Este ano as águas de março vieram fechar o verão de forma inusitada. Nos primeiros dias de março fortes chuvas arrasaram uma parte considerável da Grande Rio. A Baixada Fluminense foi fortemente afetada, principalmente o município de Mesquita, no qual a chuva abriu crateras, arrastou carros e levou à morte por deslizamento Mizael Xavier, de 62 anos.
No Rio, foi a Zona Oeste a região mais atingida, contando também com registro de casos fatais. A idosa Wania Nunes, de 75 anos, morreu eletrocutada na Taquara, mas ainda não se sabe o que casou a descarga elétrica. No bairro do Tanque, Flávio Gonçalves, de 50 anos, veio a óbito após um deslizamento de um barranco que derrubou a parede do quarto em que dormia.
A Zona Oeste tem um triste histórico de ser fortemente castigada pelas chuvas. Em abril de 2019, fortes chuvas provocaram destruição e duas mortes em Santa Cruz, quando foi registrada a maior chuva na cidade do Rio em 22 anos. Na ocasião, até barcos viraram meios de transportes para os moradores, já que bairro inteiro foi tomado pela água.
Para mudar essa triste realidade, as favelas da região vem contando com a força da mobilização de moradores. Um desses é Thiago de Jesus, de 31 anos, ativista sociocultural e roteirista que desde os 16 anos atua à frente de projetos sociais para impactar positivamente as favelas do Rollas e de Antares, em Santa Cruz—Thiago mora em uma avenida que corta a favela do Rollas.
Em 2019, ao ver amigos perdendo tudo, até a vida, por conta da chuva, Thiago diz que precisou agir. “Eu precisava fazer algo. A mobilização começou quando nós vimos a gravidade da situação. Eu juntei um grupo de amigos e começamos a resgatar as pessoas e correr atrás para dar comida e roupas para essas pessoas que perderam tudo. Aí a mobilização foi se espalhando nas redes sociais e muitas pessoas chegaram para somar com a gente”.
O agitador cultural arrecadou colchão, fogão, sofá, roupas, cama e cestas básicas. A cobrança pela ação do Estado foi feita, mas os moradores estão há quase um ano esperando resposta. “O poder público não ajudou, a burocracia e a politicagem atrapalharam e atrapalham até hoje. Tem pessoas que ainda estão morando nos barracos de madeira, não conseguiram o aluguel social. Continuam nessa situação crítica”, conta ele.
Para quem está habituado a trabalhar com o cinema, todo esse enredo poderia dar um filme. E foi exatamente o que aconteceu: Thiago decidiu roteirizar “As Márcias” com ajuda de alguns amigos. O filme conta a história de duas mulheres que têm em comum não só o nome Márcia, mas também a vontade de ajudar e promover o desenvolvimento das comunidades onde moram, nas favelas do Rollas e de Antares.
“A ideia de produzir um filme surgiu quando eu estava no local ajudando as pessoas e vi que não era só eu naquela de luta, vi que tinham muitos heróis anônimos arriscando as suas vidas para auxiliar os moradores da comunidade. Eu queria mostrar a luta e a superação desse povo guerreiro”, conta Thiago.
As personagens são lideranças em suas comunidades e referência entre os moradores. Assim como muitas pessoas que perderam tudo nas chuvas, as Márcias também sofreram, mas abriram suas casas para que se tornassem um ponto de acolhimento para as famílias das comunidades.
Uma das heroínas desta história é Marcia Bezerra, 58 anos, dona de casa e moradora da Portelinha, em Antares. “Eu aqui na Portelinha sou conhecida como a prefeita do lugar. Moro na Portelinha há 19 anos”. Por sorte ela não perdeu nenhum bem material nas chuvas, ao contrário dos seus vizinhos, que não conseguiram resguardar praticamente nada. “Ajudei muita gente que perdeu tudo. Conseguimos roupas, calçados e alimentação para todos que precisaram. Moro em uma comunidade e junto com a outra Márcia e o Thiago corremos pra lá e pra cá para levar sopa para o povo sem esperança. Andamos na chuva e eu queria poder ajudar mais”, conta ela.
