O Crescimento do Movimento Global do TTC, Parte 6: Semeando TTCs nas Favelas do Brasil

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Em comemoração ao 50º aniversário do New Communities, o primeiro Termo Territorial Coletivo* do mundo, e à medida que planejadores e moradores de TTCs se reuniram para comemorar de 2 a 5 de outubro na Conferência ‘Recuperando Terrenos Baldios 2019’ em Atlanta, Geórgia, o RioOnWatch emitiu uma chamada por matérias destacando o crescimento atual do movimento TTC em todo o mundo. Colaboradores de várias partes do mundo escreveram histórias sobre a expansão de TTCs—tanto em número quanto em abordagem—no MississippiReino UnidoBélgicaFrança, Porto Rico, Rio de Janeiro e Flórida. Esta série variada tem como objetivo disseminar notícias dos sucessos do modelo TTC à medida que se adapta a novos tempos e circunstâncias, chamando mais atenção para esta solução inovadora para garantir o direito à moradia e ao desenvolvimento comunitário, e seu potencial na resolução da crise habitacional global.

A matéria de hoje, do estudante e pesquisador de direito, Felipe Litsek, explica o trabalho em andamento de trazer TTCs ao Brasil, começando com o Rio de Janeiro.

Para mais informações sobre TTCs e seu potencial para as favelas do Rio de Janeiro, clique aqui e para aprofundar sobre como será realizável no Brasil, clique aqui.


Apesar de ainda não haver nenhum Termo Territorial Coletivo (TTC) em funcionamento no Brasil, a dura realidade urbana que o país enfrenta atualmente poderia se beneficiar profundamente de novas experiências. As cidades brasileiras são marcadas, por um lado, por vastos territórios sob uma condição de irregularidade fundiária (em termos de título e conformidade com as normas de planejamento urbano), e, por outro, pela presença cada vez mais forte da especulação imobiliária em larga escala. No Rio de Janeiro, cerca de 24% da população vive em favelas, espaços que, quando deixados por conta própria, oferecem moradia economicamente acessível e fomentam a criação de fortes redes de solidariedade local; mas, em contrapartida, seus moradores enfrentam diversas ameaças causadas pela precariedade de seus direitos fundiários, como por exemplo o risco de remoção pelas autoridades. Por outro lado, uma vez que títulos de propriedade lhes são concedidos, essas mesmas áreas passam a ficar sujeitas a processos de valorização da terra e gentrificação—especialmente as localizadas em áreas nobres da cidade—o que pode resultar numa outra forma de remoção, mais sutil, menos explícita, mas igualmente cruel pois leva ao mesmo resultado: cidades cada vez mais segregadas e desiguais. À luz desse caráter ambíguo da titulação individual da terra nas favelas, na qual tanto a ausência quanto a presença de um título geram problemas, torna-se necessário encontrar novas maneiras de garantir o direito das favelas consolidadas de permanecerem em seus territórios e se beneficiarem de seu próprio desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se protege a segurança da posse e de seus moradores. É aí que entra o TTC. 

Pode se dizer que os TTCs chegaram ao Brasil em agosto de 2018, quando membros do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña (TTC bem-sucedido estabelecido nas favelas de San Juan, Porto Rico) vieram ao Rio de Janeiro para oferecer uma série de oficinas em parceria com a Comunidades Catalisadoras.** O objetivo dessas oficinas foi aprender com a experiência porto-riquenha—especificamente em relação à adaptação do modelo TTC para assentamentos informais—para melhor conhecer o instrumento e discutir como ele poderia ser efetivo na promoção de moradia acessível no Brasil. O Caño Martín Peña apresenta um dos raros casos em que um TTC foi implementado em comunidades informais, e o sucesso da experiência abre portas para pensarmos o TTC como uma potencial inovação urbana no contexto das favelas brasileiras.

Após 5 dias de oficinas, que envolveram 130 participantes, foi decidido que seria formado um Grupo de Trabalho permanente, com reuniões regulares, para estudar com mais profundidade o Termo Territorial Coletivo, difundir conhecimento sobre ele e pensar como ele poderia ser implementado no Brasil. Contando com uma composição bastante diversa—inicialmente 50 membros, incluindo lideranças comunitárias, representantes de órgãos públicos como o Instituto de Terras do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) e o Núcleo de Habitação e Terras (NUTH) da Defensoria Pública, pesquisadores, arquitetos e urbanistas e estudantes—o grupo começou a se reunir mensalmente para discutir como o TTC poderia ser uma potencial solução para problemas cíclicos das nossas cidades, como a falta de moradia, a gentrificação, a carência de infraestrutura e serviços nas favelas, e a segregação territorial. 

