Informações: getty.edu