Márcia Bezerra teve sua trajetória de vida narrada pelas lentes da câmera após uma visita de Thiago a sua casa. “Eu cheguei no filme através do Thiago. Ele veio aqui em casa e trouxe vários objetos para doação, mas não me conhecia. Começamos a conversar e eu disse que gostava de ajudar ao próximo. Na outra semana Thiago falou: ‘Você toparia fazer um filme?’. Eu aceitei. Eu sempre tive uma vida muito louca, jamais imaginei que pudesse chegar tão longe. De tudo que eu vivi o filme foi a coisa mais importante que aconteceu comigo”, relata.
A vida e a obra de Márcia Bezerra, por sua vez, se entrelaçam ao longo do curta metragem. A dona de casa e moradora de Antares carrega como marca a sensibilidade e a solidariedade. “Cheguei aos meus 58 anos por uma dádiva. Auxiliar as pessoas é algo que vem de dentro. Devido à vida que eu tive—já fui casada com um criminoso, tudo muito cruel—eu percebi que tinha como mudar essa história”, conta ela.
Marcia Bezerra destaca sua parceira de filme Marcia Azevedo como exemplo de superação. “A Márcia Azevedo é gente finíssima, ela sempre foi mais voltada para o lado social. Nas enchentes de 2019, fizemos o que podíamos para o povo daqui. Márcia Azevedo é uma grande mulher”, finaliza.
Os dois territórios vizinhos ainda são alvos de disputa por controle territorial por grupos civis armados e ao mesmo tempo são vítimas de negligência da parte dos governantes. “Somos esquecidos pelo poder público, que só aparece em tempo de eleição. Falta de tudo, mas o que mais falta são nas áreas de cultura, esporte e lazer. Eu vi que isso transforma vidas e dá dignidades às pessoas”, reflete Márcia Bezerra.
Thiago, na mesma linha de crítica à falta de investimento público, também descreve o cenário do audiovisual na periferia: “A Zona Oeste é uma zona periférica. Antes de fazer esse projeto eu não tinha noção sobre como trabalhar com audiovisual e a falta de informação e cursos disponíveis foi o que mais me frustrou nesse processo”, diz ele.
Para Marcia Bezerra, programas de inclusão social para jovens moradores das favelas deveriam ser prioridades nas políticas dos governos atuais. “Eu gostaria que os jovens pudessem se ocupar de um jeito que englobasse cultura, educação e lazer. A juventude precisa ter uma ocupação com estrutura para não pensar no erro. Eu gostaria de deixar essa fala para os governantes, que olhassem para Santa Cruz. E para os jovens, para que eles ajam para serem alguém no futuro”.
Lugares de afeto para Thiago, além da importância para sua formação pessoal e profissional, o Antares e o Rollas lhe ensinaram uma lição sobre união. “Ficou comprovado que a união faz força. A rapaziada teve um pouco mais de dignidade com ajuda que tiveram. Eles agora sabem que podem contar com amigos para todas as horas. A importância de mudar a realidade e a vida das pessoas menos favorecidas é meu maior prêmio”, diz ele.
E conclui: “O Antares e o Rollas não só têm marginais, são lugares de gente guerreira que vence a cada dia todas as dificuldades de morar em uma zona periférica. E mesmo com todas as dificuldades eles sentem orgulho de morar nas suas comunidades”.
Conviver com a incerteza de não saber quanto tempo sua moradia irá aguentar em uma encosta e com o risco de perder todos os móveis e documentos é uma dura realidade a que muitos moradores da Zona Oeste e de favelas em outras partes do Rio são expostos. É preciso constantemente cobrar que o poder público esteja ao lado dos afetados por catástrofes naturais e dar voz aqueles que vêm sendo silenciados há muito tempo.
Fechar crateras, asfaltar, criar infraestrutura de saneamento básico e prevenção de doenças infecciosas são medidas simples, mas pouco efetivadas em termos de políticas públicas. 2020 é um ano emblemático, no sentido que teremos novas eleições municipais. Aguardamos que as promessas de campanha e os votos de esperança dos cidadãos não acabem sendo levados por água a baixo, acabando como nosso estado submerso.