As primeiras atividades do GT eram voltadas para aprofundar internamente o conhecimento sobre o TTC e identificar quais as comunidades interessadas no projeto. De início, tiveram a presença forte das comunidades: Vila Autódromo e Conjunto Esperança na Zona Oeste; Trapicheiros, Indiana, e Vila Cruzeiro na Zona Norte; Horto na Zona Sul; e Fazendinha em Niterói.

O Grupo de Trabalho do TTC então passou a visitar algumas dessas comunidades, conhecendo-as junto aos líderes locais e compartilhando informações básicas acerca do modelo TTC com os moradores interessados. Com base no interesse dos moradores e no cumprimento de certos critérios estabelecidos para um projeto piloto, foram organizadas oficinas subsequentes em duas delas: Trapicheiros e Esperança. A metodologia desenvolvida foi a de uma oficina introdutória de seis horas, baseada nas técnicas aprendidas durante as oficinas anteriores com o Caño Martín Peña no Rio de Janeiro. Nessa oficina são identificadas as qualidades locais, as ameaças enfrentadas e as razões para querer (ou não) a regularização da terra, além da avaliação acerca dos potenciais benefícios e problemas de diferentes instrumentos de garantia de direitos fundiários (inclusive o TTC). Em ambas as comunidades, os moradores se interessaram e buscaram saber mais sobre o instrumento, começando assim uma longa estrada rumo à construção de um projeto piloto de um TTC.

Desde as primeiras reuniões do GT, inúmeras atividades de aprofundamento foram realizadas nas duas comunidades, cada uma delas com o objetivo de alcançar o máximo de moradores possível e envolver a comunidade como um todo com o projeto. Essas atividades incluíram uma “Festa da Memória”, o lançamento de um parquinho comunitário e visitas porta-a-porta, todas coordenadas pelos líderes comunitários e os membros do GT.

Além de formar um comitê de mobilização dentro do Grupo de Trabalhoque lida com o engajamento com comunidades como a descrita acimao Grupo de Trabalho estabeleceu um comitê legislativo para tratar dos aspectos legais e jurídicos para implementação de TTCs. Embora o grupo tenha determinado que já é possível formar um TTC apenas com instrumentos da legislação brasileira vigente, ficou claro que seria muito mais fácil e efetivo para a chegada do modelo ao Brasil se já houvesse alguma previsão legal específica sobre o TTC. Enquanto isso, os governos locais poderiam reconhecer o papel dos TTCs na garantia de moradias a preços acessíveis, permanentemente, através de subsídios e redução de impostos. Esses são os tipos de considerações que estão sendo discutidos pelo comitê legislativo do Grupo de Trabalho, cujo objetivo final é desenvolver propostas legais, como essas, para a introdução do instrumento na legislação brasileira. Essas propostas podem vir no formato de uma alteração pontual em algum dispositivo legal, de uma construção de um capítulo inteiro sobre o TTC a ser introduzido em alguma lei já em vigor ou, principalmente, da criação de uma lei própria para os TTCs.

Assim se estrutura o Grupo de Trabalho permanente do TTC no Rio de Janeiro, com duas frentes de atuação autônomas e complementares: a de mobilização e a de legislação. A frente de mobilização visa trabalhar com comunidades parceiras para construir um projeto piloto de um TTC, enquanto a frente de legislação busca pensar inovações legislativas para facilitar a entrada e a disseminação do instrumento no Brasil. A participação de parceiros e interessados no projeto só foi crescendo: hoje o GT conta com mais de 150 colaboradores, representando diversas instituições públicas, universidades e organizações da sociedade civil. A característica heterogênea do grupo se amplia cada vez mais e a presença de olhares tão diferentes traz a vitalidade e a energia necessárias para o desenvolvimento do projeto. 

Em agosto de 2019, o GT do TTC completou um ano de existência. Essa caminhada não seria possível sem a presença dos diversos atores que compõem o grupo e, principalmente, sem a energia das favelas que acreditam no projeto. Mesmo depois de um avanço tremendo, há ainda um longo caminho para conquistar o objetivo final: a construção do primeiro Termo Territorial Coletivo no Brasil, permitindo, assim, a expansão do modelo pelo país e contribuindo para sua disseminação mundial.

Essa é a sexta matéria da nossa série sobre o crescimento global do movimento de TTCs.

*O TTC é um arranjo fundiário onde os moradores são donos ou inquilinos nas suas casas, enquanto todos, coletivamente, através de uma associação, são donos da terra e zelam pela comunidade como um todo. Tirando a terra da equação do valor das moradias, os moradores são resguardados em relação aos impactos nocivos de terras em áreas de especulação.

**Comunidades Catalisadoras é a associação sem fins lucrativos que publica o RioOnWatch.