Esta é a nossa mais recente matéria sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.
“Marielle perguntou, eu também vou perguntar: quantos mais vão ter que morrer para essa guerra acabar?”. Estas foram as palavras entoadas pela comunidade negra, favelada e periférica na capital do Rio de Janeiro, neste último domingo, 7 de junho, no segundo ato antirracista #VidasNegrasImportam. O grito de luta se refere ao último tweet da vereadora Marielle Franco, assassinado em 14 de março de 2018. A manifestação foi organizada pelo Movimento Favela na Luta, com a participação de coletivos de periferias e da comunidade negra.
Com o lema “Nem de tiro, nem de Covid, nem de fome! O povo negro quer viver!”, a marcha se contrapôs novamente a política de morte do Estado, tanto em decorrência da vulnerabilidade social intensificada pela crise de saúde pública e econômica ocasionada pelo novo coronavírus, quanto pela violência policial nas favelas que não cessaram, mesmo com a pandemia da Covid-19.
Na tarde do domingo, quando os primeiros manifestantes do ato se reuniram entorno da estátua de Zumbi dos Palmares, a paisagem ao longo da Avenida Presidente Vargas era de um deserto… ou quase: “Há mais policiais aqui do que manifestantes!”, gritou um ativista, apontando os muitos policiais que cercavam o grupo.
“A rua sempre foi nossa! A gente está vendo tanta polícia porque aqui, porque tem preto hoje nas ruas. Eles não têm o direito de tirar nossas vidas, de retirar nossos sonhos, de tirar nossos entes queridos”, protestava Juliana Alves, ativista da Unidade Popular Pelo Socialismo – RJ.
Mas, a proporção logo se inverteria. Dezenas de jovens, negros, pobres, favelados e periféricos tomaram a principal avenida do Centro do Rio de Janeiro, mesmo diante das notícias de repressão policial, que já circulavam nas redes sociais e das críticas de vozes dissonantes, que colocaram em xeque o mérito de se arriscar ao contágio por Covid-19 em um protesto físico nas ruas, o que vai contra as recomendações de aglomerações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Estou aqui porque vidas negras importam, e eu sou uma jovem negra! Já fui do grupo de risco, mas se a gente não tiver nas ruas, outras pessoas vão estar. Sim, eu tenho medo da pandemia, de me infectar, mas a gente tá aqui hoje na rua para lutar pelos nossos direitos”, desabafou Adriana Fernandes, 23 anos, produtora cultural e DJ, moradora da favela de Santo Amaro.
Tanques de Guerra e Revistas
Em viaturas e motos, a cavalo ou a pé, policiais com escudos, porretes, rifles de bala de borracha e canhões de gás lacrimogêneo, intimidaram os manifestantes durante todo o percurso do ato. Dois tanques de guerra também estavam estacionados em frente ao Palácio Duque de Caxias, sede do Comando Militar do Leste (CML) do Exército.
Colocaram um TANQUE DE GUERRA para proteger um monumento em homenagem a Duque de Caxias, genocida que hoje é patrono do exército, mas no Império reprimiu diversas revoltas populares.
Hoje a gente vive numa república democrática. Eu te pergunto: mudou algo pro povo nesse país? pic.twitter.com/CfSqfMNOCn— thuane (@thuxxxxx) June 7, 2020
A polícia, inclusive, revistou diversas pessoas que foram para a marcha. A PM do Rio de Janeiro ainda, publicou um tweet que não era para as pessoas levarem, para o ato, frasco de álcool gel com mais de 50ml.
Não existe nenhum decreto municipal ou estadual que restrinja a quantidade de álcool gel que cada pessoa pode levar para uso pessoal. Porém, a polícia chegou a deter, por essa razão, manifestantes antes da saída do ato da Praça Zumbi dos Palmares.
⚠️👉🏽 Fique atento (a)‼️ Não leve álcool líquido para nenhuma manifestação. Só serão permitidos frascos de até 50 ml de álcool em gel.
Conte com a #PolíciaMilitar. Juntos somos muito mais fortes!!#ServireProteger pic.twitter.com/SATWJ801NH
— @pmerj (@PMERJ) June 6, 2020
Se a polícia estava pronta para a guerra, os manifestantes vieram preparados para guardar a paz. Os organizadores andaram pela multidão, lembrando aos manifestantes de guardar dois metros de distância entre si. Uma equipe de advogados negros se pôs também na linha de frente do ato para conter a violência e a tensão, mediando a organização do protesto junto com a polícia. Ao longo da marcha, organizadores lembravam a multidão para agir como um coletivo: o que afeta um, afeta a todos. Um grupo de pessoas brancas antirracistas foi chamado pelos organizadores para ir à frente da manifestação, e fizeram um cordão de isolamento para afastar a polícia.
A multidão marchou até à Igreja de Nossa Senhora de Candelária clamando pelo direito à vida e à favela, mesmo sob o cerco de policiais que andavam lado a lado ao protesto, enquanto os manifestantes cantavam: “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, funk dos anos 80 de Cidinho e Doca, que se tornou um hino das favelas. Foi um momento de muita emoção.
“Estamos arriscando nossas vidas para dizer algo que é mínimo”, disse Seimour Souza, coordenador da Uneafro-RJ e assessor parlamentar no Rio. “[Ter que] dizer que nossas vidas importam é muito doloroso para a gente”. Seimour lamentou que lideranças comunitárias, como ele, precisaram parar a distribuição de cestas básicas nas favelas, para fazerem parte no protesto devido à violência estatal. “Nosso grito é um grito de urgência. É um grito de denúncia para o mundo inteiro, para dizer que vidas negras importam!”
Na Candelária, os manifestantes deitaram no chão e fizeram um minuto de silêncio—atrapalhados somente pelo barulho dos helicópteros que circulavam por cima—pelos mortos por Covid-19 e pela violência policial. Encerrando o ato, os organizadores indicaram aos manifestantes que se dispersassem, mantendo distanciamento e não caindo em provações.
Por fim, um grupo voltou pela Avenida Presidente Vargas, passando por tanques e policiais a cavalo mais uma vez, retornando para o ponto de origem do protesto na estátua de Zumbi dos Palmares. Na sombra do busto do líder quilombola, gritaram, mais uma vez: “Vidas negras importam!”
Esta reportagem contou com a colaboração de Edmund Ruge.